sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Do que estou a falar quando falo sobre correr



Pain is inevitable. Suffering is optional

What I talk about when I talk about running
Haruki Murakami

Esqueçam o escritor reflexivo e contemplativo à espera de que as musas lhe incendeiem a imaginação. Não de todo! O escritor dos momentos mágicos, dos personagens que comunicam com os animais e os minerais, o criador de situações insólitas e inesperadas é um corredor de fundo que transformou o hábito de correr num complemento indissociável da sua vida de romancista, tradutor, comentador, e mais recentemente de activista de causas humanitárias.

Um beatnik dos músculos então? Também não de todo, pois Murakami não pretende criar nenhuma filosofia, fundar um ashram ou uma seita de seguidores. Do que estou a falar quando falo sobre correr é um livro confuciano: versa sobre treinos, preparação para maratonas (pelo menos uma por ano), respiração, dor física, tempos, reminiscências de provas de longa distância e de triatlo, e sobre a história do envolvimento com a corrida e a sua ligação umbilical com a vida de escritor. A filosofia, se é que se pode disso falar, é extraída ao longo do percurso, no processo de se atingir objectivos bem definidos.

Mas naturalmente, a conexão é nos dois sentidos. O capítulo entitulado Praticamente tudo que sei sobre escrever ficção eu aprendi correndo todos os dias é ilustrativo duma relação que não é acidental e que o autor pretende que perdure até o fim, exactamente como a sua capacidade de escrever e criar. Afirma Murakami, que ao terminar o seu primeiro livro, aos 33 anos, descobriu que a vida dum escritor era fisicamente extenuante, pouco saudável e associal. Sentiu então a necessidade urgente de se exercitar. A inaptidão para os desportos em grupo e a simplicidade da corrida de fundo facilitaram-lhe a escolha do desporto a praticar. A legendária disciplina nipónica fez o resto.

Reitera Murakami, eu seria um outro escritor se não fosse o facto de ser um corredor de fundo, de modo que a fórmula correr e escrever, escrever e correr transformou-se numa segunda pele, num modo de estar e de ver as coisas. Mas é fundamental sublinhar que o autor não pretende vender a receita a ninguém. Destaca que a entrega sem reservas e o desejo de atingir o máximo dentro dos seus próprios limites tornaram-se ao longo dos anos os seus objectivos no que se refere à escrita e às provas de fundo. Conta-nos também que o sucesso inesperado do seus primeiros livros revelaram-lhe um caminho profissional que não antecipava de todo ser o seu. Os ingredientes? Talento, objectivo e resistência. Para escrever ou para correr? Para ambas, responde-nos Murakami, pois são para si actividades intimamente interligadas.

Assim, através da leitura deste despretensioso livro somos levados a uma identificação simples, mas também elegante: a de que escrever um romance é algo como correr uma maratona. Exige treino, dedicação, resistência, e uma vez iniciado o processo não há espaço para andar, pois foi-se treinado para correr. A felicidade do autor com a naturalidade desta identificação é mais que evidente, e ao ponto dele não se coibir de apontá-la como uma essência existencial, como vê-se quando imagina o seu epitáfio:

Haruki Murakami
1949 - 20**

Escritor (e corredor)

Pelo Menos Ele Nunca Andou



Orfeu B.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

LETRAS PÚBLICAS VERSUS LITERATURA?



