quarta-feira, 29 de julho de 2009

Pequenos poemas em prosa




Esta vida é um hospital onde cada enfermo vive ansioso por mudar de leito. Este desejaria sofrer diante da lareira; aquele pensa que se curaria ao pé da janela.
   Tenho a impressão de que estaria sempre bem lá onde não estou, e este problema de mudança é um dos que eu discuto sem cessar com a minha alma.

Charles Baudelaire.


Pequenos poemas em prosa, incialmente lançado com o título, Le spleen de Paris, é um livro absolutamente soberbo. Publicado postumamente, os textos que compõem os Pequenos poemas em prosa demonstram abundantemente a plenitude de um escritor para o qual prosa e poesia não têm fronteiras. Conjuntamente com as Flores do Mal, este livro é um dos pontos de partida da modernidade pós-romântica, uma pedra de toque de praticamente quase tudo o que subsequentemente se escreveu na literatura ocidental. 

Mas se a genialiadade de Baudelaire foi reconhecida por muitos dos seus contemporâneos, não se pode falar de forma alguma em glória literária. A breve vida do artista, que morreu as 46 anos, foi amarga, pontuada pela penúria material, pela desilusão amorosa, pela perseguição de credores e por um ridículo processo judicial pela suposta obscenidade de sua arte. Mas, como pode um artista sobreviver a tais vicissitudes? A resposta vamos encontrá-la nas páginas dos Pequenos peomas em prosa: através da perspicaz radiografia da vida e de seus pequenos incidentes, através da pintura dos acontecimentos com verve, humor e auto-ironia. Sobrevive o artista pelo aperfeiçoamento da sua arte, pela perseguição de um ideal de perfeição estética que não encontra modelos no seu tempo, mas que vai sendo forjada ao longo do seu percurso fundador.

E através de um delicioso percurso literário leva-nos Baudelaire a viajar por entre as nuvens, por entre a bizarria de certos caprichos, pelos prazeres da carne, pela mundana maldade, pela obstinada generosidade, rara, mas apesar de tudo activa, pela preguiça e pelo tédio, e por diálogos filosóficos com um sofisticado diabo que, muito digno, nunca se furta de cumprimentar com cordialidade, o senhor bom deus, o seu milenar adversário. 


E para os que por ventura desconfiam da descrição hiperbólica que vos faço desta magnífica obra, permitam-me exemplificar com um breve texto. Exemplo que revela que o autor dos Pequenos poemas em prosa esteve, muito antes do que outros, a dar uma volta (take a walk) no wild side:


Perda de Auréola

- Mas o quê? você por aqui, meu caro? Você em tão mau lugar! você o bebedor de quintessências! você, o comedor de ambrósia! Francamente, é de surpreender.
- Meu caro, você bem conhece o meu pavor dos cavalos e das carruagens. Ainda há pouco, quando atravessava a toda pressa o bulevar, saltitando na lama, através desse caos movediço, onde a morte surge a galope de todos os lados a um só tempo, a minha auréola caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que ter os ossos rebentados. De resto, disse com os meus botões, há males que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações vis, e entregar-me à crápula, como os simples mortais. E aqui estou, igualzinho a você, como está vendo!
- Você deveria ao menos pôr um anúncio, ou comunicar a perda ao comissário.
- Ah! não. Estou bem assim. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. Depois, alegra-me pensar que talvez algum mau poeta encontre a auréola e com ela impudentemente se adorne. Fazer alguém feliz, que prazer! e sobretudo um feliz que me fará rir! Pense no X., ou no Z.! Xi! como será engraçado!

Finalmente, também digna de nota é a elegante tradução para o português, versão brasileira, de Aurélio Burque de Holanda Ferreira, para a edição de 1976 da Editora Nova Fronteira do Rio de Janeiro. 



