domingo, 31 de janeiro de 2010

EU JÁ ESTIVE EM BUENOS AIRES



Ao fechar este livro de Tomás Eloy Martinez posso dizer que já estive em Buenos Aires. Acabo de chegar de lá. Passeei pelas suas ruas e mitos. Senti o tempo, o calor, o frio, a humidade, a pobreza, o cheiro das casas, a respiração dos cafés, das livrarias e milongas.

A literatura tem coisas destas. Leva-nos aonde nunca fomos. E, se calhar, aonde nunca poderemos ir de outra maneira.

Já conheço Buenos Aires, a cidade que espero um dia tocar com a mão, varrer com os olhos, entregar-me às livrarias que estão abertas 24 horas por dia, caso único no mundo julgo eu.

A história é simples aparentemente. Um cantor de tangos ccm uma voz única, muito melhor que Gardel, um homem deficiente que vai tendo cada vez mais dificuldade em ter-se de pé ou respirar, canta sem aviso e muitas vezes sem público em pontos especiais da cidade, fazendo com essa sua peregrinação um mapa dos crimes por vezes apagados da memória colectiva. São os crimes dos generais, dos ditadores e das polícias que se sucederam ao longo da história acidentada da mágica cidade.

Um estudante americano procura este cantor e segue os seus passos atravessando a cidade em todas as direcções num tempo recente em que a miséria sai para a rua, a fome cresce e os governos sucedem-se.

E este estudante procura também conhecer e interpretar a cidade mitificada por Jorge Luís Borges e julga ter descoberto o famoso Aleph que surge num dos primeiros ou mesmo no primeiro conto de Borges, um ponto lminoso que permite ver o passado e o futuro.

"Ali a realidade não sabia o que fazer e andava à solta, à caça de autores que se atrevessem a contá-la."

Nesta vagabundagem o jovem Bruno reconhece na cidade um labirinto físico, temporal, cultural, em que os habitantes se movimentam de uma forma misteriosa e os estrangeiros se perdem nas voltas do espaço, do tempo e do tango.

Pronto. Como vêem já estive em Buenos Aires. Vivi uma semana e meia nas suas ruas. E, no entanto, nunca lá estive. Mas mais dias menos dia... Não falho.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

"A Nova Inteligência"


A Nova Inteligência" é um best seller internacional de Daniel H. Pink. Embora pareça um manual ou um livro de auto-ajuda, não o é. Este livro mostra-nos uma mudança cultural que está ocorrer na nossa sociedade contemporânea. A valorização das competência ligadas ao lado direito do cérebro, o responsável pela a emoção, pela criatividade, etc. Daniel acredita que em cada instituição, em cada empresa irá haver, no futuro, um "poeta" de serviço. Só por isso vale a pena devorar este livro. Mas garanto-vos que daqui surge muito mais, coisas surpreendentes.
No Primeiro capitulo ele faz uma abordagem sobre os variados estudos sobre o funcionamento dos dois lados do cérebro, mas de uma forma cativante, contando boas histórias, na verdade sente-se a empatia e a capacidade narrativa deste autor. Sabiam por exemplo que embora o lado esquerdo do cérebro seja responsável pala compreensão de um texto, mas é o lado direito que o contextualiza-o, relaciona-o e percepciona a emoção - o que faz com que quem leia uma obra de literatura e que tenha lesões no lado direito do cérebro, não vai compreender as metáforas, não se vai emocionar nem vai contemplar esse texto literário. Fantástico 2-0 o lado direito está a ganhar. Mas vai ganhar muito mais, sabiam que nas universidades mais conceituadas dos E.U.A. os estudantes de medicina estudam pintura e teatro. Porque será? Não digo, leiam-no. No segundo capitulo Daniel Pink apresenta-nos os Seis Sentidos da era conceptual (que é esta nova era que está a surgir depois de uma era do conhecimento). Os seis são Design, História, Sinfonia, Empatia, Diversão e Sentido. Saio da leitura deste livro com mais certeza que os currículos escolares tem urgentemente que mudar, para nos prepararmos para os desafios desta nova Era. É necessário aulas de teatro, dança, música, artes, riso e conversa em vez de as imensas horas que os nossos alunos passam a decorar o aparelho digestivo, os acontecimentos sociais que estão na base da revolução francesa ou ainda o presente do conjuntivo do verbo ser porque pouco se chega a ser com estes programas de ensino.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

