terça-feira, 31 de março de 2009

Antígona no século XXI



Reler um texto clássico decorridos 35 anos dá-nos uma perspectiva, ainda que muito pessoal e limitada, do mistério da sua prevalência. Recordo-me também da alegada surpresa de Marx relativamente à capacidade que os textos de Sófocles, Shakespeare e outros têm de manter intacta a sua força dramática apesar de se terem dissipado os conflitos económicos e sociais em cujo contexto foram concebidos.

Para além do milagre da sua sobrevivência literária, Antígona de Sófocles é um texto misteriosamente contemporâneo. Para prová-lo sucedem-se edições, estudos e representações desta peça, provavelmente escrita em 442 a.C., e que nos relata como a pungente tragédia do parricida e incestuoso Édipo se estende à sua descendência.

A trama é bem conhecida:

Polinices e Etéocles, filhos varões de Édipo, morrem às portas de Tebas, um pela espada do outro. Polinices havia formado uma aliança com os guerreiros de Argos para derrubar a tirania do tio Creonte, irmão de Jocasta, mãe e esposa de Édipo. Em nome da defesa e coesão da polis, Creonte concede a Etéocles honras duma sepultura de estado, e ordena que Polinices permaneça insepulto, sem as devidas homenagens fúnebres.

Recai assim sobre a consciência das irmãs de Polinices, Antígona e Ismênia, o dilema de acatar a lei imposta por Creonte ou seguir a lei divina, não escrita, de que as mulheres da família (e não só, como se verá) honrem os seus mortos. Antígona escolhe seguir a lei divina e convida Ismênia a secundá-la no cumprimento dos rituais fúnebres. Ismênia, temendo a reacção de Creonte, tenta dissuadir a irmã e não toma parte na desobediência.

Sem temer as consequências, Antígona cobre o cadáver de Polinices com uma fina camada de poeira. A notícia de que o decreto de Creonte fora violado não tarda a espalhar-se e Antígona é descoberta. De modo a evitar um derramamento de sangue que poluiria a polis, Antígona é condenada a ser emparedada viva. Entrementes, o obstinado Creonte é advertido pelo vidente cego Tirésias que por atentar contra as leis divinas, a ira dos deuses recairá sobre a sua própria descendência. Ciente da decisão de Hêmon, filho de Creonte e noivo de Antígona, de morrer com a sua amada por não conseguir demover o pai e salvar Antígona, o velho Tirésias acaba por convencer Creonte da inevitável maldição dos deuses. Creonte decide então sepultar Polinices e dirige-se à gruta onde Antígona fora aprisionada para libertá-la. Mas ao chegar ali ouve um grito de dor e descobre Hêmon junto ao corpo de Antígona que se havia enforcado com o próprio cinto. Hêmon responsabiliza Creonte pela morte da amada e desfere-lhe um golpe de espada. Creonte esquiva-se do golpe, mas de seguida Hêmon crava a espada contra si mesmo. Creonte desolado toma o filho nos braços e leva-o para seu palácio. Mas, a notícia do triste desenlace é mais rápida, de modo que ao chegar, encontra Eurídice sua esposa, já sem vida, vítima também de um golpe de auto-mutilação. A rainha morre culpando o marido pela morte do filho. Ao rei amaldiçoado cabe a infelicidade de sobreviver à tragédia e viver sob o signo do desejo da própria morte.

Como nos faz saber a Professora Maria Helena da Rocha Pereira através das notas explicativas que acompanham o texto da edição da Fundação Calouste Gulbenkian, não há consenso entre os estudiosos relativamente ao verdadeiro tema da tragédia: Conflito entre o amor ideal da família, praticado por Antígona, e a lei do estado incarnada por Creonte, conforme Hegel?; Embate de vontades, de acto contra acto, ou de princípios civilizacionais distintos, segundo outros estudiosos?; Conflito entre a moralidade privada contra a do estado?; Defesa da fundamental liberdade e autonomia da vontade individual na sua relação com a polis?

