terça-feira, 13 de outubro de 2009

O CORAÇÃO DOS PONDERS




Já o Albano tinha aqui falado com entusiasmo dos contos de Eudora Welty. E eu fiquei de água na boca. Fui comprar a correr "Os ventos e outros contos". Mas foi ficando na pilha crescentes da urgências muito urgentes.

Apareceu entretanto, da mesma autora, um romance: "O coração dos Ponders".

Depois... Os livros têm destas coisas... Trepam uns por cima dos outros, chamam-nos baixinho, insinuam-se. "O coração dos Ponders" impôs-se. E que felicidade lê-lo!

O mundo de Eudora é o do Sul dos EUA. O mesmo de Faulkner e de outros como Flanery O'Connor. Mundo puritano, racista, mesquinho, fechado sobre si. Só que outros o tratam de dentro de uma máquina de produzir tragédias e Eudora do alto de uma fantástica ironia.

A narradora dirige-se directamente ao leitor Talvez esteja mesmo a falar com o leitor, a leitora, ou talvez não. Talvez o interlucotor ausente seja uma vizinha. Ou alguém com quem Edna earle compartilha uma série de comentários e opiniões sobre a cidade onde vive, os seus habitantes e, sobretudo sobre o avô e o tio Daniel

A figura do tio Daniel será o grande rio que atravessa a narrativa nas palavras da sobrinha e narradora mas só tem sendito em contraponto com a própria cidade, a pequena cidade com a polifonia das suas famílias, dos seus criados negros, dos seus caixeiros viajantes, dos seus advogados, juízes...

O olhar de Edna Earle, aparentemente conciliador, pacificador, bondoso,esconde toda uma série de preconceitos, de mentiras e falsidades, num registo que não nos permite perceber excatamente se ele é apenas ingénuo ou de uma perversidade requintada

Apesar das palavras de Edna que afirma repetidamente que o tio é a melhor e a mais generosa pessoa do mundo, a ambiguidade da ironia ficará sempre a pairar no nosso espírito. O tio Daniel era tonto e louco, ou um personalidade negra, malévola e totalmente pervesrsa? Ele teria efectivado os dois casamentos? E a morte da segunda esposa que Edna diz o pior possível sob o manto das suas palavras doces? O tio Daniel, que nas palavras da sobrinha adorava a esposa, tê-la assassinado? Ou terá sido a própria Edna?

Saber quem e como ela foi morta é o menos. O mais importante é torrente de belíssima escrita, a força do monólogo, o poderosíssimo exercício da ironia, o desenvolvimento da acção num crescendo que atinge o seu pleno com a tremenda cena do julgamento no tribunal

O mais importante é percebermos que, em literatura, tão importante como a história que se conta é a forma como se conta essa história. E nesse campo, Eudora Welty atinge uma altura invulgar.


A tradução de José Mário Silva (vale a pena ver o seu bibliotecariodebabel.com) é simplesmente magnífica, o que não é tão frequente como isso, embora a Relógio d'Água seja normalmente exemplar no cuidado das traduções e das revisões.

1 comentário:

Alda Couto disse...

Sou revisora dessa editora já há alguns anos. Muito obrigada pelo reconhecimento :)