CARNAVALIZAÇÃO OU VANTAGENS E MALEFÍCIOS DE UMA TEORIA




O texto de Jorge Amado “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água” (um dos contos mais fabulosos da moderna literatura brasileira) tem sido analisado a partir do modelo apresentado pelo estruturalista Bakhtin (veja-se a sua obra “La poétique de Dostoevski”), o que se me afigura extremamente redutor – portanto, errado.
No texto de Jorge Amado, são postos em confronto os dois mundos de Quincas: o mundo médio-burguês de funcionário público, em que viveu a grande parte da sua vida, e o mundo da vadiagem, do malandro dos bairros populares da Baía, em que mergulhou nos seus últimos anos de vida. Ou, de outro modo: o mundo dos socialmente "bem comportados" e o submundo dos "desregrados." É a morte de Quincas que desencadeia a acção, que culmina com o "rapto" do seu corpo do caixão, em que a família o depositara, e a "organização", pelos seus companheiros de estúrdia, de um funeral, durante o qual o morto-vivo é passeado pelo "bas-fond" baiano - e que atinge o seu clímax a bordo de um saveiro, em que todos embarcam, para festejarem condignamente a "morte-aniversário" de Quincas. Quintas que acaba por mergulhar no mar, para não mais ser visto. É evidente que a história (o conto, como lhe chamou o autor) não se confina a este esquema simplificado, pois envolve outros aspectos - de ordem psicológica, sociológica, antropológica - que lhe conferem uma densidade emocional e humana, digna das melhores páginas de Jorge Amado.
E aqui surge a minha discordância em relação a algumas interpretações de críticos brasileiros: para eles, Jorge Amado, nomeadamente neste conto, constitui o exemplo perfeito da carnavalização na literatura. O modelo de análise proposto por Bakhtin, quando aplicado a este autor, permitiria detectar e caracterizar a verdadeira carnavalização em literatura. Neste linha de interpretação encontra-se Affonso Romano de Sant'Anna, que, em artigo publicado em "Jorge Amado, Km 70. Tempo Brasileiro", transforma Jorge Amado num autor carnavalizante - "malgré lui". Mas Affonso Sant'Anna, quanto mais defende a sua tese, mais entra em contradição - de que não se apercebe. Sendo o Carnaval, para Affonso Sant'Anna, uma festa comunitária (feita de excessos consentidos), a ter lugar na praça pública, em que todos participam, mascarando-se do que não são, toma como exemplo acabado o enterro de Quincas, realizado pelos seus pares de folia. Sacado do seu caixão forrado a cetim, onde a família o tinha encafuado depois de lavado e vestido a preceito, Quincas é desvestido do seu fatinho de morto bem comportado e recupera os trapos com que se cobria, quando foi encontrado morto - os trapos que usara nos seus últimos doze anos de vida. Assim, voltado ao seu normal, Quincas é levado a fazer o périplo diário das tabernas da cidade e, destas, levado é para a grande farra do saveiro que sulca o mar da Baía - para a homenagem final, que os amigos lhe querem prestar - sempre acompanhado pelos seus companheiros do álcool, da música, do amor. Ou seja, é reposto na sua identidade, por aqueles com quem conviveu na parte final da vida - em suma, é "desmascarado."
Ora, na opinião de Affonso Sant'Anna, o "enterro" constituiria a mais lídima das expressões de uma verdadeira carnavalização, o que se me afigura totalmente errado. Não só porque a família não participa nele (nem o pode aceitar), mas também porque os amigos não o vêem como situação carnavalizante, mas, sim, como a recuperação de um viver normal (para eles, se carnavalização houvesse seria o seu enterro de caixão e roupinha de luto...). Em última instância, não há mascaração alguma, pois cada uma das classes sociais, a que pertenceu o Quincas, reivindica para si a identidade do "seu" morto, opondo-se a que a outra dele se aproprie. O enterro "em orgia" não é mais do que a legitimação do que seria a vontade final do falecido. Por outro lado, note-se (e repita-se) que não há qualquer festividade colectiva, em que todos participassem. Pelo contrário, cada uma das classes sociais se acantona no seu território, ignorando a outra.
Ao chegar ao fim destas linhas, interrogo-me sobre as razões que me levaram a escrevê-las. Talvez sejam duas: o valor literário do conto e a minha discordância pela análise que dele tem sido feita, à luz de um modelo que o simplifica e deforma. Os modelos são como fatos prontos-a-vestir: só por mero acaso é que o nosso corpo cabe dentro deles. E, aqui, a imagem do fato-pronto-a-vestir ultrapassa, e em muito, o seu sentido meramente simbólico - o fato é um elemento central da história de Jorge Amado... História maior dentro da literatura de língua portuguesa do século XX, em que o humor, a ironia, a paródia se entretecem de um modo inextrincável - e se negam a serem dissecados pelo escalpelo de um instrumento forjado na oficina do estruturalismo..

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Como a água que corre


Sem relógio, sem calendário ..., o tempo passava como um relâmpago ou então durava eternidades. Nascia o Sol, e desaparecia, num sítio um poucochinho diferente do da véspera, um pouco mais cedo todas as noites, um pouco mais tarde todas as manhãs. A madrugada e o crepúsculo eram os únicos acontecimentos de monta. Entre eles algo corria que não era o tempo, mas a vida.

Como a água que corre

Marguerite Yourcenar

Suponho que o filósofo pré-socrático Heráclito tenha sido o primeiro a utilizar a imagem da corrente de um rio como metáfora para a passagem do tempo: “Nunca nos banhamos nas mesmas águas ...”. A justeza da imagem, útil na discussão filosófica, e relevante também na física, não deixa de fascinar poetas e escritores.

Marguerite Yourcenar, não escapou ao encanto do fluir da água e a mestria do seu estilo único e memorialista deu origem a nada menos do que uma obra prima. “Como a água que corre” (Comme l’eau qui coule) de 1982, é um livro composto por três novelas escritas em períodos distintos. Um livro de rara beleza, escrito por uma autora cujo compromisso para com a escrita era um exercício existencial que só podia ser considerado concluído quando a sua exigência de perfeição estava inteiramente satisfeita.

