quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

FIRMIN



Saiu em português editado pela Planeta.

Já aqui tinha dado nota do prazer que me dera lê-lo em castelhano. A Planeta tomou conhecimento desse comentário e teve a gentileza de me enviar o livro em português. Chapeau! Gracias. Muito obrigado. Pela edição e pela oferta.

Começa assim:

"Sempre imaginei que a história da minha vida, se e quando a escrevesse, teria uma primeira frase grandiosa; uma coisa grandiosa como "Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade", de Nabokov; ou, caso eu não tivesse queda para o lírico, entâo uma coisa epopeica como "Todas as famílias felizes são iguais, mas as famílias infelizes são cada uma à sua maneira", de Tolstoi. São palavras que as pessoas não esquecem, mesmo que já não se lembrem do resto dos livros. No que diz respeito a primeiras frases, porém, a melhor, na minha opinião, é sem dúvida a que inicia "O Bom selvagem" de Ford Madox Ford: "Esta é a história mais triste que alguma vez ouvi." Já a li dezenas de vezes e continua a deixar-me de rastos. Ford Madox Ford era dos grandes."

É notável a história da vida e morte deste rato contada pelo próprio. No fundo é a história de cada um de nós mesmo que nem todos tenhamos para contar a história mais triste que alguma vez tenhamos ouvido.

A não perder. Um prazer raro e requintado.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

HENNING MANKELL




Desde muito jovem que tornei os livros policiais em companheiros imprescindíveis. Com maior ou menor voracidade, ao sabor do tempo, pelo puro e simples prazer da leitura, volta e meia, lá vêm os policiais.

Li a colecção Vampiro toda. Nas fases furiosas chegava a limpar um livro por dia ou até talvez mais. A Colecção Xis. As obras de Sherlock Holmes. Os romances de Maigret. Os romances negros americanos desde Chandler até Mickey Spilane ou Russ McDonald. O nosso Denis MacShade. E as terríveis escritoras de mistério anglo saxónicas: Agatha Christie, Dorothy L. Sawiers, Ruth Rendell...

Mais tarde apaixonei-me pelo Pepe Carvalho de Montalban e pelo Montalbano de Camilleri, o Mário Conde de Leonardo Padura. Recentemente partilhei com a minha filha Sara o entuiasmo pelo vitoriano inspector Monk de Anne Perry.

Regresso vezes sem conta aos livros de Simenon, de todos o meu mais querido escritor de policiais porque aquele onde está mais presente a humanidade com as suas discretas grandezas e as inesperadas perversidades, com os seus cheiros e os seus vícios, as suas angústias, os seus dias de chuva e de sol, as suas noites de bruma e inquietação, os seus medos, o seu desejo de amor e de consolo.

Maigret, Sam Spade, Poirot, Pepe Carvalho, Monk, Montalbano, Miss Marple, tantos que me têm sido tão próximos.

Não vou discutir se se trata de um género menor ou não. De géneros maiores e menores se faz o caminho por vezes sinuoso de um leitor. Jorge Luís Borges dava um grande relevo à literatura policial. Eu tenho-a como um porto de abrigo a que recorro frequentemente e sempre com satisfação.

Li na Babélia do El País largas referências a um escritor do género. O sueco Henning Mankell. Um sucesso em vários países. Mais me chamou a atenção ao saber que dedica uma parte suignificativa da sua vida a trabalhos de solidariedade e que vive desde 1985 em Maputo onde fundou o grupo de teatro "Teatro Avenida".

Descobri que havia vários livros dele traduzidos em Portugal pela Presença e que tem entre nós alguns leitores indefectíveis.

E pronto. Marcharam três livros de seguida. "Assassino sem rosto", "Os cães de Riga" e "A leoa branca".

Como qualquer bom escritor do género, lê-se de um fôlego. Mankell é um bom oficial deste género literário. O seu detective, Kurt Wallander, vve numa pequena cidade do Sul da Suécia e é um homem solitário que se interroga sobre o futuro do seu país, a gestão política da coisa pública, a forma de tratar dos velhos, os filhos, o amor ou as razões do racismo (que é um dos temas fortes do autor). As suas investigações dão-nos a conhecer um país que nos é distante, as relações diárias entre as pessoas as suas dificuldades, os seus hábitos, a relação com os terríveis invernos...

