sábado, 3 de outubro de 2009

LÁZARO COVADLO ENTRE A PARÓDIA E A SÁTIRA



“No dia em que Gómez se fez cortar a cabeça para que fosse oferecida ao nosso Presidente, este tinha-lhe enviado umas horas antes a bandeja. Não era de ouro, era só uma bandeja de prata. O certo é que o desempenho de Gómez na sua função ministerial sempre fora algo medíocre.”
Assim se inicia o primeiro conto do livro de Lázaro Covadlo, “Buracos Negros” (Livros de Areia). A outros notáveis, também “notificados” em devido tempo, haviam sido enviadas bandejas em ouro ou, até, em ouro e platina com pedras preciosas cravejadas – claro, segundo os méritos de cada um. Ninguém contesta ou se revolta com as decisões do Chefe Supremo. Nem sequer se questionam as razões que o levam a tomar as suas decisões. Ele é infinitamente sábio e, melhor do que ninguém, sabe o que convém a cada um e ao país. Mas se não há revolta ao anúncio da morte iminente, há tristeza e arrependimento quando se recebe uma bandeja de qualidade inferior. Este conto (“Em Honra do Bom Serviço”), um dos mais curtos do livro, é um dos mais perfeitos e acutilantes.
Contos (treze contos) que abordam temas diversos, em que paira a sombra ameaçadora de uma entidade superior, que condiciona a vida das personagens.
Um exemplo, ainda, o do último conto, “As Correntes do Mal”. Numa noite de desespero, o jovem Aristides Stormi está prestes a suicidar-se nas águas do Mar del Plata, quando é abordado por um desconhecido que o impede de tal e o convida para um copo. A figura e o comportamento do cavalheiro são estranhos e estranhas são as suas falas sobre o mal que circula no mundo, o que leva Aristides a suspeitar que se trata de “Um Agente do Mal”, versão actualizada do velho Diabo. Suspeita que o outro alimenta, ao propor-lhe um pacto bizarro: se o Aristides fizer, todos os dias, uma maldade, por mais pequenina que seja, mas que prejudique, que humilhe alguém, será recompensado com benefícios vários. No entanto, se, uma vez que seja, praticar uma boa acção, tudo será perdido, a sua alma também. O olhar daquela figura do mal é terrível, a sua fala assustadora. Brincando, ele faz a primeira experiência, e os efeitos da sua maldadezinha começam a surgir. Daí, o novo rumo que Aristides confere à sua vida, encadeando maldades em novas maldades, torpezas em novas torpezas, traições em novas traições, até atingir, em tempo final de vida, uma riqueza e um poder social invejáveis, por todos temido, por ninguém amado. Até um dia, o dia em que lhe aparece um pobre velho, que lhe revela que tinha sido ele, actor de teatro à época, que, numa noite de copos, o havia convencido do seu poder maléfico, que o havia induzido à prática de todas aquelas patifarias que, supunha Aristides, tantos benefícios lhe haviam trazido... Engano, puro engano, pois, na verdade, tudo o que ele, Aristides Stormi, havia conseguido devia-se única e exclusivamente às suas qualidades, ao seu trabalho. Agora, ele, a dita figura do Mal, na imaginação de Aristides, encontrava-se na maior das misérias, sem possibilidades de se tratar, pelo que lhe solicitava alguma ajuda. Esta revelação constitui um choque para Aristides, que acaba por compreender que a sua vida tinha sido um logro, vítima da sua imaginação, da sua ingenuidade. Altamente perturbado, passa ao desconhecido, a quem, em última instância, tudo deve, um cheque mais do que generoso. Nesse momento, processa-se uma alteração no desconhecido e aquele olhar terrível, diabólico, que Aristides lhe tinha visto, dezenas de anos atrás, volta a surgir no seu rosto.
Esclareça-se: Lázaro Covadlo é um autor argentino, há muito radicado em Espanha, que herdou algo de Borges e de Bioy Casares, algo que se aproxima do que (estranhamente) ficou conhecido na história da literatura pela designação de realismo mágico.

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