terça-feira, 19 de agosto de 2008

O eterno retorno


Desde que tenho memória de mim, vejo-me como um leitor. Fui fazendo o meu percurso, iniciado com as aventuras dos “Cinco” e dos “Sete” da Enyd Blyton. Lembro-me de muito jovem ter descoberto o Hemingway e o Steinbeck que me maravilharam. Descobri os autores russos. Enfim, fui fazendo o meu trajecto nem sempre rectilíneo nos meandros da literatura. Confesso que havia um tipo de literatura que eu considerava um género “menor”: o romance policial. Tal impressão desapareceu com o empréstimo por mão amiga do “Assassinato de Roger Ackroyd” da Agatha Christie. E foi “tiro e queda”. Fui descobrindo outros autores e tornei-me leitor assíduo de policiais. Há vários autores que me marcaram: Dashiel Hammet, Raymond Chandler, James Ellroy, Patrícia Highsmith, Dona Leon, etc. Numa fase posterior descobri o maravilhoso Manuel Vasquez Montalban e o seu detective Pepe Carvalho, marxista ala gastronómica, e o seu fiel escudeiro Biscuter. Andrea Camileri criou uma personagem em homenagem a Montalban: o inspector Salvo Montalbano: são romances deliciosos numa Sicília bem real, apesar de situados numa imaginária Vigata. E há um humor muito fino que percorre os romances de Camileri, um autor que começou a escrever tardiamente. Num estilo mais denso, com personagens também elas desajustadas (um mote nos policiais), ambientes mais negros e opressores destaco os autores nórdicos. O sueco Hening Mankel que passa metade do ano a escrever na Suécia natal e a outra metade a dirigir uma companhia de teatro moçambicana. E os islandeses Arnaldur Indridason e Yrsa Sigurgardottir.
Mas a minha verdadeira paixão no domínio dos romances policiais são os livros do Simenon. O modo como o inspector Maigret se vai imbuindo do ambiente, dos hábitos, costumes, estados de alma das pessoas é para mim encantador e fascinante. E a galeria de personagens assim escalpelizadas (de costureirinhas a grandes “bom vivant”, mas sobretudo o que poderíamos chamar de “o povo”) é imensa porque o Simenon escrevia a um ritmo impressionante. E há também os romances “romances” também eles muito bons, onde destaco “Bairro Negro” e “O Homem que Via Passar os Comboios”. Como verdadeiro apaixonado tenho (com 99.99% de certeza) todos os livros do inspector Maigret (muitos deles livros de bolso da “livros do Brasil” comprados em alfarrabistas de Lisboa, outros em língua francesa ou inglesa). Como verdadeiro devoto percorri a Liége natal de Simenon em busca dos vários sítios que marcaram a sua vida nessa cidade.
E tenho um ritual de leitor. As Edições Asa estão de há uns anos a esta parte a lançar os livros do inspector Maigret e os romances “romances”. Assim que vejo um nos escaparates, e apesar de já ter o livro noutra edição, compro-o sofregamente e paro tudo o que estiver a ler para me deliciar com uma descida do inspector Maigret à realidade de mais uns personagens. No caso presente foi “Maigret e a Amiga de Madame Maigret”, mas pouco importa.

1 comentário:

JOSÉ FANHA disse...

"O homem que via passar comboios" é seguramente um dos livros da minha vida.
Adoro o Maigret. Sou também quase que toxicodependente.

Mas lá está outra vez aquela contradição complicada entre a obra e o autor, a ficção e a realidade de onde nasceu a ficção.

A história da vida e das taras de autores como Simenon, James Joyce, Thomas Mann são tão difíceis de engolir...

Já para não falar de Céline ou das poisições políticas sinistras em relação à ditadura da Argentina de Vargas Llosa.

É tão difícil ficarmo-nos pela ficção sem deitar um olhinho à realidade do autor...

É tão difícil não tentar encontrar de quando em vez alguma retorcidela na escrita que nos faça dizer: Ah! cá está a negritude do real a fugir debaixo do aparo do escritor para enegrecer a ficção...

Um abraço,

JFanha