A Casa da América Latina, sita na Av. 24 de Julho, muito perto das docas do porto de Lisboa, realizou, sob o impulso do poeta e livreiro brasileiro Ozias Filho, um conjunto de recitais de poesia de poetas da América Latina. Recitais que tiveram êxito assinalável, se se tomar por medida o número dos que a eles assistiam e o fervor com que o faziam. A selecção dos poemas é do Ozias e dele também é a organização da sessão (escolha dos "diseurs" - entre os quais ele avulta -, convite a músicos que executam peças musicais dos países a que pertencem os poetas que nessa noite são lidos). O cuidado, o entusiasmo que o Ozias em tudo põe, está na origem deste sucesso. Bem haja, pois, o Ozias, por tudo o que tem feito pela Poesia!
Mas... mas estas leituras públicas contribuirão, realmente, para o incremento da literatura? Não sei, não sei mesmo. As minhas dúvidas decorrem de coisas várias. Principalmente, da postura dos que vão a essas sessões. Assim, estou em crer que os que as frequentam assumem uma atitude de espectador-consumidor, que se contenta (e se "delicia") com o que lhe é proposto. Nada questionando, nada mais querendo saber, nem sobre o autor, nem sobre a sua poesia – muito menos sobre a época, a situação histórico-literária em que foi escrita. Enfim, é alguém em estado de pura receptividade, sem qualquer postura crítica. As palmas que explodem a seguir à dicção de todo e qualquer poema, revelam bem esse estado da "plateia". O poema funciona, em última instância, como um catalisador da emoção de quem o ouve, emoção que será, na maioria das vezes, o reflexo da emoção que o "diseur" põe na sua interpretação. A passagem, sem interrupção, de um poema a outro, de um poeta ao que se lhe segue, gera um efeito de torrente de um rio caudaloso, em que a música e o calor das palmas, geram uma energia que transforma a sala num condensador de alta voltagem, o que me leva a formular, no fim de cada sessão, a mesma interrogação: quantos adoradores daquele culto poético terão, em casa, um livro de poesia? Ou, dito de outro modo: a poesia será, para eles, apenas sinónimo da interpretação que lhes é fornecida por quem a diz? Algo de epifenoménico que se esvai quando a sessão chega ao seu termo? Talvez sim, talvez, não – espero bem que não...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A RAINHA DO CINE ROMA



Pepetela afirma a pópósito:

"Quem tiver peito fraco é melhor nao tocar neste livro Porque ele é duro, cru, verdadeiro No entanto, no fim, fica um fiozinho de açúcar, emoldurando uma réstea de esperança."

De facto, "A rainha do Cine Roma" é um mergulho no lado mais negro da humanidade. salvador da Baía, prostituição infantil, álcool, droga, roubo, violência, estupro, transexualidade, corrupção dos que mandam, miséria levada até ao extremo, abandono, tremenda solidão.

Sabemos que o autor, mexicano a viver no Brasil, faz trabalho social com crianças e meninos de rua

Todo o livro, que é uma espécie de "Capiães da areia" do tempo do crack, ferve, amachuca-nos, arrepia-nos, faz-nos conviver dificilmente, dolorosamente, com uma realidade assustadora.

O Pepetela tem mesmo razão: "Quem tiver peito fraco..." No entanto, como também ele diz, ao lado da desesperança mais completa há sempre um fio de humanidade, uma luzinha ao fundo do túnel, a perspectiva positiva deixada por um escritor que acredita que, apesar de tudo, a vida ainda vale a pena e todos temos uma reserva de generosidade que pode sair cá para fora até nas piores circunstâncias.

É claro que o autor tem tanta e tão suja realidade para verter na sua escrita, que por vezes se esquece de se vigiar e de se conter. Repete-se, torna-se previsívelm aqui e ali, quase melodramático. No entanto, pergunto-me eu se é possível fugir às teias do melodrama quando tratamos da miséria moral absoluta, essa miséria que sustentou o desencolvimento desse estilo literário que teve seguidores tão respeitáveis como Zola ou Vítor Hugo.

Afinal, 150 anos depois, o capitalismo, na sua versão neo-liberal, mantém grandes bolsas de miséria pelo mundo fora e, por mais que se negue o papel da literatura na denúncia dessa miséria, os que como Reyes contactam com ela e tentam salvar dela alguns seres humanos, têm todo o direito e, se calhar, têm todo o dever de fazer da literatura um campo de batalha onde se luta por um mundo um poucochinho melhor.

A ternura e a solidariedade que o romance nos oferece ou nos promete é uma janela aberta, uma janela bem mais habitável que o retrato horrível que da Índia nos dá, por exemplo, em "O Tigre Branco", o premiado escritor indiano Aravid Adiga, onde parece não haver qualquer resto de esperança na humanidade.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

O CORAÇÃO DOS PONDERS




Já o Albano tinha aqui falado com entusiasmo dos contos de Eudora Welty. E eu fiquei de água na boca. Fui comprar a correr "Os ventos e outros contos". Mas foi ficando na pilha crescentes da urgências muito urgentes.