Orfeu B.


domingo, 26 de julho de 2009

REQUIEM PELOS POVOS ELEITOS




O escritor israelita David Grossman apresentou, numa das últimas edições da Feira Internacional do Livro de Jerusalém, um texto corajoso, que o jornal “El País" publicou. Esse texto, que tem por título "Ver a Realidade através dos Olhos do nosso Inimigo", aborda uma questão central para a paz no Próximo Oriente, ou seja, a urgência de os israelitas se colocarem no lugar dos palestinianos e, assim, começarem a abandonar a sua postura de povo eleito, eterna vítima dos que o não são... O que implica uma outra consequência, não menos marcante: a necessidade de tomarem consciência de que a sua história não é a "História da Humanidade", mas tão só uma história entre muitas outras. O que, por outras palavras, se pode pôr de um modo ainda mais simples: não há povos eleitos, não há histórias centrais - todos são filhos de Deus...
Este modo de colocar a questão fez-me lembrar o que se passava com algumas literaturas nacionais, na primeira metade do século XX. Mais propriamente, com a literatura francesa. Tudo o que não fosse francês era considerado marginal ou secundário. Inclusivamente, os grandes autores americanos, apenas tolerados quando incluíam Paris nos seus itinerários literários... E só muito gradualmente é que as coisas se foram alterando. A pujança da cultura americana e o seu poder de penetração foram as alavancas principais dessa mudança, mudança relativa - note-se - pois a maioria, a grande maioria, das obras editadas em França continuou a ser de autores franceses - independentemente do seu mérito literário. Evidentemente que outros factores também exerceram a sua influência, como, por exemplo, a boa recepção que as obras francesas sempre tiveram nos Estados Unidos da América. Mas, o que, em última instância, originou a viragem foi a tomada de consciência, por parte de editores, de leitores franceses, do espartilho que os sufocava, ou seja do empobrecimento a que o seu ensimesmamento os estava a condenar, privando-os do conhecimento de outras literaturas, tão ricas como a sua.
Em última instância, as coisas não se passarão de modo muito diferente nas relações entre o povo israelita e o povo palestiniano. O fechamento de um engendra, forçosamente, o do outro. E, quando um se julga o eleito de Deus, é evidente que lhe compete tomar a iniciativa. A "revolução" terá, pois, de vir de dentro, do sentir, do pensar de Israel, da sua tomada de consciência de que o mundo mudou e de que uma nação, uma raça não têm o monopólio da Verdade. Se o não fizer, comete o mais estúpido dos suicídios: o da autodestruição progressiva, a que toda a centração auto-umbilical forçosamente conduz. No mínimo, condenar-se-á à marginalização, a um papel secundário, num futuro em que a universalidade é o horizonte. O que, aliás, esteve em riscos de acontecer com a literatura francesa - e, de algum modo, não acontecerá, ainda?

sábado, 18 de julho de 2009

A MINISTRA




Os poemas de O’Neill que abrem e fecham esta narrativa, “Poema pouco original do medo” e “Perfilados de medo”, tornam explícito que este livro é um panfleto. Um acto de cidadania de um escritor que é também professor (de Filosofia).

Mas não nos enganemos. O livro está muito além da função estrita do panfleto pois trata-se também de um belo momento de literatura. E aqui reside a originalidade do autor. “A Ministra” é e não é a ministra em que todos pensam quando olham para a capa do livro.

Não é porque Miguel Real inventa uma personagem completamente ficcional. Atribui-lhe um passado. O pai assassina a mãe adúltera. A menina que desde muito pequena gosta de arrancar as cabeças das bonecas, assiste ao assassinato e é depois criada primeiro por um tio-pai, sargento da GNR, expulso da corporação por corrupção passiva e caixeiro viajante de uma fabriqueta de lanifícios. A tia-mãe é medíocre, pequenina e trata com violência a menina que, depois da morte do pai, vai para um orfanato.

A “heroína” da história consegue estudar e tornar-se professora, primeiro do ensino secundário e depois da faculdade. Odeia tudo e todos e sobe esforçadamente na vida à custa de manha, de expedientes, de uma total falta de escrúpulos e acaba por fazer uma tese de doutoramento sobre: Como manipular dados estatísticos de modo a evidenciar resultados não existentes na realidade.

Mas esta ministra é também aquela outra em que todos pensam porque a sua ideologia (por vezes torpe, por vezes absurdamente cómica) reflecte muito do que está por trás da política da educação dos últimos anos, que se consubstancia quebra radical da qualidade pedagógica, na derrota do humanismo como grande matriz do ensino, na desvalorização da figura do professor e da própria ideia de saber.