Penso que estas interpretações são todas correctas, pelo menos segundo a hierarquia de valores de suas premissas. Contudo, esta hierarquia não é necessariamente a mesma da dos tempos de Sófocles, e suponho que nunca será possível sabermos ao certo qual o grau de proximidade entre valores éticos em períodos históricos distintos. Mas a universalidade da temática e a intemporalidade do conflito não nos deixa indiferentes. A leitura de Antígona comove-me hoje como me comoveu há 35 anos. Certamente, não pelas mesmas razões, o que me faz pensar que as diversas interpretações da tragédia sejam todas complementares.

Tal como muitos estudiosos, julgo que para além das figuras, uma parte essencial da trama é desempenhada pelo Coro. Vacilante e ambíguo na sua posição, o Coro apoia inicialmente o decreto de Creonte, mas muda de opinião depois da admoestação de Tirésias. Esta oscilação parece-me ser a chave, pois está implícita na muito explícita e bela “Ode ao Homem” que se inicia da seguinte forma:

“Muitos prodígios há; porém nenhum maior do que o homem.”

Uma inequívoca afirmação da superioridade do ser humano, e que prossegue com a enumeração de vários marcos de progresso, a agricultura, a domesticação dos animais etc, culminando com a ciência de viver em sociedade e com a do uso da palavra não corrompida, na sua forma mais pura: a da arte política. Mas parece-me haver nas entrelinhas desta homenagem à polis, uma mensagem. A ideia de que a polis transcende o poder político e que só é verdadeiramente superior ao incorporar a compaixão e a humanidade de forma integral. Só assim se compreende as razões pelas quais as leis da polis não podem estar acima das leis da compaixão e das leis não escritas. Só assim a polis é o maior dos prodígios.

Mas quanto ao drama das figuras, Sófocles parece não deixar dúvidas: recai sobre os que sobrevivem o maior sofrimento.

Orfeu B.


domingo, 29 de março de 2009

UM AUTOR NA ENCRUZILHADA DO CONTO E DO ROMANCE





As relações entre contos e romances, entre contistas e romancistas já têm sido por mim abordadas em várias ocasiões: contistas que nunca foram romancistas, embora o desejassem, romances que tiveram um conto na sua origem. Mas não é vulgar o que aconteceu com Paolo Giordano, jovem escritor italiano. Giordano escreveu um romance, “A Solidão dos Números Primos” (Bertrand Editora), a partir de dois contos. Dois contos com que se inicia a obra, dois contos autónomos, que o autor, posteriormente (pelo menos, assim o diz), desenvolveu, entrelaçando factos e personagens, a fim de dar conteúdo a uma trama romanesca. Não creio que o resultado tenha sido brilhante. Se aqueles dois contos são magníficos, o romance a que deram origem já o não é. Dois contos construídos a partir da solidão e da violência psicológica sofridas por duas crianças. Dois contos que não podemos desligar da grande literatura italiana do século XX (Italo Calvino e Dino Buzzati nela incluídos). Dois contos em que a criança, confinada à sua solidão, tem de tomar decisões cujas consequências põem em risco a sua vida ou a de outros. Consequências que são a razão de ser do romance de Giordano.
Eis, pois, um exemplo das relações difíceis entre o conto e o romance. E, claro, da sedução que o romance exerce sobre muitos contistas. Nem todos tiveram a lucidez ou a força de Jorge Luís Borges, que sempre se assumiu como contista e nada mais do que contista.
Pela reflexão que pode originar, pela excelência daqueles dois contos (“O Anjo da Neve” e “O Princípio de Arquimedes”), pela raridade de traduções de obras da moderna literatura italiana, estou em crer que a leitura de “Solidão dos Números Primos” é algo que se impõe a quem quer conhecer novos autores, outras literaturas.