Uma boa viagem, daquelas que os livros nos proporcionam.Uma viagem que nos faz descentrar-nos, perceber os outros nas suas às vezes estranhas peculiaridades, respirarmos outros cheiros, ourtras distâncias, outras preocupações, outras angústias e alegrias.

Dos três livros, aquele que mais prazer me deu foi "A leoa branca". Uma trama que envolve uma tentativa de assassinato de Nelson Mandela na África do Sul preparada na Suécia por um antigo oficial do KGB em colaboração com a extrema-direita branca sul-africana.

A narrativa balança entre a Suécia e a África do Sul estabelecendo duas linhas narrativas que se cruzam e se potenciam a um ritmo forte e envolvente.

Para os amantes de policiais é obrigatório.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Duzentos ladrões



Duzentos ladrões é, salvo engano, a mais recente coletânea de contos do escritor curitibano Dalton Trevisan. Sempre fiel ao gênero, e frequentemente repetindo a experiência dos "micro" contos dos 111 AiS de 2001, Trevisan procura neste livro a essência das situações através de mínimos recursos literários. O ordinário, o patológico, a violência doméstica, as desiluções e suas consequências e o submundo são os elementos fundamentais desta experiência literária que poderia ser encarada como um ensaio sobre a maldade humana, ou sobre a humanidade sob condições de grande precariedade material e psicológica. 

Em muitos dos breves contos, o autor personifica os seus personagens em discurso directo. Personagens rústicos que se exprimem por meio de um sociolecto minimalista, sem regras gramaticais ou concordâncias, mas que é sem sombra de dúvida a "vox populi" do Brasil contemporâneo. 

Mas para quem na adolescência leu com avidez coletâneas como a Guerra Conjugal e o Vampiro de Curitiba, entre outras tantas, e viu por meio destas o retrato sem retoques duma realidade incômoda e perturbadora, fica uma pergunta fundamental, ainda que a reflexão pareça despropositada. Procura o autor a depuração de um estilo ou trata-se do declínio das suas capacidades narrativas? Muito provavelmente, é impossível sabê-lo ao certo, pois um escritor é necessariamente uma "antena" do seu tempo, um arauto do real e do possível, principalmente quando a realidade não é agradável à vista e ao coração. 

Com certeza, a ironia tão típica de Trevisan, continua intacta nesta coletânea. Exemplo disto é o curtíssimo conto: 

No velório 

No velório, a viúva:
- O que separou a gente foi a morte.
- Coragem, Maria.
Um longo suspiro
_ A vida dele acabou ...
- ...
- ... e a minha hoje começa!


E também permanece a ubiquidade do escritor, que perspicaz não admite que nada lhe escape à sua mirada, ao seu olhar analítico, pois basta-nos recordar uma breve passagem de O Vampiro de Curitibapara entender a premissa fundamental da obra de Trevisan:

"O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, adivinho e, com sorte, você adivinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo."


Orfeu B.


domingo, 22 de fevereiro de 2009

"QUEM SÃO AS PESSOAS QUE ESTÃO À MINHA VOLTA?"