A primeira novela, “Anna, Soror”, escrita em 1922, apareceu em 1935 numa colectânea de textos da autora emtitulada La Mort Conduit l’Attelage (A Morte Conduz a Carruagem). Porém, com “o correr da água” a autora compreendeu que o título era demasiado simplista, pois descobriu “que a morte conduz a carruagem, mas a vida também”. Como a “água do rio”, “ou por vezes da torrente, ora lamacenta, ora límpida, que a vida é”.

Anna, Soror”, reeditada com acrescentos em 1982, descreve a evolução espiritual duma mulher que encontra na devoção religiosa a resposta ao amor que sente pelo irmão. O pano de fundo são uma Nápoles renascentista e uma Flandres em guerra. Austeridade e mortificação convivem com a alteração das lealdades políticas, que obrigam as mulheres, e Anna em particular, a casar segundo os interesses do momento e das famílias. Casamentos marcados pela indiferença e por gravidezes, “suportadas com resignação”; pelo “amor animal pelos filhos, que diminuía logo que dela deixavam de necessitar”. Anna, vive os seus últimos dias como pensionista num convento. Conquista a sua paz na resignação e nas leituras. Os seus derradeiros dias são de uma “felicidade violenta” que preenche “com seus ecos e reflexos, todos os recantos da eternidade”.

“Um Homem Obscuro” apresenta-nos Natanael, um homem simples, de alma límpida, que viveu nos Países Baixos no século XVII, depois de fugir de Inglaterra ainda muito jovem, por erroneamente pensar que teria cometido um crime. A aventura leva-o à América, onde vive com colonos ingleses que, abandonados, vivem praticamente como selvagens. Acaba por voltar para a Europa e instala-se nos Países Baixos, terra de seus pais antes de terem emigrado para Inglaterra. Ali trabalha inicialmente na tipografia do tio avaro, que acaba por enganá-lo na transacção da sua herança. Envolve-se então com uma prostituta do bairro judeu com quem tem um filho, Lázaro. Acaba como lacaio e termina os seus dias na solidão duma ilha de seu amo. Doente e completamente só, pronunciava alto o próprio nome para “comprovar que ainda possuía voz e fala”. “Continuava a gostar apaixonadamente do mar” para manter “o ânimo para gostar apaixonadamente de qualquer coisa”. Esgota-se o seu tempo sem sobressaltos. Não tem certeza que a chama que representa se apague completamente, mas “optava, de preferência, pela escuridão total, que lhe parecia a solução mais desejável: ninguém necessitava de um Natanael imortal ... À sua volta havia o mar, a bruma, o sol e a chuva, os bichos do ar, da água e da gândara; ele vivia e morria tal qual os bichos. Isso bastava.”

“Uma Bela Manhã” dá continuidade à história de Natanael, ao retratar a fuga de seu filho Lázaro para se juntar a uma trupe de teatro. Conduzem-no o anseio pela liberdade inerente à vida etinerante e a ambição de poder representar as mais diversas personagens, Lady Macbeth, Shylock, Jessica, Próspero, ou simplesmente um palhaço. Uma novela onde a ênfase situa-se no tempo futuro, aberto e auspicioso, escultor dum personagem que não tem uma forma própria, pois almeja ter mil formas.

Orfeu B.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A ENTREVISTA ENQUANTO GÉNERO LITERÁRIO