sábado, 21 de março de 2009

"DAISY MILLER", na Patine do Tempo




A editora Veja publicou uma obra de Henry James, intitulada “Daisy Miller”. Nela, incluem-se quatro contos longos, o último dos quais, “Daisy Miller”, dá título à obra. Publicado pela primeira vez numa revista inglesa, em 1878, este conto guarda o mesmo encanto que maravilhou várias gerações dos seus leitores. O mesmo ou outro, ainda maior, que a poeira dourada do tempo põe em tudo o que é belo.
“Daisy Miller” é um texto “avant la lettre”, que os editores americanos da época não quiseram publicar, receosos do escândalo que poderia provocar. A liberdade, a ingenuidade, a simplicidade, a ousadia, a inocência de Daisy não se adequavam aos padrões da burguesia endinheirada da costa leste. Jovem de grande beleza, Daisy atravessa os círculos em que se movem os americanos residentes em Roma, sem se preocupar com as conveniências, as normas sociais que os regem. Enfim, uma americana na Roma conservadora de finais do século XIX, a passear a sua liberdade, a deslumbrar-se com os aspectos mais evidentes e superficiais de uma sociedade e de uma cultura, de que tudo desconhece, tão diferente (e até oposta) ela é da sociedade americana. Poder-se-á dizer que, com este texto, Henry James inaugura uma nova temática, que vai ter o seu apogeu na primeira metade do século XX: a do romance que dramatiza a vivência dos norte-americanos na Europa.
“Daisy Miller” é um texto de escrita contida, eivado de um erotismo difuso e, acima de tudo, um tratado de caracterização psicológica de personagens (personagens de outra época, mas tão profunda e subtilmente caracterizadas que são de todas as épocas). Caracterização dinâmica e evolutiva, feita em situações de interacção social, distinta da caracterização estática do romantismo, em que a personagem é definida (e existe) por si própria, independentemente da sua esfera relacional – o que confere a Henry James uma modernidade evidente.
Daisy, a figura central da obra, personifica a mulher que abre caminho para os tempos modernos, em libertação de tabus de séculos anteriores. Mulher-símbolo das mulheres das primeiras décadas do século XX, que têm como expoente maior Isadora Duncan, outra americana sequiosa de autenticidade e de liberdade, que galvanizou e escandalizou a Europa com a sua vida e a sua dança. Também por isso, podemos considerar James como um precursor do ser e do estar de um tempo que ainda não era o seu.

quarta-feira, 18 de março de 2009

ELOGIO DA AMABILIDADE



As histórias de Sepúlveda viajam pelas zonas da pobreza, da vida nos recantos mais carentes do mundo, da miséria mais negra, da luta contra ditaduras inomináveis, da tortura e da violência mais crua. Mas nunca se despe do sonho, do humor, do sentido de solidariedade e camaradagem. Acabo de ler cada livro seu e sinto-me em paz com a nossa tão precária condição humana.

Na escrita de Sepúlveda há sempre uma imensa amabilidade perante o Homem, os seus sonhos e as suas utopias. E o curioso é que tenho reconhecido essa mesma amabilidade como marca de vários escritores, poetas e prosadores, do Chile. A começar em Neruda e Gabriela Mistral (ambos Prémios Nobel) a continuar em Skarmeta (autor de "O carteiro de Pablo Neruda"), em Hernán Rivera Letellier (de quem a Quetzal publicou há anos dois deliciosos romances, "A rainha Isabel não cantava rancheras" e «Miragem de amor com banda de música") nalgus livros de Isabel Allende e nalguns outros escritores chilenos que tenho lido.

Desses só em Bolaño, tão cantado recentemente, não senti essa doçura talvez nostalgica que se espalha nos livros de tantos outros seus compatriotas.

Sobre Bolaño, escritor que me atrai e me incomoda (e de quem já li "Estrela distante" e "Nocturno chileno"), hei-de tentar escrever um dia destes mas só depois de ler "Os detectives Selvagens".

E volto a Sepúlveda e a estes seus contos para dizer que acabei de os ler com a mesma sensação de amabilidade na escrita redonda e no olhar sobre os homens e sobre o mundo.