V.S. Naipaul, escritor de língua inglesa, nascido na ilha da Trindade e prémio Nobel da Literatura em 2001, concedeu uma entrevista ao "Magazine Littéraire", na qual fala das temáticas dos seus livros, das circunstâncias em que foram escritos, da sua postura ética perante a literatura e a vida. O que ele diz permite-nos ter uma visão do seu mundo interior, do conjunto da sua obra, de alguns princípios em que assenta a sua escrita. De entre as afirmações que fez, destacarei quatro ou cinco, pelo que revelam do escritor, do seu modo de trabalhar: "Viajo sempre com um casaco e dois cadernos de notas: um à direita, outro à esquerda. Quando encontro alguém, anoto cuidadosamente tudo o que ele diz, e dou-lhe a possibilidade de reflectir, lentamente [...] É incrível o que se pode anotar à mão durante uma hora! Depois, junto os testemunhos no círculo narrativo! Impossível trabalhar de outro modo!"E a entrevista continua, com o entrevistador a citar uma frase de Naipaul: "A moral é a estrutura. Eu não tenho senão uma imensa curiosidade, a de conhecer as pessoas, e um imenso desejo de exploração." Mas o que é para ele a "moral"? E Naipaul esclarece: "Um escritor desmunido de um sentido moral na sua obra não tem, para mim, o mínimo interesse. Evelyn Waugh, por exemplo: qual é a sua ambição moral? Nenhuma. E se não há ambição moral, só resta o oportunismo social..." O sentido moral não implicará, no entanto, uma tomada de posição política, ideológica ou religiosa? Não necessariamente, para Naipaul: "Não sou um ideólogo, nem sou religioso, marxista ou antimarxista. Sou uma pessoa aberta e devo-o às minhas origens: que sentido teria ser de esquerda ou de direita, na Trindade?O entrevistador, já perto do final, faz-lhe uma pergunta-chave: "Ir ao encontro do mundo exterior é, para si, ir ao encontro de si próprio. Mas este não é o paradoxo central da sua obra?" A resposta veio imediata e directa: "Sim. Hoje eu respondo com um trabalho incessante à pergunta que eu punha a mim próprio, em menino, na Trindade: quem são as pessoas que estão à minha volta? Que mundo é este que me rodeia? Porque razão estes Africanos e estes Chineses estão aqui na Trindade, quais sombras de si próprios? Sem uma explicação, os homens não são mais do que fantasmas. É difícil para vós, Franceses, conscientes do passado, imaginar que eu cresci sem a mínima noção de história colectiva, individual ou familiar." E é exactamente por isso, que V.S. Naipaul, enquanto jornalista de grandes jornais ocidentais, mergulha nas culturas indiana e africana - à procura das raízes, da explicação histórica que lhe falta (como pode o Homem sobreviver fora da História?). Dessa busca, resultam alguns dos seus melhores livros, nos quais se expressa o que o Homem tem de essencial, para além das fronteiras impostas pela raça, ideologia ou religião. Se há autor contemporâneo que soube caracterizar o Homem e os seus valores, ele é, sem dúvida, "Sir" Vidia Naipaul, inglês por opção, escritor do Universal por vocação.
Nota:
Obras de V.S. Naipaul publicadas em Portugal, pela D. Quixote:
• A Curva do Rio (2001)
• Uma Casa para Mr. Biswas (2001)
• Uma Vida Pela Metade (2002)
• Miguel Street (2003)
• Para Além da Crença (2004)
• Num País Livre (2005)
• Sementes Mágicas (2008)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

“JOKOB VON UNDEN”



Um livro e uma escrita fascinantes e que me levantaram e continuam a levantar muitíssimas questões.

O livro começa assim:

“Aprende-se muito pouco aqui, há falta de professores, e nós, rapazes do Instituto Benjamenta, nunca seremos ninguém, por outras palavras, nas nossas vidas futuras seremos apenas coisas pequenas e subalternas.”

Logo esta abertura nos agarra e, no entanto, o Instituto Benjamenta, escola mínima, disciplinadora e aparentemente bafienta, constituirá apenas um cenário de fundo para as reflexões de Jakob Von Gunten.

Walser leva-nos a percorrer uma narrativa quase sem nada para narrar. Apenas alguns episódios pouco importantes. O fundamental é o carrossel dos pensamentos de Jakob. Um delicioso e contraditório filosofar em terra de ninguém, um habitar apenas o delírio da linguagem, um vaivém entre o fantástico devaneio e a súbita consciência do talvez inútil empolamento desse devaneio.

Carregado de uma ironia muito germânica, Jakob passeia longamente nos seus pensamentos entre natureza e cultura. Uma velha contradição, aparente ou real, em torno da ideia de que existir como um ser da natureza não exige mais nenhum desejo senão o gozo da própria existência. Mas esta simples afirmação já se inscreve no campo dos actos de cultura. E é neste campo quase puro que se movimenta Jakob Von Guten, ou melhor, o seu autor Robert Walser.