Mas desenganem-se os que pretendam ver aqui um olhar maniqueista. O autor não deixa de fazer, pela voz da personagem/ministra, um retrato por vezes duro e inflexível dos vícios de uma certa forma rançosa e pouco séria de ser professor, que também existe e existiu durante muito tempo. Mas tenhamos a certeza de que foi à sombra dessa manha que cresceu a ideologia que agora domina e tende a destruir a ideia de ensino e de saber em favor de um conceito de creditação.

O brilhante exercício de escrita de Miguel Real leva-nos num rodopio imparável através de informações, reflexões, através da própria escolha vocabular, no desenvolvimento de uma panóplia estilística que forma como que uma prisão de palavras em que a personagem/ministra fica presa e se desnuda sem nada que possa salvá-la da vergonha de ser exposta ao escândalo e, quiçá, ao escárnio das pessoas de bem.

No final do livro a Ministra/personagem, que sonha chegar a primeira-ministra e mesma a presidenta, acaba por não ver ser-lhe confirmado o convite para o cargo, em benefício de alguém mais bem colocado na hierarquia partidária.

Estas são as voltas da ficção que, através do privilégio do ofício de manipulação do escritor, acaba com um final quase feliz, ao contrário da realidade onde o final se vai arrastando em cores demasiado autoritárias e negras.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

LAURENT GAUDÉ, UM CONTISTA CHEIO DE VIRTUDES





Laurent Gaudé é um escritor francês, relativamente jovem, que publicou vários romances e alguns contos. Contos que a ASA editou sob o título “Noite Dentro, Moçambique e Outras Narrativas”. Quatro histórias, abordando diversos temas, em contextos diferentes. De entre essas quatro histórias, destacarei a primeira, “Sangue Negreiro”, não só pelo tema, mas também pelo modo como é tratado.
No porto de Saint-Malo, um escravo negro foge do navio em que vinha e vagueia pelas ruas daquela cidade francesa. Cidade que se mobiliza para lhe dar caça, em cooperação com a tripulação do barco. Como não se lhe consegue encontrar o rasto, a população entra em pânico, temendo que o fugitivo possa vir a cometer os crimes mais hediondos. Um medo antigo, feito de irracionalidade, que se intensifica e alastra quando começam a aparecer, pregados nas portas das casas das pessoas gradas da terra, dedos ensanguentados de um negro. O oficial, que exerce as funções de capitão do veleiro de que se escapuliu o negro, sente-se responsável pela situação e crê que as gentes da cidade assim o consideram. E que o olham com desconfiança e hostilidade, o que lhe provoca uma forte insegurança – e um medo crescente. O que o leva ao enlouquecimento, lento mas inexorável. Numa linguagem nervosa e eivada de humanidade, mas primando pela obediência a um cânone clássico, Laurent Gaudé descreve com rigor e profundidade as grandes emoções das multidões e nelas enquadra os sentimentos e as acções dos indivíduos que com elas interagem (ou nelas se incluem). Sempre dentro de um clima de mistério, a roçar o sobrenatural. Enfim, um exemplo de um bom conto, simultaneamente clássico e moderno. E, acima de tudo, muito bem escrito.