Cruzam-se neste livro memórias reais, memórias ficcionadas e puras ficções. Pequenos textos que nos levam de Hamburgo à Patagónia com passagem pela Amazónia

Um sentimento caloroso perdura de página para página. Os exílios sucedem-se por geografias diversas num certo elogio da amizade viril e cúmplice em torno da mesa e do vinho.

Acima de tudo há uma palavra que sobressai destas histórias e que me toca, a palavra “camarada”. Soa bem. Soa a verdade. Soa a uma rede de gente que às vezes nem se conhece mas anda pelo mundo espalhando uma forma solidária e livre de viver.

Estas histórias nem sempre atingem o brilhantismo dos melhores livros do autor, nomemeadamente desse romance extraordinário que é "O velho que lia romances de amor". Aliás, num dos contos Sepúlveda desenterra as personagens desse romance. Não s eaproxima da força do romance original. “Um corpo não se repete na aurora…” diz mais ou menos assim o Lorca e talvez seja verdade.

Com uma ou outra fragilidade o livro sabe bem ler. E isso é a primeira grande qualidade que exigimos a um livro. É uma sopa quente, esta prosa de Sepúlveda. E, voltando ao início, o autor nunca deixa de ser amável mesmo quando trata dos lados mais negros da vida. E eu, como leitor, gosto de ser bem tratado porque "um homem precisa de ter sempre um pé na Primavera." como escrevia num poema o Fernando Assis Pacheco.

domingo, 15 de março de 2009

"O PRIORADO DO CIFRÃO" de JOÃO AGUIAR



Eu gosto de tudo o que os meus amigos escrevem. Excepto quando não gosto. Mas nesses casos só lho digo a eles.

O João Aguiar é um muito querido amigo com quem já partilhei várias aventuras da escrita desde a “Rua Sésamo” até àqueles 3 romances malucos que fizemos a 14 mãos com a Alice Vieira, o José Jorge Letria, a Luísa Beltrão, o Mário Zambujal e a Rosa Lobato Faria ("Os Novos Mistérios de Sintra", "O C´ódigo d' Avintes" e o "Eça Agora")

Sempre gostei da escrita e dos livros do João. Jornalista da velha guarda, ele sempre soube contar uma história como mandam as regras. Sem adornos, sem tremeliques, sem lágrimas fáceis ou emoções de pechisbeque. Sempre com ideias, consistência narrativa, literatura.

Sobretudo, sempre gostei da coragem do João em trazer a sua literatura para a praça da cidadania (de onde ela provavelmente não devia sair tão frequentemente).

O João não se despe das suas convicções, não vira as costas às grandes questões que nos preocupam a todos e atira-as descaradamente para o campo do romance. Bate-se pela língua portuguesa e pelo seu uso sem estrangeirismos. E não só pela língua, como pelos vinhos, pelos queijos, pela História, pela Pátria com letra grande.

Trabalhando particularmente bem os temas históricos, o João deu-nos alguns romances notáveis. “A voz dos deuses”, sobre a figura de Viriato, e que tem tido um tremendo e prolongado sucesso (vai perto da 30ª edição!), “A hora de Sertório” e “Uma deusa na bruma” que me entusiasmou imenso na abordagem excepcional que fez da luta entre a civilização castreja e a invasão do Império Romano.

Atacou em força o romance histórico numa altura em que não estava na moda. Foi um pioneiro dess corrente hoje fértil nos bons e maus exemplos que enchem hoje as nossas livrarias e de onde destaco dois belos escritores que são o Miguel real e o Sérgio Luís de Carvalho

A simplicidade de meios na escrita é a imagem de marca do João Aguiar. E simplicidade não quer dizer facilidade, como é óbvio.

O seu ultimo livro, o “Priorado”, vem embrulhado numa divertida trama policial e é uma feroz denúncia do neo-liberalismo e do consequente abandalhamento da sociedade portuguesa.