Jakob existe, obedece e não quer ser nada, não quer ver além de… E no, entanto, não faz outra coisa que não seja deixar-nos pistas mais ou menos obscuras e labirínticas para esse desdobramento da língua e da sua festa de sentidos.

Ao ler Walser vieram-me muitas vezes à memória os poemas de Fernando Pessoa e, sobretudo, os do “Guardador de Rebanhos” de Alberto Caeiro, na sua recusa da transcendência simbólica das linguagens.

Há, aliás, um espírito de época atravessa Walser. O seu processo de escrita, o desenho do personagem central e a forma como ele olha o mundo exterior a si e como se olha a si próprio, tem óbvios paralelos com Kafka, Jaroslav Hasek e possivelmente com Musil, embora talvez não conhecessem as obras uns dos outros.

(Acabei por ler algures que Kafka conheceu e apreciou algumas das obras de Walser).

sábado, 14 de fevereiro de 2009

UMA CARTA DE CESÁRIO VERDE






O meu caríssimo amigo Francisco Montanha Rebelo enviou-me por mail esta carta original de Cesário Verde com o generoso objectivo de a disponibilizar para publicação no nosso blog.

Dizia-me ele:

"Junto imagens da carta do Cesário Verde que lhe mostrei há dias.
Esta é dirigida a João de Sousa Araújo, agradecendo a sua carta e uns versos que o mesmo lhe enviara, dedicados a sua irmã ( do Sousa Araújo), falecida, e que fora noiva de Cesário.
O que é estranho nesta carta é Cesário escrever, na 2ª página "agora mesmo que estamos em Abril...", datando depois, no fim da missiva: "3 /Março/ 73" !!!!!

Finalmente, o envelope tem o carimbo dos correios de "Lisboa, 16/1/73", e no reverso, "Coimbra, ?/1/1873"

Um grande abraço e muito obrigado

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

"ULISSES" DE JAMES JOYCE, UMA OBRA INTRADUZÍVEL?





O texto que se segue escrevi-o há quatro anos, mas penso que guarda actualidade e algum interesse:

“Agora, que passam cem anos sobre o Bloomsday, ou seja, o dia 16 de Junho de 1904, o dia que James Joyce escolheu para descrever, na sua obra “Ulisses”, o périplo de Bloom através da cidade de Dublin, agora, dizia eu, os jornais e as revistas da especialidade não se cansam de publicar artigos, ensaios, sobre o assunto. Uns, de boa qualidade, outros, nem por isso. Entre os primeiros, situa-se o trabalho de J. J. Saer, saído na “Babélia”, o suplemento literário de “El País”. Diz-nos Saer que, em 1967, assistiu a uma conversa, num café de Santa Fé (Argentina), em que estava presente Jorge Luís Borges. Falava-se das traduções de “Ulisses” em castelhano e da mais conhecida entre elas, a de Salas Subirat. E Jorge Luís Borges informou que, nos inícios dos anos quarenta, fez parte de um grupo de “anglicistas” de Buenos Aires, que se propunha levar a cabo a primeira tradução de “Ulisses”, em língua espanhola. Reuniam-se uma vez por semana para assentarem critérios e anteciparem dificuldades. Quando já tinha decorrido perto de um ano – e eles sempre na fase da discussão prévia... – um dos do grupo, que se tinha atrasado, entrou de rompante no local onde se encontravam, brandindo um grosso volume. E anunciou: “Acaba de sair a tradução do “Ulisses”!” Borges, à guisa de comentário, acrescentou: “E era muito má!” Um dos jovens que, agora, em 1967, assistia a esta fala do mestre, comentou: “Pode ser, mas se assim é, o senhor Salas Subirat é o maior escritor de língua espanhola!”
Saer continua o seu artigo com um conjunto de informações e reflexões sobre as traduções de “Ulisses”, algumas de cunho erudito, como a do académico e anglicista Valverde. E formula uma opinião muito curiosa: a de que a tradução de Salas Subirat tem virtualidades que nenhuma das outras apresenta – Subirat era um cidadão de Buenos Aires, autodidacta e homem dos sete ofícios. Trabalhou como agente de seguros, o que o levou ao calcorreio da cidade e à confraternização com as suas gentes. Escreveu várias obras, uma sobre a teoria e a prática dos seguros, outras de aconselhamento e ajuda aos seus concidadãos. Em suma, uma personagem identificável, em muito, com Bloom, o herói de “Ulisses”. E seria essa vivência que ele teria trazido para a sua tradução. Saer pergunta, ainda: não será esta a melhor garantia de uma boa tradução – a que é feita por alguém que capta o espírito da obra e o verte para uma língua diferente? Talvez. Mas talvez melhor seria se essa vivência pudesse ser servida pelo rigor científico do especialista...
Estas reflexões levaram-me a pensar nas duas traduções do “Ulisses” publicadas em Portugal: a de Houaiss (na Difel) e a de Palma-Ferreira (nos Livros do Brasil). E, neste caso, a minha preferência é idêntica à de Saer, pois vai para Palma-Ferreira, homem de cultura, sem dúvida, mas, de modo algum, um especialista de nomeada na linguística, “como é o caso de Houaiss, autor do mais celebrado dicionário de língua portuguesa”.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Carta ao Escritor*