A leitura de “Porgy and Bess”, de Truman Capote, constituiu, para mim, uma revelação: estava perante um género literário que eu conhecia bastante mal, ou seja, a entrevista alcandorada ao seu mais alto nível. Entrevista que tem um pé no jornalismo e outro na autobiografia. Desde aí, passei a acompanhar, tanto em publicações portuguesas como estrangeiras, o que se ia publicando neste domínio. E, entre as primeiras, um nome sobressaía: Carlos Vaz Marques, entrevistador extremamente bem informado da obra dos escritores que ia entrevistando. Ora, é exactamente de uma obra de Vaz Marques que quero falar: “Entrevistas da Paris Review”.
Trata-se de uma selecção (e tradução) feita pelo autor, que acaba de ser publicada pela Tinta da China. Obra que agrupa entrevistas a dez grandes nomes da literatura do século XX: E. M. Forster, Graham Greene, William Faulkner, Truman Capote, Ernest Hemingway, Laurence Durrel, Boris Pasternak, Saul Bellow, Jorge Luis Borges e Jack Kerouac.
Evidentemente que gostaria de me referir a estas dez entrevistas, mas, como tal não é possível, limitar-me-ei a três delas, às que foram feitas a Truman Capote, Boris Pasternak e Jack Kerouac, tanto por razões de conteúdo como de forma. E, claro, pela diversidade das abordagens dos vários entrevistadores e pelas reacções dos escritores sujeitos ao escrutínio da entrevista. Convirá lembrar que as entrevistas da Paris Review constituem uma contribuição decisiva para o aparecimento da entrevista enquanto género literário. Fundamentalmente por duas razões: por se centrarem exclusivamente na obra literária do autor e por serem realizadas por escritores, ou por pessoas verdadeiramente ligadas à literatura (daí, perguntas estereotipadas como “de que fruto gosta mais” ou “qual a sua cor preferida” ficassem definitivamente banidas...)
Na entrevista que lhe foi feita por Pati Hill, Truman Capote aborda aspectos essenciais para compreendermos a sua obra. Assim, considera que a escrita de contos, no início da sua carreira literária, constituiu o treino mais adequado para o desenvolvimento da sua escrita futura. Inclusivamente, teria sido o conto que lhe permitiu adquirir o “controlo” necessário à sua escrita. Esclarece que, por controlo, entende a manutenção das “rédeas estilísticas e emocionais do nosso material”. E acrescenta: “eu acredito que uma história pode naufragar por um problema de ritmo numa frase – em particular se isso acontece já na parte do fim – ou por um erro na abertura de um parágrafo, ou mesmo de pontuação”.
A pergunta de como se desenvolve a técnica do conto permite-lhe explicar: “Dado que cada conto nos coloca problemas técnicos próprios, não se pode obviamente generalizar a esse respeito, numa base de dois mais dois é igual a quatro. Encontrar a forma certa para a nossa história é pura e simplesmente descobrir qual o modo mais natural de a contar. O teste para descobrir se um escritor adivinhou qual o formato natural para a sua história é apenas este: depois de a ler, consegue imaginá-la de outra maneira ou ela silencia-lhe a imaginação e parece-lhe absoluta e definitiva?”.
Quando lhe perguntam sobre a forma de melhorar a técnica da escrita, ele é peremptório: “O trabalho é a única forma de que eu tenho conhecimento. A escrita tem as suas leis de perspectiva, de luz e de sombra, tal como a pintura e a música. Se se nasce conhecendo-as, óptimo. Se não, tem de se aprender”.
Capote considera que nunca teve um momento de tranquilidade, exceptuando aqueles em que está sob o efeito de tranquilizantes, pelo que não poderá dizer que alguma vez tenha escrito uma obra em tranquilidade. E reconhece que uma “pontinha de stress” lhe faz bem.
Diz que lê demasiado, inclusivamente quando está a escrever, mas que não sente a “presença de outro escritor a infiltrar-se por debaixo da (sua) escrita”.
Considera, ainda, que todos os escritores têm um estilo, o que é imprescindível para a sua afirmação. Estilo que não se alcança de uma forma consciente. “Bem vistas as coisas, o estilo somos nós. No fundo a personalidade de um escritor tem imenso que ver com a sua obra”... “A humanidade individual do escritor, a sua palavra ou o seu gesto em relação ao mundo, têm de surgir quase como uma personagem que entra em contacto com o leitor. Se a personalidade é vaga ou confusa ou meramente literária ça ne vas pas”.
Truman Capote referiu-se também às condições e aos processos da sua escrita, aos diversos rascunhos que faz, ao facto de só conseguir escrever na cama; ao processo da escrita propriamente dita. Embora a história já esteja na sua cabeça, o que vai acontecendo ao longo do processo é algo de grande importância. Escrita que não é autobiográfica, pois a sua imaginação é suficientemente rica para poder prescindir de outras fontes que alimentem as suas histórias.
Se a entrevista a Capote está centrada única e exclusivamente na sua obra, a que Olga Carlisle faz a Boris Pasternak tem como referentes o ambiente em que vive o escritor, as suas concepções sobre cultura, literatura, arte. O que a não torna menos aliciante. Aliciante, sim, embora extremamente difícil de dar notícia nas poucas linhas de um blogue. Por outro lado, toda a entrevista é atravessada pelas descrições do ambiente em que vive Pasternak: a sua casa, pequena, acolhedora, a cidadezinha de escritores dos arredores de Moscovo, onde se situa, as paisagens naturais em pano de fundo. E, mais do que o envolvimento físico, o envolvimento humano em que Pasternak circula, dentro da sua própria casa. A sua presença, a sua personalidade, a aura de que dele se desprende. Este encantamento não é quebrado pela sua fala, quando aborda temas de literatura, antes pelo contrário.
Olga Carlisle (a entrevistadora, de ascendência russa) quer saber por que Pasternak abandonou a poesia, em que se tinha destacado nos anos iniciais da sua carreira literária. A resposta, à semelhança de todas as outras, veio simples e esclarecedora: “A minha geração deu por si no centro da história. As nossas obras foram-nos ditadas pela época. Faltava-lhes universalidade, agora envelheceram. Mais ainda, acredito que já não é possível à poesia lírica exprimir a imensidão da nossa experiência. A vida desenvolveu-se de um modo extremamente incómodo, extremamente complicado. Adquirimos valores que se exprimem melhor em prosa. Eu tentei expressá-los no meu romance e tenho-os presente no meu espírito enquanto escrevo a minha peça de teatro”.
Pasternak estava a escrever uma peça teatral que se situava noutra época histórica. Daí, as referências que faz a essa peça e ao que considera essencial numa obra cuja acção se situa no passado: “A princípio, consultei todo o tipo de documentos do século XIX. Agora, dei por mim terminada a pesquisa. No fim de contas, o que é importante não é a precisão histórica da obra mas a recriação bem sucedida de uma época. Não é o objecto descrito que importa, mas a luz que se derrama sobre ele, como de um candeeiro de sala ao longe”.
Sobre a eternidade de uma obra literária, considera “que, embora o artista vá morrer, a alegria de viver que ele experimentou é imortal. Se ela foi captada de uma forma pessoal e simultaneamente universal pode na verdade ser revivida por outros por intermédio da sua obra”.
As transcrições que acabo de fazer são exemplos das perspectivas de um grande senhor das letras, que paira sobre a sua obra e a de outros escritores, deixando aos vindouros um testemunho pleno de lucidez sobre a sua época e a sua escrita.
Totalmente diferente é a entrevista feita a Jack Kerouac. Realizada em casa do escritor (aliás, como todas as outras), desenrola-se em condições muito especiais, o que acabou por condicionar o posicionamento e o depoimento de Kerouac. Entrevista regada com algumas bebidas alcoólicas e pontuada pela ingestão de anfetaminas. Ted Berrigan conduziu o diálogo com a colaboração de dois poetas presentes, Aran Saroyan (filho do escritor William Saroyan) e Duncan McNaughton. Da conjugação destes elementos resultou uma entrevista extremamente dinâmica, em que a criação desempenhou um papel essencial. Exemplo deste dinamismo criador é o que aconteceu quando lhe perguntaram como escrevia os seus haiku: “Haiku? Quer ouvir um haiku? Como sabe tem de se comprimir em três curtas linhas toda uma grande história. Primeiro começa-se com uma situação de haiku – por exemplo, vê-se uma folha, como lhe disse a ela uma noite destas, a cair sobre um pardal durante uma enorme ventania invernosa de Outubro. Uma folha grande cai sobre um pequeno pardal. Como é que se comprime isto em três linhas? Em japonês tem de se comprimir em dezassete sílabas. Isso nós não temos de fazer em americano – ou em inglês – porque não temos a mesma treta silábica que o idioma japonês tem. Portanto, diz-se: ‘Pequeno pardal’ – não é preciso dizer pequeno, toda a gente sabe que eles são pequenos e portanto diz-se:

Pardal
Com uma grande folha sobre si –
Ventania

Não presta, não funciona, rejeito-o.

Um pequeno pardal
Quando uma folha de Outono subitamente se agarra a ele
Trazida pelo vento.

Ah, assim não dá. Não, é um bocadinho longo demais. Está a ver? Já é um bocadinho longo demais, Berrigan, está a perceber o que eu lhe estou a dizer?

Parece haver uma palavra a mais ou coisa assim, como aquele quando.
E assim:

Um pardal
Uma folha de Outono subitamente agarra-se a ele –
Trazida pelo vento!

Hei, assim está bem. Acho que o quando era a palavra a mais. Apanhou a ideia certa, O’Hara! “Um pardal, uma folha de Outono subitamente”, não temos de dizer subitamente, pois não?

Um pardal
Uma folha de Outono agarra-se a ele –
Trazida pelo vento!”

Apesar de algum esforço do entrevistador, Kerouac pouco fala da sua obra, das suas características, das influências recebidas. Preferiu falar das suas relações com outros escritores, como Allen Ginsberg e Burroughs. Enfim, um conjunto de referências a autores e obras, dados importantes para se compreender o que foi a “geração beat”. Do pouco que diz sobre a sua escrita, será de destacar o que se refere à emoção: “E podem ter a certeza de uma coisa, eu passei toda a juventude a escrever muito lentamente, a rever o que escrevia e a refazer tudo e a apagar e portanto escrevia uma frase por dia e a frase não tinha EMOÇÃO. Rai’s partam, é da EMOÇÃO que eu gosto na arte, não é da ASTÚCIA e da dissimulação de emoções”.
Ora, será esta necessidade de emoção e a opção pelo estilo confessional que o terão levado a escrever “Pela Estrada Fora” (“On the Road”), a sua obra mais emblemática.
Também é curiosa a referência que faz às drogas, ao modo como as utilizou para escrever algumas das suas obras, nomeadamente poesia. Poesia em que, a partir de certo momento, se terá verificado influência do Budismo.
Esta entrevista que vale, fundamentalmente, por revelar muito do mundo interior de Kerouac, pleno de contradições, por vezes a roçar o caos. Mas pouco nos diz sobre o modo como desse mundo brotou a sua obra, qual flor exótica cujas raízes nem o próprio conhece – e não será esta a prova provada de que estamos perante um verdadeiro escritor?

sábado, 16 de janeiro de 2010

A LITERATURA POR DENTRO



Namorei este livro durante a época natalícia. Esteve quase a fazer parte das prendas que me concedo a mim próprio com mais frequência que o bolso desejaria, quer seja Natal ou não.

Só que eu estava mais interessado em romance e pouco inclinado a esperar que estes grandes autores de romances passassem nestas entrevistas pouco mais que da banalidade das opiniões avulsas, apesar das promessas em contrário de Carlos Vaz Marques na contracapa.

A tentação venceu. Talvez a capa tenha contribuído para isso. O trabalho gráfico de Vera tavares é muitíssimo apetitoso e, como os olhos também comem, lá trouxe estas entrevistas para casa. E em boa hora porque estão para além de todas as minhas expectativas.

Primeiro ponto: as entrevistas vão direitas ao processo de trabalho dos escritores e os rios da literatura em que se enquadram, filiações, paixões.