É de chorar o retrato certeiro dos tiques economistas dos nossos gestores e das suas estratégias oblíquas. Já para não falar nos americanos que vêm instalar toda a trama do Priorado (dos Priorados. Aqui é que é zurzir forte e feio. O João não os poupa, expondo tiques, trejeitos e vícios. Já para não falar dos interesses da Igreja que se cruzam e descruzam ao longo da trama. ´

O Priorado foi escrito antes desta crise que resultou do estoiro das estratégias neo-liberais em que estamos mergulhados e ainda não sabemos aonde nos vai levar. De alguma forma, anunciou-o. A brincar. E essa é uma das muitas funções da literatura, não é?

sábado, 14 de março de 2009

O LIVREIRO DE LISBOA, O ESCRITOR AMERICANO E OS SONHOS DE INVERNO



A viver e a trabalhar no mundo dos livros há mais de cinquenta anos, o senhor André, da Livraria Lácio, antiga 111, no Campo Grande, é um dos últimos verdadeiros livreiros de Lisboa. Alguém que conhece os livros, os autores, as edições. Sem um catálogo à sua frente, informa-nos do que se publicou ao longo do século XX. Sem catálogo, sem computador (aparato que nunca entrou, e, creio, nunca entrará na sua livraria), ele sabe onde se encontram os "seus" e os livros dos "outros", quem os escreveu, quem os editou. Às vezes, não chega imediatamente ao que se pretende, mas não desiste: "Deixe-me ver, esse livro teve uma primeira edição logo a seguir à Guerra, aí por finais dos anos quarenta..." E enquanto investiga na prateleira, vai-nos contando coisas do autor, coisas da época em que o livro foi escrito, uma história sobre o editor que o publicou. E quando pensamos que ele se tinha esquecido do nosso pedido, ei-lo com o livro na mão. Ou com a informação: "Tive-o cá durante muito tempo, mas vendi-o na semana passada. Vou ver se tenho outro exemplar no armazém, mas não me parece." E quando sabe que o comprador é alguém nosso conhecido, ele sugere: "Conhece Fulano, não conhece? Por que é que não lho pede emprestado?"
Não sei se devolve os livros aos distribuidores, pois vejo os seus fundos editoriais em permanente expansão. Mas a sua livraria não vive só dos livros que vão saindo, também se alimenta dos livros usados, que ele adquire e reabilita com o carinho de um verdadeiro bibliófilo. Um dia ,perguntei-lhe quantos livros teria na sua livraria, pergunta a que ele não soube responder. E como eu insistisse e aventasse um número (quarenta mil, não?), ele hesitou: "Aqui na livraria, não, mas com os do armazém..." Foi a primeira vez em que não me conseguiu dar uma informação precisa sobre livros.
Na sua livraria, não se utilizavam, até há muito pouco tempo, cartões bancários. Quando se comprava, pagava-se em dinheiro ou passava-se um cheque. Mas quando não se dispunha nem de uma coisa nem de outra, ainda poderia haver uma solução: ficava-se a dever, pois existia (e, penso que ainda existe) um livrinho de assentos dos fiados, pelo menos para os clientes mais fiéis.
Como ele conhece os meus gostos literários, reserva-me os livros de contos que vai adquirindo nas bibliotecas que arremata: "Veja se lhe interessam estes livros que me chegaram. Não creio que já lhos tenha vendido." E, como sempre, ele está certo. E foi assim que comprei alguns livrinhos de contos de autores americanos, publicados, nos anos cinquenta, sessenta, por editores portugueses. Entre eles, os "Sonhos de Inverno", de Scott Fitzgerald, editado pela Portugália, em 1965. E fiquei maravilhado. Eu já conhecia outros contos do autor, além dos romances clássicos, "O Grande Gatsby", "Terna é a Noite", mas nunca tinha lido aqueles continhos. O título da obra - "Sonhos de Inverno" - é o título do primeiro conto, mas podia aplicar-se a qualquer um dos cinco textos que a constituem. As histórias são diferentes, envolvendo personagens, locais e situações diversas, mas, em todas elas, a mulher tem um papel central. E, em quase todas, ela tem um estatuto de superioridade - moral, social, psicológica - em relação ao homem, que se limita a gravitar na sua órbita, em dependência do amor que ela lhe possa conceder. Em quase todas, pois em "Um Caso de Alcoolismo", a enfermeira que assiste ao doente famoso e tudo faz para lhe poder valer, depara-se com uma barreira que a sua solicitude não consegue transpor. É uma história forte, em termos temáticos, mas, a meu ver, a menos conseguida sob o ponto de vista da construção literária. Talvez porque se opera, nela, uma inversão de papéis, pois a mulher desempenha, aqui, o papel que, nas outras histórias, compete ao homem, o que fragiliza a caracterização das personagens e compromete a dramaticidade da acção.
"Sonhos de Inverno", os sonhos que se constroem no Inverno de todas as esperanças e que nos confortam com o calor da afectividade que permanece para além das contrariedades, da frustração da sua não concretização. E é exactamente essa capacidade de sonho para além da frustração que torna Scott Fitzerald um dos grandes construtores de personagens e situações da literatura americana. Por vezes, considera-se Fitzerald como um dos precursores do existencialismo em literatura. Admitamos que sim, mas apenas na medida em que resistir é existir.
Ora, também o meu ilustre amigo e livreiro, o senhor André, é um sonhador, sonhador descontente, decepcionado pelo que se passa no mundo da cultura em que vivemos. Mas que não desiste: continua a viver, sete dias por semana entre os seus livros, continua a promover os livros, continua a estar atento aos interesses dos seus amigos-clientes, continua a partilhar do prazer que os "seus" livros dão àqueles que os lêem: "Ah, sim... gostou dos "Sonhos de Inverno"? Fico muito contente!" E aquele que continua a sonhar no Inverno do seu descontentamento é alguém que continuará a existir, para além de todas as vicissitudes, de todas as contrariedades do viver quotidiano.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Secreções, excreções e desatinos – O Corcunda e a Vénus de Botticelli