Apareceu entretanto, da mesma autora, um romance: "O coração dos Ponders".

Depois... Os livros têm destas coisas... Trepam uns por cima dos outros, chamam-nos baixinho, insinuam-se. "O coração dos Ponders" impôs-se. E que felicidade lê-lo!

O mundo de Eudora é o do Sul dos EUA. O mesmo de Faulkner e de outros como Flanery O'Connor. Mundo puritano, racista, mesquinho, fechado sobre si. Só que outros o tratam de dentro de uma máquina de produzir tragédias e Eudora do alto de uma fantástica ironia.

A narradora dirige-se directamente ao leitor Talvez esteja mesmo a falar com o leitor, a leitora, ou talvez não. Talvez o interlucotor ausente seja uma vizinha. Ou alguém com quem Edna earle compartilha uma série de comentários e opiniões sobre a cidade onde vive, os seus habitantes e, sobretudo sobre o avô e o tio Daniel

A figura do tio Daniel será o grande rio que atravessa a narrativa nas palavras da sobrinha e narradora mas só tem sendito em contraponto com a própria cidade, a pequena cidade com a polifonia das suas famílias, dos seus criados negros, dos seus caixeiros viajantes, dos seus advogados, juízes...

O olhar de Edna Earle, aparentemente conciliador, pacificador, bondoso,esconde toda uma série de preconceitos, de mentiras e falsidades, num registo que não nos permite perceber excatamente se ele é apenas ingénuo ou de uma perversidade requintada

Apesar das palavras de Edna que afirma repetidamente que o tio é a melhor e a mais generosa pessoa do mundo, a ambiguidade da ironia ficará sempre a pairar no nosso espírito. O tio Daniel era tonto e louco, ou um personalidade negra, malévola e totalmente pervesrsa? Ele teria efectivado os dois casamentos? E a morte da segunda esposa que Edna diz o pior possível sob o manto das suas palavras doces? O tio Daniel, que nas palavras da sobrinha adorava a esposa, tê-la assassinado? Ou terá sido a própria Edna?

Saber quem e como ela foi morta é o menos. O mais importante é torrente de belíssima escrita, a força do monólogo, o poderosíssimo exercício da ironia, o desenvolvimento da acção num crescendo que atinge o seu pleno com a tremenda cena do julgamento no tribunal

O mais importante é percebermos que, em literatura, tão importante como a história que se conta é a forma como se conta essa história. E nesse campo, Eudora Welty atinge uma altura invulgar.


A tradução de José Mário Silva (vale a pena ver o seu bibliotecariodebabel.com) é simplesmente magnífica, o que não é tão frequente como isso, embora a Relógio d'Água seja normalmente exemplar no cuidado das traduções e das revisões.