O mel do leão




Apesar de ser o livro mais publicado de sempre, e supostamente o mais lido, a Bíblia é muito possivelmente uma das mais misteriosas reuniões de textos. A origem dos vários livros que a compõe, a sua laboriosa reunião, a ética e lógica subjacentes compreendem uma elaborada explicação histórica, e pressupõem um conjunto extraordinário de circunstâncias para garantir a continuidade do exercício de elaboração, compilação e reunião.
Naturalmente, o facto de serem algumas de suas partes instrumentos fundadores de três das mais representativas religiões da Humanidade, não permitiu durante muitos séculos, que os vários aspectos deste fundamental livro fossem objecto de estudo. A impermeabilidade da fé, não exige maiores questionamentos. A palavra de deus existe simplesmente e não requer explicações. Mas para além do carácter fundador, há objectivos histórico-políticos muito bem definidos. Visa a Torá hebráica, ou o Velho Testamento, garantir a coesão e a continuidade do povo de Israel através da sua adesão a um código ético explícito com deliberações negativas e positivas. O Novo Testamento, tem como objectivo difundir os ensinamentos do rebelde Jesus tornado deus na terra, estendendo e universalisando o código ético do Velho Testamento, procurando desta forma elevar o nível ético da Humanidade. As implicações histórico-políticas desta expansão são bem conhecidas.
É bem sabido que o património intelectual do Judaísmo compreende também exegeses e discussões rabínicas de episódios da Torá, da lei e da ética, reunidos no Talmud ou Gemara. Porém, estas discussões tendem a aguçar ainda mais o extraordinário da narrativa e o seu mistério. Por sua vez, o Novo Testamento é composto por uma selecção "politicamente correcta" de relatos da vida de Jesus de Nazaré, sendo assim um texto mais depurado. Mas não podemos esquecer que para muitos, a modernidade teve início no século XVII quando Spinoza, defende a necessidade de uma leitura exclusivamente secular da Bíblia. Educado no seio da ortodoxia judáica, que acaba por renegá-lo em 1656, Spinoza distancia-se das correntes espirituais do seu tempo ao defender que Judaísmo e Cristianismo deveriam ser reestruturados através da crítica racional e dum programa de reforma fundado na leitura crítica da Bíblia. É este espírito que motiva o livro de David Grossman sobre o mito de Sansão.
Sansão, o israelita que matou com as próprias mãos um leão e que, cerca de um ano depois, tirou o mel das abelhas que se instalaram na carcaça do leão morto para regalar os seus pais, é sem sombra de dúvida, digno de dissecação literária, histórica e psicoanalítica.
Enviado por Deus, para libertar os Israelitas da opressão dos Filistinos, um povo guerreiro que vivia a oeste de Israel, às margens do Grande Mar e que adorava o ídolo Dagon, uma criatura com corpo de homem e cabeça de peixe, Sansão exemplifica a derrocada de um homem que apesar da sua força física sobrenatural, nunca foi capaz de conciliar a sua vida adulta com a tarefa divina que lhe havia sido incumbida. Como Samuel, que acabou por liderar os Israelitas e impor a derrota aos Filistinos, Sansão foi declarado pelo anjo mensageiro de Deus, um nazarita, um homem consagrado a Deus, um "que tem um juramento" e, dada essa condição, a sua mãe foi explicitamente exortada: estão vetados a Sansão o vinho e as bebidas fortes, e o seu cabelo não deve jamais ser cortado.
Paradoxalmente, o Sansão adulto procurou deliberadamente a convivência com os Filistinos, que pela lógica das circunstâncias nunca ser-lhe-iam fiéis. Assim, responde com o brutal assassinato de 30 homens em Ashkelon por ter a sua esposa filistina revelado o segredo de um enigma por ele proposto aos Filistinos. Posteriormente, arrependido procura uma reconciliação com a sua esposa, mas quando esta não é mais possível, Sansão responde uma vez mais de forma brutal e desproporcional. A vingança demonstra que a Sansão não faltava engenho: captura 300 raposas atando-as duas a duas pela cauda, amarrando-lhes uma tocha; finalmente, após incandescer as tochas liberta os pares de raposas nas vinhas, oliveiras e campos de grãos dos Filistinos. Mas faltava-lhe claramente uma bússola moral para travar de forma madura e sensata a sua incapacidade de gerir as frustrações.
Dalila, é a última das suas mulheres filistinas. Uma mulher dividida entre a paixão por um homem infantilizado e a lealdade para com o seu povo. Este último sentimento acaba por prevalecer, também por força da necessidade que tinha Sansão de ver-se traído para poder então vingar-se usando a sua força sobre-humana. Desta vez contudo, o jogo dos amantes vai mais longe, pois Sansão acaba por revelar o segredo do seu poder físico: os caracóis do seu cabelo até então nunca cortado. Dalila corta-os enquanto Sansão dorme, e os Filistinos aprisionam-lhe e acabam por cegá-lo.
A captura do gigante trouxe júbilo aos Filistinos, que se juntam aos milhares para festejar a queda do formidável inimigo. Finalmente, é imposta a Sansão a humilhação de dançar para os senhores Filistinos. Mas Sansão aproveita a oportunidade e pede para ser conduzido para junto dos pilares e aí clamar a Deus para que lhe restitua a força. Tendo sido ouvida a sua prece, acaba por destruir o templo de Dagon desestabilizando o seu pilar principal. Um acto final desesperado que lhe custa a vida e a dos senhores Filistinos.
O mito de Sansão ilustra, a vários níveis, a inadequação da força puramente física e revela a inutilidade duma vida desprovida da percepção do seu verdadeiro propósito. O heroísmo vazio de Sansão só podia redundar em actos desesperados e despropositados. Só através da ética é que a liberdade pode ser verdadeiramente conquistada.