Rubem Fonseca é dos escritores que eu gosto, que cultivo. Com este livro a minha admiração pelo escritor aumenta e alguns preconceitos em relação a ele reduzem-se. Nesta conjunto de contos redescobri uma outra faceta de Rubem Fonseca, a de escritor que respeita profundamente as mulheres, respeita-as e ama-as ao contrário que julguei noutros livros que li do autor, revendo tudo acredito que me enganei. 
São histórias invulgares que falam essencialmente de relações amorosas, de impossibilidades e possibilidades dessas relações. As secreções e as excreções são apenas alguns dos constrangimentos dessas relações.
O Corcunda e a Vénus de Botticelli é um dos contos que podem fazer parte do tipo de histórias e ensaios já aqui apresentados noutros livros, de outros autores, lembro-me do “Como falar dos livros que não lemos”, “O último leitor”, “A louca da Casa” ou talvez “Firmin” (estou a ler). São histórias que nos fazem visitar outras história, outros livros. Que nos ajudam a sair do livro que estamos a ler (a tragédia do leitor é conseguir ler, depois, outros livros). O corcunda desta história procura, com sucesso, seduzir as mulheres. É um acto de sobrevivência, ele conquista as mulheres mais bonitas. Neste caso Agnes, uma mulher a quem ele chama de Vénus. Utiliza a literatura como ferramenta, nesta mulher a poesia. A ler esta história visitamos os poetas, mas também visitamos uma reflexão sobre poesia, assim sem pretensões e outra secreções. 
Fica aqui um pouco:
“ Estamos neste jogo há muitos dias.
Lemos um poema sobre um sujeito que pergunta se ousará comer um pêssego.
Comer pêssegos?
Faço o jogo que ela quer:
Digamos que seja sobre a velhice.
E velhos não têm coragem de comer pêssegos?
Creio que é porque os velhos usam dentadura.
Pensei que poemas sempre falassem de coisas belas ou transcendentais.
A poesia cria a transcendência.
Odeio quando você de exibe.
Não estou me exibindo. As próteses não são apenas a coisa que representam. Mas umas são mais significativas do que outras. Implantes de pénis mais do que dentaduras.
Pernas mecânicas mais que unhas postiças?
Marca-passos cardíacosnmais do que artefactos auditivos.
Seios de silicone mais do que perucas?
Isso. Mas sempre transcendendo a coisa e o sujeito, algo fora dele.
Esse implante é muito usado? O do...
Do pénis? Coloca-se na posição de um homem que faz esse implante. Veja a singeleza poética desse metafísico gesto de revolta contra o veneno do tempo, contra a solidão, a anedonia, a tristeza.
...”