EPIFANIA EM CLARICE LISPECTOR



Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920 e foi para o Brasil com dois meses de idade. Viveu com os pais em várias cidades e acabou por se fixar no Rio de Janeiro, onde morreu em 1977. Por muitos críticos considerada a mais importante escritora de ficção de língua portuguesa do século XX, Clarice publicou, em 1944, o romance "Perto do Coração Selvagem", o primeiro dos 26 livros que constituem a sua obra (contos, romances, crónicas e literatura infantil). Obra de juventude, nela já está contido o essencial do universo clariciano: os temas que irá desenvolver, as estruturas narráticas básicas, que permitem transformar as emoções, os pensamentos das personagens em texto literário de uma densidade nova na língua portuguesa. E - sempre - a invenção de uma linguagem muito própria, não só feita de imprevisto no manuseio da terminologia (às vezes, quase barroca), como também na construção da frase (quantas vezes, apenas assente na repetição). Uma linguagem em que os silêncios dão sentido ao que foi dito e ao que ficou por dizer[1].
Para que se possa escrever assim, com subtileza, com força, com magia, é preciso amar a sua língua. E é o que acontece com Clarice: "Amo esta língua" (diz-nos ela). "Não é uma língua fácil. É um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve querendo roubar às coisas e pessoas a sua primeira camada superficial. É uma língua que por vezes reage contra um pensamento mais complexo. Por vezes o imprevisto de uma frase causa-lhe medo. Mas eu gosto de manejá-la – tal como outrora gostava de montar um cavalo para o levar pelas rédeas, umas vezes lentamente, outras a galope."
Se a palavra é o seu domínio (sobre o mundo, sobre si mesma), a escrita é a sua vocação: "(...) nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei porquê, foi esta que eu segui. Talvez porque, para as outras vocações, eu precisaria de uma longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E para escrever, o único estudo é mesmo escrever."
Para Clarice, escrever é viver. Numa entrevista concedida alguns meses antes de morrer, ela diz: "Quando não escrevo, estou morta." E termina a entrevista afirmando: "Neste momento, estou morta. É do meu túmulo que vos falo."
De entre os seus múltiplos textos, eu queria fazer sobressair as suas crónicas, os seus contos. Fundamentalmente por uma razão: é nos seus "escritos fragmentários" que se encontra muito do que é essencial à sua literatura. E, entre esses textos, sobressaem as crónicas, nomeadamente as que escreve para o "Jornal do Brasil", do Rio de Janeiro. É ela, ainda, que nos fala da sua perplexidade sobre a sua escrita enquanto cronista: "(...) um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crónica, e disse-lhe desesperada: "Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?" Ele me disse: "É impossível, na crónica, deixar de ser pessoal. Mas eu não quero contar minha vida para ninguém (...)"
Crónicas que, quer ela queira, quer não, constituem pedaços de si própria. Crónicas que ela, por vezes, transforma em contos ou integra nos seus romances. Romances nos quais brilham esses "indícios de oiro", que lhes conferem luminosidade, transcendência. Clarice, uma escritora do fragmentário? Sim, em grande parte. A própria técnica de recolha de elementos para a sua escrita aponta nesse sentido: ela recolhia, em tudo o que fosse papel, os acontecimentos, as emoções, os pensamentos que lhe iam surgindo no fluir do seu quotidiano. E será exactamente a partir desses fragmentos que poderemos penetrar no que é essencial à sua escrita: a epifania.
O conceito de epifania tem uma origem bíblica e, nesse sentido, poderá definir-se como sendo a irrupção de Deus no mundo. No Antigo Testamento, a epifania está ligada ao "ouvir", no Novo Testamento, ao "ver". Ora, na literatura do século XX, este conceito revelou-se extremamente fecundo, tanto na construção do texto, como na sua análise. O seu êxito deve-se a James Joyce, o qual, na opinião do seu principal biógrafo, Richard Elmann, o foi buscar à Epifania do Fogo, primeira parte do livro de Gabriel d'Annunzio, O Fogo.
Mas Joyce nem sempre entendeu o mesmo por epifania. Em Stephen Hero, escreve: "Por epifania, ele (referia-se a Stephen) entendia uma súbita manifestação espiritual, que surgia tanto no meio das palavras ou gestos mais corriqueiros quanto na mais memorável das situações espirituais. Acreditava fosse tarefa do homem de letras registar tais epifanias com extremo cuidado, pois elas representam os mais delicados e fugidios momentos da vida."
Mas se em Stephen Hero a epifania corresponde a um modo de ver o mundo, já no Retrato do Artista Quando Jovem será um "processo de criar um universo, por meio da palavra poética." Neste livro, já não se "experencia" a vida, mas pretende-se, sim, reconstruir o mundo. Para Harry Larvin, citado por Olga de Sá, Joyce pretende, em última instância, "criar um substituto literário para as revelações da religião." A sua última obra, Finnegans Wake, é a expressão final desta intenção (já evidente no Retrato e em Ulisses). Se quisermos simplificar o que dito foi (o que é sempre perigoso quando se trata de Joyce), poderíamos formular a questão deste modo: a epifania joyceana começou pela palavra e atingiu a sua plenitude na estrutura e na dinâmica da linguagem da sua "escritura".
Caminho diferente foi o de Clarice, conhecedora que era da obra de Joyce. Conhecimento de Joyce, sim, mas também influência sua, a começar pelo título do seu primeiro livro, "Perto do Coração Selvagem", extraído de uma frase do "Retrato do Artista Quando Jovem": "Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida." E, na verdade, em Clarice, a linguagem está perto do coração da vida. É pela linguagem que ela pesquisa e encontra – e se encontra! A linguagem é o instrumento que lhe permite estabelecer a "escritura" que a ultrapassa – e a salva. "Escritura" que tem a epifania como processo, não como técnica. Em última instância, podemos dizer que toda a linguagem, em Clarice, é epifánica. E nisso se distingue de Joyce, pois, desde o seu primeiro livro, toda a sua obra se poderá caracterizar como uma epifania do eu.
É nos pequenos textos que o processo epifânico se torna mais evidente. Não só o processo, como também o que dele resulta, ou seja, o esplendor estético da sua prosa poética. Para terminar, transcrevo um dos textos que integram "A Descoberta do Mundo'', e que constitui um exemplo preciso do que afirmei: "Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade. Não era tour de propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via. Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Pôr puro carinho, mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe."
Estamos, pois, perante uma situação clássica de epifania, de iluminação feita amor, carinho, de identificação com o Belo, o Bem. Mas o texto (extraído do conto "Perdoando Deus") não pára, continua: "E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos. Toda trémula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois factos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contiguidade ligava-os. Os dois factos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar?"
"Os dois factos (diz Clarice) tinham ilogicamente um nexo". A sua ligação não é, pois, do domínio da lógica; é, sim, do foro do não racional (não do irracional). Ou seja, do âmbito do epifánico. Ou, mais precisamente, estamos na presença de duas epifanias: a última, de sentido negativo, a funcionar por contraposição à primeira. E será exactamente através deste jogo de claros e escuros que o texto ganha uma espessura, uma densidade, muito características – a espessura, a densidade que transformam a "escritura" de Clarice Lispector num caso único na ficção de língua portuguesa do século XX.