Orfeu B.

Um conto que me marcou profundamente


O conto "Baleia" de Graciliano ramos é um dos contos que mais me marcou e impressionou. É simultaneamente simples e de uma força impressionante. Ontem Baleia veio ter comigo revisitar-me e gostaria de partilhar convosco este pequeno - enorme -texto.



Baleia

Graciliano Ramos
A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa nas base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que advinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
- Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se difereciavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiquiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-­se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:
- Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando as barúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais invisíveis:
-Ecô! ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-­se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava­se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava no cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.
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Fonte: RAMOS, Graciliano. Vidas secas, 82ªed. Rio de Janeiro: Record. 2001. p. 85-91.

terça-feira, 14 de julho de 2009

O fato cinzento



Há livros que nos acompanham muito para além da sua leitura. Ambientes que nos revisitam, personagens que revivem, frases que se reescrevem. Um livro que me tem visitado é "O fato cinzento" de Andrea Camilleri. E é o fantasma do personagem principal que me visita. Ele é um alto funcionário da banca que conhecemos no primeiro dia da sua reforma. É casado com Adele, muito mais jovem e muito bela. Acompanhamos um percurso de traição anunciada que é acompanhado por mudanças físicas no apartamento conjugal, com as aparências mantidas intactas. Envolve-nos uma intensa solidão, um vazio muito grande que se acentua com a reforma. Essa solidão é acompanhada de um grande cansaço físico que se vem a revelar fruto de uma doença incurável. Assistimos ao lento arrastar para a morte.
Muito mais tonalidades passam pelo livro. Por exemplo, o jogo de Adele com uma renovada aproximação física e respectivas mudanças no apartamento, mantendo talvez só as aparências (pelo menos para ela própria), o simbolismo do casto fato cinzento que só é usado em ocasiões de morte, etc, etc. Na capa do livro vem um excerto do Corriere della Sera: "Camilleri segue o batimento da alma feminina como ninguém". Mas é a alma vazia do marido preenchida pelo pouco que Adele lhe reserva que me revisita.

sábado, 11 de julho de 2009

A Queda


Através de um monólogo, Albert Camus conta-nos a história de um advogado de sucesso que inicia uma viagem aos meandros da sua consciência. A sua confissão a um outro homem é iniciado num bar num bairro de marinheiros e percorre em 4 ou 5 dias as ruas dessa cidade. Esta é um julgamento de todos, porque sentimos perfeitamente essa queda do confessor. O autor empurra-nos para um lugar pouco agradável, onde nós, juízes e inocentes, somos também culpados dessa acusação que fazemos aos outros. É portanto um livro pequeno mas muito pesado e que só devemos ler se estivermos num andar de baixo, acusados do pior. Se for o caso, então este livro é um tónico regenerador que não nos deixa indiferentes quando subirmos as escadas, porque ao subir, mesmo poucos degraus, podemos sempre cair, principalmente se subirmos com muita confiança, sem olharmos para os nossos próprios pés. Além de tudo, esta história fala-nos sobre a arte: "Sei o que está a pensar: é muito difícil destrinçar o verdadeiro do falso naquilo que conto. Confesso que tem razão. Eu próprio... Olhe uma pessoa das minhas relações dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada a escondera serem obrigados a mentir, os que preferem mentir a não ter nada que esconder, e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua escolha o compartimento que mais me convém. Que importa, no fim de contas? As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas, se, nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou? Vê-se mais claro, por vezes, naquele que mente que no que fala verdade. A verdade cega, como a luz. A mentira, pelo o contrário, é um belo crepúsculo que põe cada objecto em realce." Ao ler lembra-me um pouco aquele poema de Fernando Pessoa "O poeta é um fingidor".

