sexta-feira, 3 de julho de 2009

UMA CORÇA EM FUGA




A Quetzal acaba de publicar uma obra póstuma de Cabrera Infante (1929-2005), “A Ninfa Inconstante”. Neste livro, Cabrera Infante, um dos mais notáveis escritores cubanos, a viver na Europa desde 1965/1966, recria, por um exercício de memória, a Havana da sua juventude, onde circulariam as personagens da sua história. A história de uma jovem, muito jovem, e de um jornalista e crítico cinematográfico, não tão jovem. Uma história que tanto pode ser considerada como um romance, uma novela ou um conto comprido – o que, em última instância, não tem importância de maior.
Um texto atravessado pela emoção, muito bem construído, pleno de referências, de remetências, para a coisa literária, cinematográfica ou musical, o que lhe confere uma forte densidade cultural e humana.
Um texto armadilhado pelos múltiplos sentidos que os léxicos (e as suas decomposições e recomposições) vão adquirindo, numa permanente reinvenção da linguagem, que o aproxima do James Joyce das últimas fases. O que equivale a dizer que estamos perante um texto passível de diferentes interpretações e, consequentemente, de difícil tradução. Dificuldade de que se saiu brilhantemente Salvato Telles de Menezes, que realizou um excelente trabalho, que dignifica a tradução que se faz em Portugal (por vezes, tão mal tratada).
Vejamos alguns exemplos:

“Esta Estelita – Estela, Estelita, a moça, a jovem corça permanentemente em fuga, por quem o jornalista se apaixona – Estalactite, Estalagmite: a sua cova súcubo, de entrada íncubo, antes arrepio, arrepiante, espelunca nunca. Imagina vagina. Porque ela é impúbere, púbere. Púbis. Ver virilhas e motivo do V: V de virgem mas também de virago, ver efígie no verão emotivo do V. Há em todas as mulheres um triângulo. Pode formá-lo com dois homens. Mas tem de ser adulta para ser adúltera.”

Ou, ainda:

“- Dizem que vai chover.
Sorri.
- Dizem que vou ver.
Aproximei-me das persianas.
- Persicum malum ou talvez bonum? Tudo depende de quem olha.
- E isso tem a ver com quê?
- Com nada, é claro.
- Sabes uma coisa, às vezes penso que não estás muito bom da cabeça.”

Ou:

…“nessa árvore nasciam sumaúmas, falsas orquídeas, que armazenavam água. Alma zenavam…
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Trocámos aquele olhar vermelho de que fala Guidemo Passant. Guido de Maupassant. Guillermo que passa…
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… entrei no cinema Rodi. Estúpido nome. O dono chamar-se-ia Romero Diaz? Ou Rodrigo Diaz? Dessas cavilações tirou-me o filme, que era “A Mulher Fatal.”

A intensidade amorosa do nosso herói jornalista (que conta a história na primeira pessoa) vai esmorecendo. Esmorecendo como nos diz o bolero:

“Estelita, como um bolero na moda, nunca se deixou levar às boas. O bolero continua: ‘É por isso que te amo tanto’. Mas eu não a amo: amei-a e não creio que fosse sequer isso”.

Os trocadilhos, as associações livres constituem o suporte de um ambiente em que o humor dá lugar à paródia e gera um clima de tensão, imprescindível ao desenrolar da trama – em crescendo progressivo.
Em suma, estamos perante um texto que nos dá a conhecer uma das obras mais inovadoras da actual literatura cubana e que, por via da tradução de Salvato Telles de Menezes, vem enriquecer a língua portuguesa.

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