Duas excepções por razões diferentes: a entrevista a Joge Luís Borges que navega em torno de obsessões tão distantes de nós como as particularidades do inglês e do norueguês antigos, e ainda as catadupas de autores ingleses que refere e que só serão conhecidos dos especialistas da literatura anglo-americana. mas ele próprio diz que quando começou a perder a vsão, o mundo começou a afastar-se de si.

A outra excepção é a entrevista de Jack Kerouac. Tanto ele como o entrevistador estarão razoavelmente pedrados durante a entrevista que tem momentos delirantes num mergulho que por vezes vai ao fundo e corta as ligações com o leitor, outras vezes vem ao de cima e lança uma luz inesperada sobre uma sequência razoavelmente arbitrária de assuntos com especial incidência na história e autores da chamada literatura beat.

Fiquei particularmente tocado por dois autores que (malgré moi) nunca li e que faço agora questão de ler com alguma urgência, Lawrence Durrell e E. M: Forster.

Hemingway e Capote, magníficos, fazem um belo espectáculo, cada um à sua maneira. Brilham. São dois actores a fazer o papel de si próprios e daquilo que querem que os outros pensem de si próprios. E ficam-nos deles algumas curiosidades como saber que um escrevia de pé horas a fio e o outro na cama.

Boris Pasternak parece ser uma estátua, um monumento a si próprio e a esse filão fabuloso que é a literatura russa.

Faulkner é um grande senhor da literatura. Duro. Intransigente.Certeiro. tenho de o reler.

Saul Bellow dá-nos uma abordagem complexa sobre as questões da escrita e da cultura e ainda sobre o enfoque judaico no entrelaçar destes temas.

Figura tutelar para quase todos é a de James Joyce. Os anglo-saxónicos têm-no como a fonte, a referência, a ruptura imprescindível. Fora da literatura na sua língua são muito poucas as suas refrências.

Para mim, o fundamental foi saber o que é que cada um pensava do seu próprio ofício, da arte, da articulação de ideias e emoções através da palavra, visitar o seu canto, bisbilhotar os seus gestos, os seus adornos, os seus ritmos. Deixo o pedido à editora "Tinta da China" e ao carlos Vaz marques que seleccionou e traduziu estas entrevistas: não podem publicar mais umas quantas das entrevistas da Paris Review?

Ficam-me algumas citações, marrações provisórias, bombas de profundidade que me servirão para reflectir sobre esta arte maravilhosa que é a de escrever e escrever e escrever.

" - Como é que um escritor se torna num romancista sério?

(Faulkner) Noventa e nove por cento de talento... Noventa e nove por cento de disciplina... Noventa e nove por cento de trabalho. Nunca nos podemos dar por satisfeitos com aquilo que fazemos. Nunca nada é tão bom como aquilo de que somos capazes."

"(Saul Bellow) Alguns escritores são demasiado sérios a respeito de si próprios. existe o perigo de tornar o A de artista demasiado maiúsculo. Stravinsky diz que o compositor deve praticar o seu ofício tale qual como um sapateiro. Mozart e Haydn aceitaram encomendas. No séc. XIX, o artista esperava altivamente pela inspiração. Quando alguém se eleva a si mesmo a um patamar de instituição, está metido em sarilhos."

"(Jorge Luís Borges) Não me parece que um escritor se deva intrometer demasiado no seu próprio trabalho. Deve deixar o trabalho escrever-se a si próprio, não é?"

"Lawrence Durrell) A poesia acabou por se revelar uma amante extraordinária. Porque a poesia é forma, e o namoro e a sedução da forma é a regra do jogo."

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

QUE VIVA A LITERATURA QUE NOS DÁ PRAZER




A propósito do novo livro de Dan Brown, recordei-me do texto que escrevi, faz alguns anos, sobre o seu “Código Da Vinci”.