quinta-feira, 5 de março de 2009

OS CONTOS, FINALMENTE!

De vários quadrantes, chega-nos notícia do ressurgimento de um género literário que esteve em declínio durante as últimas décadas do século XX, ou seja, o conto. Ressurgimento que se tem feito sentir tanto em Espanha como em França. E, por arrastamento, em Portugal, como se comprova pelas traduções que vários editores vêm publicando. De referir será, ainda, o aparecimento de novos contistas portugueses, nomeadamente em 2008. De tal situação, tenho dado testemunho em algumas crónicas deste blogue.
A que se deve a ressurreição do conto? O que leva as casas editoras a integrar livros de contos nos seus catálogos? Algum cansaço dos leitores dos romances “peso-pesados”, de 500/600 páginas? A constatação de que o conto (pela sua pouca extensão, concisão, intensidade e dinamismo da acção) corresponde ao ritmo da vida actual? É possível que estas sejam algumas das razões, estas e algumas mais.
A “Babélia”, suplemento cultural de “El País”, traz, num dos seus últimos números, um dossiê sobre o tema, em que sobressaem alguns artigos, nos quais se analisa o que se está a passar em países de língua espanhola. Note-se que os países de língua espanhola da América do Sul e Central sempre deram primazia ao conto, à novela curta. Países em que os contitas alcançaram a fama que só aos romancistas era concedida noutros países, incluindo a própria Espanha (veja-se o caso de Borges, Cortázar, Onetti).
Além das razões apontadas para o florescimento do conto, algumas mais são referidas no dossiê da “Babélia”. A internet e a blogosfera, pela sua natureza, são veículos privilegiados para a sua difusão. Por outro lado, as pequenas editoras, de meios financeiros limitados e necessidade de encontrarem novos nichos de mercado, têm contribuído para o aparecimento de novos contistas ou para a reedição de obras clássicas, caídas no domínio público. Esta tendência é acompanhada por uma orientação livreira, que concede espaços para livros de contos ou que privilegia este género literário – o caso mais evidente é a livraria “Três Rosas Amarillas” (nome que é uma homenagem ao conto de Carver, que narra o último dia de vida de Chekov), em Madrid, exclusivamente dedicada aos contos.
As características do conto actual exprimem, mais do que o romance, muito do que é o homem do século XXI. É isso que nos diz o escritor espanhol Juan Eduardo Zuniga: “A precisão, a intensidade e o vertiginoso, que caracterizam o conto de hoje, adequam-se ao leitor apressado, até porque a história narrada é imediata. Talvez esta rapidez do conto reflicta hoje o fraccionamento e a rotura de âmbito psicológico do homem actual”. Interessante será ainda referir que muitos contos são escritos num ritmo frenético, que é o ritmo da nossa vida. Contos escritos num arrebatamento que se apodera do seu autor e que não o deixa fazer mais nada enquanto não termina o seu escrito. Contos a que Cortázar, que conhecia bem este estado de exaltação criadora, chama “contos contra-relogio”. Contra-relógio como a nossa vida quotidiana…