Este texto foi lido na apresentação da obra de Clarice Lispector “A Descoberta do Mundo” (editada por Indícios de Oiro).


[1] Sobre o silêncio em Clarice Lispector, consultar Menegolla, Ione Marisa, A Linguagem do Silêncio, São Paulo, HUCITEC, 2003.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

ANDREA CAMILLERI OU A ESCRITA NO MASCULINO




Várias razões me levaram a ler o livro de Andrea Camilleri, “O Fato Cinzento” (Bertrand Editora): por se tratar de um escritor que eu não conhecia; por serem raras as traduções de obras italianas; por o autor ser considerado um dos grandes escritores italianos da actualidade; por a crítica valorizar esta obra, nomeadamente pelo modo como a temática é tratada.
Camilleri (agora com 84 anos) dá-nos uma história tradicional, que, contrariamente ao que alguma crítica diz, deve mais a Tolstói do que a Chekov: um cavalheiro, alto funcionário de um banco, em Palermo, casa com uma jovem, 25 anos mais nova, e passa a viver obcecado pelo desejo que a sua bela e erotizada mulher lhe provoca. A história, bem construída, é-nos apresentada pelo ângulo de visão do marido, que oscila nos sentimentos que a relação conjugal lhe vai provocando e, daí, nos juízos de valor sobre a sua mulher. Talvez por isso, o Corriere della Sera, o jornal italiano de grande circulação, escreve: “Camilleri segue o batimento da alma feminina como ninguém”. Frase que os editores portugueses colocaram na capa do livro, o que nos pode fazer crer que este romance caracteriza com propriedade o sentir, o pensar da mulher. Ora, em minha opinião, passa-se exactamente o contrário: é do homem, do sentir do homem velho, que a obra trata, do modo como ele vê a mulher que ama e deseja, do modo como o seu progressivo envelhecimento vai condicionando a sua visão sobre a companheira – infiel, belíssima e controladora da relação conjugal até aos mais ínfimos pormenores.
Na realidade, talvez as coisas não possam deixar de ser assim. Ou talvez sejam poucos os casos em que tal não aconteça, isto é, que o escritor caracterize a mulher sem se centrar nas suas próprias emoções ou que a escritora caracterize o homem não se centrando no seu sentir, no seu pensar. E entre as excepções conta-se, sem dúvida, Henry James (“Retrato de uma Senhora” e “Daisy Miller”, por exemplo). Possivelmente, pelo toque de feminilidade de que o autor deu mostras ao longo da vida...
Do que escrevi, que não se infira que desaconselho a leitura desta obra. Antes pelo contrário: Andrea Camilleri é um escritor que sabe contar uma história (mesmo quando esta se desenvolve à volta de uma temática tradicional), um escritor que domina a técnica da escrita, com soluções próprias de estrutura narrática, adequadas ao desenvolvimento de um enredo que se centra na vivência psicológica das personagens.