quinta-feira, 9 de julho de 2009

UM GRANDE ESCRITOR PORTUGUÊS DO SÉC. XX - QUE NINGUÉM CONHECE





Sílvio Lima foi meu professor de cadeiras de Psicologia, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Há cinquenta e quatro anos, exactamente. Dele, guardo várias imagens, por vezes, de sentido contraditório. Professor de verbo brilhante, o seu discurso tinha a finura da inteligência crítica e o peso do conhecimento erudito. Os assuntos abordados nas aulas eram actuais e, a maioria das vezes, apresentados de uma forma interessante e pessoal. Ora, todas estas características deveriam fazer dele um grande professor, por todos reconhecido. Mas, na verdade, assim não era. A inquietação que nele se adivinhava, as perspectivas ideológicas subjacentes às suas prelecções (e que ele não ocultava), o constante jogo de palavras, por vezes, a sobrepor-se à profundidade da análise, levavam alguns de nós, jovens de vinte anos, a tomar algumas precauções - pelo menos, um certo distanciamento...
De tudo isso eu me recordei, agora, ao ler uma dissertação de mestrado apresentada na Universidade de Coimbra. Dissertação curiosa, decorrente da "descoberta" de cerca de cem artigos sobre desporto, que Sílvio Lima publicou em "O Primeiro de Janeiro", entre 1935 e 1942, ou seja, no período em que esteve compulsivamente afastado da docência universitária, por razões políticas. Estes artigos e perto de vinte ensaios, que publicou sobre desporto, constituem uma obra ímpar na cultura portuguesa do segundo quartel do século XX. E mais rara ainda por vir de um professor da Universidade de Coimbra, nessa época tão fechada em si mesma, tão tradicional e refractária a tudo o que fosse inovação. Principalmente, quando essa inovação tinha uma nítida intenção de intervenção social. Creio, mesmo, que se trata do primeiro conjunto de estudos, que têm o desporto como tema, escritos por um professor universitário português.
A referida dissertação, apresentada por Pedro Falcão, levou-me à leitura (e à releitura) desses textos e a uma conclusão verdadeiramente surpreendente: Sílvio Lima é um dos grandes escritores portugueses do século XX. E totalmente desconhecido da nossa literatura. Se algum conhecimento ainda há, hoje em dia, das suas obras (nos meios universitários), tal se deve à edição das suas "Obras Completas", organizada por José Ferreira da Silva e publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian. O que é muito e, ao mesmo tempo, pouco, pois continua a faltar a abordagem da obra do autor, sob outros ângulos, como, por exemplo, o do seu lugar na história do ensaísmo português. Quer concordemos, quer não, com as suas posturas intelectuais, as suas teses, a pertinência das suas polémicas, não podemos deixar de concluir que Sílvio Lima é um dos maiores ensaístas portugueses do século XX – e um dos mais prolíferos. E não estou a esquecer nem o António Sérgio, nem o Fernando Pessoa, nem o Eduardo Lourenço.
E esta conclusão entristece-me: quantos escritores estarão esquecidos no limbo dos nossos arquivos, à espera que a sua fada madrinha os faça reviver da letargia em que nós, os viventes desatentos, os vamos sepultando? Se ao menos se perfilasse, no nosso horizonte, alguma preocupação pela elaboração de estudos temáticos sobre os principais géneros literários, entre nós cultivados... Se tal acontecesse, ainda haveria alguma esperança de que o nome de Sílvio Lima fosse enaltecido, como um dos grandes escritores dessa forma portuguesa de fazer ensaio - brilhantemente iniciada por Moniz Barreto, no final do século XIX. Mas quem é que, hoje, ainda sabe quem foi Moniz Barreto?