Escritor amigo
O teu livro chegou a este lugar longe, onde vivo, a este deserto, as tuas palavras, em viagem, aguentaram ventos fortes, chuva abundante, intempéries.
Aqui, elas deixaram uma ronco no meu ouvido, deixaram um incomodo e um conforto.
Revelaste-me uma verdade nessa tua simples história, a verdade necessária para me salvar desta fome, desta sede.
Por aqui, secretamente, os políticos e os funcionários fecham bibliotecas, enchem de livros vazios as livrarias, entretêm as pessoas com outras coisas para elas não sentirem a fome e não procurarem esse alimento.
Sei que também tu tiveste que subir a uma montanha alta gelada para não te impedirem de escrever, porque são grandes as desvontades.
Tiveste que te pôr nu dentro de ti, porque só assim pude fazer dessa tua narrativa a minha realidade.
Agradeço-te desde já esse esforço, tentarei fazer por ti alguma coisa, porque estou eternamente agradecido pelo o que me deste, e não foi só um livro, foi uma vontade em sobreviver, uma fórmula secreta de me salvar, uma antídoto para um certo veneno que anda no ar.
Ainda mais te agradeço pelo momento que me deste de prazer, pois as tuas palavras fizeram eco dentro de mim, e ao lê-las estremeci.

Assinado
O Leitor



* A propósito do livro de David Toscana "O Último Leitor"

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Livros do Desassossego

“Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?”
“Do que sou numa hora na hora seguinte me separo; do que fui num dia no dia seguinte me esqueci.”
Composto por Bernardo Soares,
ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.