domingo, 4 de outubro de 2009

Um poema para Lublin



O, Wanderer, a shadow accompanies you as always and the night is bathed in a silvery afterglow. Leave this town light-hearted, the way it greeted you.

A poem about Lublin.

Józef Czechowicz.


Todo poeta sabe que deve honrar a sua cidade. O chamamento pode ser precoce ou tardio, mas é inevitável. Não importa o locus, o fundamental é como o poeta conduz o caudal de sensações-emoções-recordações associando-as aos elementos da paisagem urbana. Não há guias ou modelos, a profundidade do exercício é a única forma de transformar memórias em esquinas, lembranças em catedrais, sonhos em castelos.

O poeta polaco Józef Czechowicz, depois de combater como voluntário na guerra contra a União Soviética em 1920, estudar em França e viver entre Lublin e Varsóvia, retorna, qual uma enguia que volta ao mar para encerrar o ciclo duma vida, para a sua Lublin quando da invasão da Polónia pela Alemanha em 1 de Setembro de 1939 e acaba por morrer soterrado em 9 de Setembro quando dum bombardeamento da Luftwaffe.

A sua homenagem a Lublin é de 1934, mas é na verdade intemporal. Józef Czechowicz canta, numa preciosidade de livrinho que contem um único poema, uma Lublin que é tão mística como a Lublin real, com a sua simbiótica arquitetura medieval, renascentista e barroca. E num percurso pedonal dominado pelas sombras da noite, o poeta celebra a cidade que foi o centro da união da Polónia com a Lituánia no século XVI, da renascença da cultura polaca, e da Reforma. E com o toque mágico dumas escasssas palavras, o poeta recorda tudo isto e também que Lublin foi conhecida como a "Oxford Judia", dada a concentração de estudantes de toda a Europa que para ali iam estudar o Talmude e a Cabala nas suas yeshivas, as Academias Talmúdicas ou Academias Rabínicas.

A voz de Józef Czechowicz é única e universal, como a de todos os poetas. Exprime a beleza numa linguagem que só os poetas sinceros conhecem:

... oh Caminhante, o que te toca indelevelmente a alma é que a tua amada cidade já te acolheu e abraçou ...

Cinzeles, graves na memória a inscrição do portão do cemitério:
"Retido na poeira eu durmo - e da poeira
Eu resurgirei no dia final" ...

Dominado pela tristeza, perdido em pensamentos e indiferente ao mundo, oh Caminhante, tu percorres a cidade emudecida. Aqui e ali, na rua principal ouves os habitantes a conversar, aqui e ali ouves o ruído dum portão que se fecha.

...

Foi nessa modesta esquina que te compraram uma corneta de brinquedo. Naquela outra que te despediste da tua mãe e irmã antes de partires para o front. E aqui é a casa onde vivenciaste os mais ternos sentimentos.

Foi ali que experimentaste o primeiro momento de poesia ouvindo a cidade antiga à noite.

Transformes a memória em verso. A essência das noções, memória e poesia, tão próximas que estão uma da outra.

Este é um verso.

O céu transforma-se, ainda que a noite não tenha perdido a sua força,
o vento ainda sopra antes de se extinguir.
O céu sussurra em púrpura.
O vento - não é mais vento - sorri.

...

E agora?

...

Boa noite cidade antiga, boa noite. Estradas brancas conduzem ao norte, através de sendas estreitas, sendas através de miríades de sendas. O Caminhante é apenas um ponto negro numa delas.