A propósito do valor literário que Alberto Manguei confere às obras que contam histórias, quero referir o livro de Dan Brown, "O Código Da Vinci". Li-o em poucos dias, o que, para mim, foi proeza notável, visto a obra ter mais de quinhentas páginas (na edição portuguesa). E essa leitura permitiu-me compreender a razão do seu êxito – êxito clamoroso, tanto nos Estados Unidos da América, como nos países da Europa (Portugal, neles compreendido). De facto, estamos perante uma história bem contada, que tem início no assassinato do conservador chefe do museu do Louvre e que se desenvolve segundo as regras do romance policial, em que cada capítulo constitui uma peça de um "puzzle" complexo e nos incita a passarmos ao capítulo seguinte, ou seja, à pedra seguinte do "puzzle", que dê sentido ao enigma em que nos vamos enredando.
O tema central é aliciante: a revelação dos segredos que envolvem a vida e a pregação de Jesus e o escamoteamento que a Igreja Católica Apostólica Romana teria feito, ao longo dos séculos, de tudo o que se refere à presença do elemento feminino na doutrina cristã – presença imprescindível à compreensão da mensagem de Cristo, na opinião de Dan Brown. Segredo, segredos que, no entanto, teriam sido preservados, desde tempos imemoriais, por figuras de eleição e por certas instituições, como é o caso da ordem místico-religiosa dos Templários. Leonardo Da Vinci seria, exactamente, um dos iniciados em tais secretismos e, ao longo da sua obra pictórica, ter-nos-ia deixado pistas várias, que permitiriam a sua revelação. Entre essas obras, avulta "A Última Ceia de Cristo", que, através das personagens que a compõem, nos colocaria na senda da decifração de um dos mistérios que mais têm inflamado a imaginação do homem ocidental: a demanda do Santo Graal!
Eis, em linhas gerais, a trama e os ingredientes de que é feita a obra. Mas há mais e será nesse mais que reside o que ela tem de singular – e cativante. Por exemplo, o crime de morte que desencadeia a acção gera dois "inquéritos": o policial e o que é conduzido por um professor americano, perito em simbologias, que, por via disso, é considerado o suspeito número um - o que o leva a empreender a fuga. A ele se agrega a neta do conservador, que guarda memória de algumas conversas com o avô, o que se revela de grande utilidade para a compreensão do que se teria passado. Estas duas investigações, opostas nos métodos que utilizam, vão-se mutuamente imbricando, por força das circunstâncias, o que confere um interesse acrescido à narrativa. Narrativa pontilhada por uma série de imprevistos, mortes, que adensa o mistério e apelam à imaginação do leitor. Este apelo ainda é mais evidente nas questões que lhe são postas, através de uma complexa orquestração "charadística" da acção (e de uma utilização permanente de onomásticos de raiz anagramática), o que exige uma dupla participação do leitor: enquanto "construtor reflexivo" do texto e sujeito moral que tem de "tomar partido". Por isso e pelo sentido eminentemente visual da narração, "O Código Da Vinci" apresenta fortes semelhanças com a obra cinematográfica (e, até, com algumas telenovelas). Semelhanças que se acentuam com a organização da acção por núcleos temáticos, que funcionam como registos autónomos (cada capítulo - curto - encerra um episódio específico e um conjunto de capítulos narra uma história dentro da história).
Poderemos dizer que os grandes temas abordados (profano versus sagrado; pagão e cristão; poder e prepotência da Igreja Católica; desvalorização e subordinação do feminino), são tratados de modo simplista, ingénuo, preconceituoso, confundindo-se constantemente a realidade com a fantasia, a História com a lenda – poderemos, pois, dizer tudo isso, mas não poderemos deixar de nos deliciar com o encanto que emana de urna história muito bem contada. Com Alberto Manguel, direi: que viva a literatura que nos dá prazer, seja ela qual for!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O SENTIDO E A AUSÊNCA DE SENTIDO



Pintura também faz parte da leitura. E de que maneira. Vem isto a propósito de uma enorme e fantástica exposição no Palácio Galveias de João Abel Manta.

Grande senhor da cultura e da arte, João Abel Manta vive há muito retirado dos holofotes, dos jornais e das miudezas sociais. Desenhador, ilustrador e cartoonista, João Abel Manta, por insistência da filha, deu agora a conhecer parte do seu excepcional trabalho como pintor.

Está no Palácio Galveias em Lisboa, ao Campo Pequeno. Guarde-se um bom par de horas para o apreciar porque é de uma imensa coerência, densidade e extensão. Imperdível.



Vem esta conversa a propósito da busca de sentido em cada leitura que se faz do mundo, da arte e da vida, por um lado, e, por outro lado, do negócio manhosito que anda por aí a grassar e que faz profissão de louvar a ausência de sentido.

O Jornal de Letras de 16 de Dezembro traz uma reportagem/entrevista com João Abel e um artigo de Rocha de Sousa que reflecte e nos ajuda a ler a obra agora exposta e que, através de uma grande coerência formal nos leva a viajar por mitologias diversas, retratos de músicos, pintores e escritores que são reflexões plásticas sobre o fazer da arte e queainda nos atira à cara duas mortes de Salazar que têm algo de vingança tardia e retrato de um país onde a imagem reciclada do ditador continua a fazer algumas aparições fantasmáticas.

Tomando para si uma herança óbvia da paleta de Goya e, em parte, de alguns simbolistas e expressionistas, João Abel Manta trabalha sobre uma enorme teia de sentidos, de inter-relação de referências culturais, pictóricas, literárias, musicais, históricas e mitológicas, e assim acrescenta-nos na nossa sempre incompleta forma de olhar e ler o mundo e a história.



Curiosamente, ao lado das quatro páginas dedicadas a João Abel Manta, temos uma página dedicada à edição da obra de Adília Lopes que tem por título "Dobra".

Da comparação das duas abordagenn à obra de um e à "Doba" da outra, nasce-me uma leitura sobre alguns equívocos que passam pela promoção daquilo a que se tem chamado a pós-modernidade nas artes plásticas e na literatura.

Muita da arte contenporânea dita pós-moderna existe pelo que não é. Ou melhor, para existir exige complexas elaborações teóricas sem as quais essas mesmas formas artísticas seriam com frequência absolutamente ilegíveis. Em certos casos, diria, a obra dita de arte chega mesmo a ser excedentária e dispensável.

Podemos, assim, opôr uma arte que se baseia em rebuscadas explicações e elaborações teóricas de comissários, curadores, críticos e outros avulsos, a uma outra arte que busca na raiz da história a forja do sentido.