Experiências radicais levadas a cabo por Cortázar e, Calvino entre outros, nas décadas de 1960 e 1970, procuraram romper com o dogma fundamental da prosa literária, a linearidade narrativa. Experiências semelhantes já tinham sido testadas pelos surrealistas. Mas a novidade introduzida por Cortázar e Calvino foi a infiltração de elementos aleatórios, através dos quais era dada ao leitor a possibilidade de encontrar nas distintas ordenações dos textos apresentados a narrativa que lhe mais aprouvesse. A unicidade do texto deu lugar à multiplicidade de hipóteses construtivas. À imaginação de cada leitor era dada a oportunidade de participar no processo criativo. Era-lhe facultada a hipótese de inúmeras revisitações à matrix dos textos básicos que podiam então ser justapostos de formas distintas dando origem aos mais variados livros.
Esta perspectiva leva-nos a especular que só a ruptura da linearidade narrativa poderia mitigar o desassossego que a ordenação dos textos que compoem o Livro do Desassossego (L. do D.) tem causado nos especialistas.
Pela sua natureza confessional e de registo de impressões, sensações vividas e sobretudo sonhadas, o L. do D. não permite qualquer ordenação definitiva. O próprio Pessoa, referindo-se a esta obra em cartas a Casais Monteiro, Sá-Carneiro e outros, sugeria que a ordenação dos textos era um dos aspectos mais problemáticos na preparação do livro.
Na sua primeira edição em 1982 a organização dos textos foi elaborada por Jacinto do Prado Coelho, que muito elegantemente alerta para a subjectividade da ordenação proposta, deixando claro que a sua era uma das leituras possíveis do L. do D. Mas o próprio chega a referir uma possível apresentação desordenada dos fragmentos, embora esta, na sua opinião, só seria acessível a um número restrito de leitores. Rejeitando a ordenação cronológica, dado que uma grande parte dos fragmentos não se encontravam datados ou não eram datáveis, propôs uma ordenação por “zonas de relativa homogeneidade” temática. A mais recente edição do L. do D., organizada por Richard Zenith parece seguir a mesma lógica, com especial zelo contudo, na origem dos fragmentos a incluir e a excluir.
Assim, as edições disponíveis do L. do D. não são só apresentações de mais um mistério Pessoano, desta feita sob a forma do semi-heterónimo Bernardo Soares, mas também um repto aos especialistas para que proponham leituras alternativas.
Longe de pretender apresentar qualquer sugestão fundamentada ou minimamente douta sobre a matéria, parece-me lógico que a hipótese da “desordenação” dos fragmentos deveria ser por todos os leitores experimentada. Suponho que o leitor encontraria na sua ordenação dos fragmentos o desassossego que mais lhe inquieta, o seu desassossego. Possivelmente, depois desta leitura personalizada, o enigma ser-lhe-ia menos assombroso, dado que das mútliplas leituras dos fragmentos do L. do D. surge precisamante o que o livro mais reclama, a unidade do seu autor.
Creio que a leitura “caótica” do L. do D. permite um melhor entendimento da profunda humanidade do ajudante de guarda-livros que passa as noites a escrever no seu modesto quarto, e a do seu colega Moreira, e a do patrão Vasques, e a de outros personagens, que embora anóminos, podem ser identificados no quotidiano de todos nós.
Naturalmente, a sugestão proposta, vale apenas enquanto experiência subjectiva que me permitiu melhor compreender que não é só o Sr. Soares que sente a expansão da alma ao aprender com Caeiro: “Porque eu sou do tamanho do que vejo/E não do tamanho da minha altura.” Quem não se sente pasmado com a descoberta de ser do tamanho do que se vê? Creio que uma uma leitura personalizada do L. do D. é uma dilatação do pensamento que nos coloca diante da “existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícicos do conhecimento”, a matéria prima dos sonhos, as “maravilhas fluidas da imaginação”.
Orfeu B.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

DAVID MACHADO, FUTURO GRANDE ESCRITOR?




David Machado é um jovem autor que acaba de publicar um livro de contos, “Histórias Possíveis” (Editorial Presença), com o qual ganhou o Prémio Branquinho da Fonseca, em 2005. São 16 pequenas histórias, quase todas de 5/6 páginas, justa medida para a sua inspiração. Estão neste caso “Zanga de Padres” e “O Gladiador”, duas histórias com um fino sentido de humor, uma a situar-se no plano do mágico, outra no absurdo de situações do nosso quotidiano.
Histórias bem contadas (sempre na perspectiva de um observador – directo ou indirecto), numa escrita inteligente e imaginativa, por vezes a denotar uma excessiva facilidade, mas sem cair no lugar comum ou na banalidade. Uma linguagem atravessada por um fio de ironia, centrada numa adjectivação imprevista, a recentrar o sentido da frase e a revelar o gozo que o autor terá experimentado ao urdir a trama em que envolve as personagens.
E uma pergunta a impor-se: o que significa escrever assim quando se tem vinte e tal anos? Que estamos perante um escritor de grande futuro? Um grande contista ou um grande romancista? Difícil, senão impossível, uma resposta precisa. Mas uma coisa é certa: que estamos perante alguém que tem uma relação estreita e pessoal com a expressão escrita, uma escrita plena de virtualidades.