Ele desapareceu atrás do monte.

Boa noite, cidade,

boa noite ...

Orfeu B.

sábado, 3 de outubro de 2009

LÁZARO COVADLO ENTRE A PARÓDIA E A SÁTIRA



“No dia em que Gómez se fez cortar a cabeça para que fosse oferecida ao nosso Presidente, este tinha-lhe enviado umas horas antes a bandeja. Não era de ouro, era só uma bandeja de prata. O certo é que o desempenho de Gómez na sua função ministerial sempre fora algo medíocre.”
Assim se inicia o primeiro conto do livro de Lázaro Covadlo, “Buracos Negros” (Livros de Areia). A outros notáveis, também “notificados” em devido tempo, haviam sido enviadas bandejas em ouro ou, até, em ouro e platina com pedras preciosas cravejadas – claro, segundo os méritos de cada um. Ninguém contesta ou se revolta com as decisões do Chefe Supremo. Nem sequer se questionam as razões que o levam a tomar as suas decisões. Ele é infinitamente sábio e, melhor do que ninguém, sabe o que convém a cada um e ao país. Mas se não há revolta ao anúncio da morte iminente, há tristeza e arrependimento quando se recebe uma bandeja de qualidade inferior. Este conto (“Em Honra do Bom Serviço”), um dos mais curtos do livro, é um dos mais perfeitos e acutilantes.
Contos (treze contos) que abordam temas diversos, em que paira a sombra ameaçadora de uma entidade superior, que condiciona a vida das personagens.
Um exemplo, ainda, o do último conto, “As Correntes do Mal”. Numa noite de desespero, o jovem Aristides Stormi está prestes a suicidar-se nas águas do Mar del Plata, quando é abordado por um desconhecido que o impede de tal e o convida para um copo. A figura e o comportamento do cavalheiro são estranhos e estranhas são as suas falas sobre o mal que circula no mundo, o que leva Aristides a suspeitar que se trata de “Um Agente do Mal”, versão actualizada do velho Diabo. Suspeita que o outro alimenta, ao propor-lhe um pacto bizarro: se o Aristides fizer, todos os dias, uma maldade, por mais pequenina que seja, mas que prejudique, que humilhe alguém, será recompensado com benefícios vários. No entanto, se, uma vez que seja, praticar uma boa acção, tudo será perdido, a sua alma também. O olhar daquela figura do mal é terrível, a sua fala assustadora. Brincando, ele faz a primeira experiência, e os efeitos da sua maldadezinha começam a surgir. Daí, o novo rumo que Aristides confere à sua vida, encadeando maldades em novas maldades, torpezas em novas torpezas, traições em novas traições, até atingir, em tempo final de vida, uma riqueza e um poder social invejáveis, por todos temido, por ninguém amado. Até um dia, o dia em que lhe aparece um pobre velho, que lhe revela que tinha sido ele, actor de teatro à época, que, numa noite de copos, o havia convencido do seu poder maléfico, que o havia induzido à prática de todas aquelas patifarias que, supunha Aristides, tantos benefícios lhe haviam trazido... Engano, puro engano, pois, na verdade, tudo o que ele, Aristides Stormi, havia conseguido devia-se única e exclusivamente às suas qualidades, ao seu trabalho. Agora, ele, a dita figura do Mal, na imaginação de Aristides, encontrava-se na maior das misérias, sem possibilidades de se tratar, pelo que lhe solicitava alguma ajuda. Esta revelação constitui um choque para Aristides, que acaba por compreender que a sua vida tinha sido um logro, vítima da sua imaginação, da sua ingenuidade. Altamente perturbado, passa ao desconhecido, a quem, em última instância, tudo deve, um cheque mais do que generoso. Nesse momento, processa-se uma alteração no desconhecido e aquele olhar terrível, diabólico, que Aristides lhe tinha visto, dezenas de anos atrás, volta a surgir no seu rosto.
Esclareça-se: Lázaro Covadlo é um autor argentino, há muito radicado em Espanha, que herdou algo de Borges e de Bioy Casares, algo que se aproxima do que (estranhamente) ficou conhecido na história da literatura pela designação de realismo mágico.