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Do sucesso e da mafia



Muitas vezes o sucesso de um escritor afasta-me da sua obra. Aconteceu, por exemplo, com o italiano Roberto Saviano. O sucesso de "Gomorra", o filme premiado no Festival de Cannes e a posterior vida em clandestinidade foram demais para mim.
Recentemente encontrei um pequeno livro (os primeiros escritos após Gomorra), "O contrário da morte". São dois pequenos contos. O primeiro, que dá título ao livro, começou a despertar o meu interesse. A história de jovens do sul de Itália, de aldeias esquecidas , que partem nas várias missões do exército italiano pelo mundo fora (muitas vezes para amealhar algum dinheiro, no caso para um casamento e uma hipoteca) é uma via para nos mostrar a Itália sulista profunda, plena de códigos, tradições e de um peso de chumbo que impregna a atmosfera. Há uma noiva - viúva antes do tempo que encarna essa atmosfera.
O outro conto, "O anel", arrebatou-me mesmo. O ambiente é o mesmo, e estamos perantes vários conhecidos que se juntam a um domingo na praça da terra. Todos, com excepção de um, labutam por pouca recompensa. O outro trafica droga para um chefe mafioso. O domingo decorre na modorra densa que impregna o livro até que somos confrontados com a inevitabilidade dos códigos mafiosos. A descrição que começa com a chegada de dois individuos aramados e drogados, a perseguição que se segue, e o desfecho com a inevitável lei do silêncio é muito cinematográfica mas excelente.
Acabei o dia a ver o filme.

domingo, 5 de julho de 2009

O RISO AMARGO




Senti-me repartido ao acabar de ler este livro. Terrivelmente divertido. Comicamente incómodo. O autor fez-me rir mas rapidamente fez com que o riso se tornasse muito amargo.

Com um ritmo preciso e meticuloso, uma escrita eficaz, Adiga traça o retrato radical, absurdo e doloroso de uma Índia contraditória, miserável, tradicionalista, avançada tecnologicamente, progredindo às cavalitas do capitalismo ultra-liberal assente na corrupção a níveis quase impensáveis.

O protagonista é um escroque que sobe da miséria absoluta a pequeno empresário através da sabujice, do assassínio, da corrupção, e que se orgulha dos seus crimes e da sua miséria moral.

A estratégia é divertida e foi utilizada de forma superior por Hazek com o seu valente soldado Shweik. Mas aí, o que nos fazia identificar-nos com o soldado era a sua humanidade e o facto de dirigir todas as suas “maldades” contra o poder. Aqui, e ao contrário do que diz a propaganda (ou alguma crítica) não cheguei a experimentar qualquer simpatia pelo protagonista. É repelente desde o início. E o livro acaba por ser uma espécie de hino inverso à repelência.

Simultaneamente vi o filme “Quem quer ser bilionário” que dá uma ideia semelhante da Índia actual. Violência e miséria em todos os sentidos.

A diferença é que no filme há uma humanidade que ressalta de vários personagens (chamem-lhe demagogia, se quiserem, mas é humanidade) . Aqui não. Não há saída. E, o que mais me incomoda, fica uma suspeita de que o autor o escreveu numa estratégia em que se coloca a si própria num degrau acima da podridão do mundo. E assim, através da descrição obsessiva da miséria está a vender-se a si próprio como figura intocável. Boa para receber prémios… estarei a ser injusto?

Este é o primeiro livro de Aravind Adiga e a escrita é uma maratona. Vamos ver, daqui a 10 ou 15 “kilómetros”, onde é que ele andará.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

UMA CORÇA EM FUGA




A Quetzal acaba de publicar uma obra póstuma de Cabrera Infante (1929-2005), “A Ninfa Inconstante”. Neste livro, Cabrera Infante, um dos mais notáveis escritores cubanos, a viver na Europa desde 1965/1966, recria, por um exercício de memória, a Havana da sua juventude, onde circulariam as personagens da sua história. A história de uma jovem, muito jovem, e de um jornalista e crítico cinematográfico, não tão jovem. Uma história que tanto pode ser considerada como um romance, uma novela ou um conto comprido – o que, em última instância, não tem importância de maior.
Um texto atravessado pela emoção, muito bem construído, pleno de referências, de remetências, para a coisa literária, cinematográfica ou musical, o que lhe confere uma forte densidade cultural e humana.
Um texto armadilhado pelos múltiplos sentidos que os léxicos (e as suas decomposições e recomposições) vão adquirindo, numa permanente reinvenção da linguagem, que o aproxima do James Joyce das últimas fases. O que equivale a dizer que estamos perante um texto passível de diferentes interpretações e, consequentemente, de difícil tradução. Dificuldade de que se saiu brilhantemente Salvato Telles de Menezes, que realizou um excelente trabalho, que dignifica a tradução que se faz em Portugal (por vezes, tão mal tratada).
Vejamos alguns exemplos:

“Esta Estelita – Estela, Estelita, a moça, a jovem corça permanentemente em fuga, por quem o jornalista se apaixona – Estalactite, Estalagmite: a sua cova súcubo, de entrada íncubo, antes arrepio, arrepiante, espelunca nunca. Imagina vagina. Porque ela é impúbere, púbere. Púbis. Ver virilhas e motivo do V: V de virgem mas também de virago, ver efígie no verão emotivo do V. Há em todas as mulheres um triângulo. Pode formá-lo com dois homens. Mas tem de ser adulta para ser adúltera.”

Ou, ainda:

“- Dizem que vai chover.
Sorri.
- Dizem que vou ver.
Aproximei-me das persianas.
- Persicum malum ou talvez bonum? Tudo depende de quem olha.
- E isso tem a ver com quê?
- Com nada, é claro.
- Sabes uma coisa, às vezes penso que não estás muito bom da cabeça.”

Ou:

…“nessa árvore nasciam sumaúmas, falsas orquídeas, que armazenavam água. Alma zenavam…
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Trocámos aquele olhar vermelho de que fala Guidemo Passant. Guido de Maupassant. Guillermo que passa…
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… entrei no cinema Rodi. Estúpido nome. O dono chamar-se-ia Romero Diaz? Ou Rodrigo Diaz? Dessas cavilações tirou-me o filme, que era “A Mulher Fatal.”

A intensidade amorosa do nosso herói jornalista (que conta a história na primeira pessoa) vai esmorecendo. Esmorecendo como nos diz o bolero:

“Estelita, como um bolero na moda, nunca se deixou levar às boas. O bolero continua: ‘É por isso que te amo tanto’. Mas eu não a amo: amei-a e não creio que fosse sequer isso”.

Os trocadilhos, as associações livres constituem o suporte de um ambiente em que o humor dá lugar à paródia e gera um clima de tensão, imprescindível ao desenrolar da trama – em crescendo progressivo.
Em suma, estamos perante um texto que nos dá a conhecer uma das obras mais inovadoras da actual literatura cubana e que, por via da tradução de Salvato Telles de Menezes, vem enriquecer a língua portuguesa.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Leite Derramado



"Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até ao fim da vida."
Chico Buarque convida-nos a entrar num quarto de um hospital onde um homem conta a uma mulher inexistente o seu passado, conta a degradação da sua vida, da sua família desde o tetra-avô ao tetra-neto. Por vezes a história repete-se, da forma como ele imagina alguns factos que desconhece, ou talvez não, talvez os queira acreditar assim. Os ouvintes, além de nós, são diversificados, desde dessa mulher, talvez uma enfermeira, até às pessoas que passam no corredor do hospital onde ele foi desterrado. Uma filha e um bisneto ajuda-o a queimar os poucos rendimentos e bens que lhe restam. O homem acaba numa favela a morar antes da queda que o faz ficar acamado numa casa de saúde (hospital).
Mas o melhor está na escrita de Chico Buarque que nos faz devorar este livro, cada palavra, cada frase. O facto de se colocar na cabeça de um homem idoso acamado que narra repetidamente as suas várias histórias de vida e um amor interrompido é um pretexto para a expressão da sua escrita da sua poética. Não é a primeira vez que Chico Buarque nos coloca perante uma personagem que teve um passado glorioso e um presente decadente, assim foi em "Budapeste", e no "Estorvo". Parece ser essa a sua generosidade literária, capaz de se meter na cabeça do homem que cai, dos outros, uma espécie de imagem de marca que de resto é coerente com as suas canções. Sente-se também alguma sátira, pelos rituais sociais, pela corrupção política. Depois há todo um conjunto de acontecimentos, intrigas, problemas que são bem cozinhados e com o tempero certo, que saboroso estava este livro.
Creio mesmo que este livro é mais uma das belas canções de Chico Buarque, a mais bela canção, a mais bela opera. Este romance fica para sempre na memória de quem o lê. Pelo menos eu,acho que só vou esquecer quando ficar senil, ou talvez não, ficará o romance também no meu corpo, porque por vezes senti um arrepio a lê-lo.