O artigo em causa fala-nos da obra ou da "Dobra" de Adília como algo que "levado às suas últimas consequências não quer dizer exactamente nada". Fala da "despoetização dos seus poemas" e tece-lhe desatados elogios, ligando-a a uma delirante lista de autores e pintores que vão de Gil Vicente e Eça de Queiroz a Paula Rego ou Alexandre O'Neill.

Por imensas razões poderia questionar a pertença da autora a esta sequência um pouco arbitrária de nomes respeitabilíssimos.

Refiro apenas O'Neill, curiosamemte grande amigo de João Abel Manta, e que era, quanto a mim, o oposto de Adília Lopes: um homem cuja obra é uma fantástica fábrica de produzir sentidos.

Ele próprio denunciava certas ligeirezas, perguntando num poema aos seus colegas poetas se não estariam a exagerar "no fabrico da faca sem lâmina a que lhe falta o cabo"...

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

ANTICLERICALISMO EM ALBERTO CAEIRO E GUERRA JUNQUEIRO




Se Alberto Caeiro é conhecido pelo seu lirismo panteísta, Guerra Junqueiro (o Junqueiro de “A Velhice do Padre Eterno”) é geralmente conotado com a sátira, a virulência anti-clerical. Mas será mesmo assim? Desta pergunta, decorre o texto que se segue

"Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado."

Assim começa Alberto Caeiro o seu poema "O Guardador de Rebanhos". Através destes primeiros versos, fica dado o tom lírico do texto. Lirismo eivado de amor por tudo o que existe na Natureza. Ora, é exactamente esta característica que tem levado os críticos a considerar "O Guardador de Rebanhos" como um dos grandes poemas panteístas da nossa literatura. Admitamos que assim seja. Mas, se o admitirmos, logo surge uma pergunta: como se explicam as primeiras estrofes do "canto" VIII? Estrofes do mais violento anticlericalismo da poesia portuguesa. O menino Jesus, que tinha descido à terra por um raio de sol, fala ao poeta do céu, do seu Pai e da sua Mãe:

"Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!"

E depois de descrever as brincadeiras, as pequenas "diabruras" do Deus menino, Caeiro acrescenta:

"Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou
"Se é que ele as criou, do que duvido".

A violência anticlerical explode, pois, em toda a sua força, a contrastar não só com o início do poema, como com as estrofes seguintes do texto. Embora compreenda o efeito contrastante que Alberto Caeiro-Fernando Pessoa pretende obter com a inclusão deste "intermezzo", não posso deixar de me espantar com a violência anticlerical que o caracteriza. Tão violento quão primário, o que, de modo algum, caracteriza a poesia de Pessoa. Anticlericalismo que se aproxima, e em muito, da poesia de "A Velhice do Padre Eterno", de Guerra Junqueiro. Mas não é só neste aspecto que o poema de Caeiro-Pessoa se aproxima de "A Velhice...": as suas estruturas também apresentam grandes semelhanças. Como Pessoa-Caeiro, Guerra Junqueiro inicia o seu poema com uma estrofe feita de pureza e simplicidade:

"Ó almas que viveis puras, imaculadas
Na torre de luar da graça e da ilusão,
Vós que inda conservais, intactas, perfumadas,
As rosas para nós há tanto desfolhadas
Na aridez sepulcral do nosso coração;
Almas, filhas da luz das manhãs harmoniosas,
Da luz que acorda o berço e que entreabre as rosas..."

Repare-se como o lirismo que percorre estes versos se constrói a partir de imagens, de metáforas que têm a alma humana e a Natureza como referentes centrais. Mas, rapidamente, essa toada de elevada espiritualidade transforma-se num violento ataque à religião católica, à sua Igreja, aos sacerdotes que a constituem. A obra, embora entremeada por alguns trechos de sentido lírico, é, no seu conjunto, uma violentíssima diatribe contra a Igreja e as "suas concepções" de Deus:

..."Como éle é velho, com o frio
Tósse; e Prudhome diz-lhe então:
- Deus, aqui tens êste bacio...
Não vás cuspir no meu salão.

E às vezes do alto do infinito,
Talvez depois dum mau jantar,
O Padre Eterno faz cabrito,
E enche o bacio a transbordar.

E o pote enorme onde cuspinha
O truculento Manitu,
Sem ninguém ver, logo à
noitinha
Vai despejá-lo Belzebut."

Por sua vez, a criação do mundo ("O Génesis") constitui uma das tiradas mais violentas, em que o sórdido se alia à mais desenfreada das mordacidades:

"Jeová, por alcunha antiga - o Padre Eterno,
Deus muitíssimo padre e muito pouco eterno,
Teve uma ideia suja, uma ideia infeliz:
Pôs-se a esgaravatar co'o dedo no nariz,
Tirou dêsse nariz o que um nariz encerra,
Deitou isso depois cá baixo, e fez-se a terra.
Em seguida tirou da cabeça o chapéu,
Pô-lo em cima da terra, e zás, formou o céu.
Mas o chapéu azul do Padre-Onipotente
Era um velho penante, um penante indecente,
Já muito carcomido e muito esburacado,
E eis aí porque o céu ficou todo estrelado.
Depois o Criador (honra lhe seja feita!)

Achou a sua obra uma obra imperfeita,
Mundo sarrafaçal, globo de fancaria,
Que nem um aprendiz de Deus assinaria,
E furioso escarrou no mundo sublunar,
E a saliva ao cair na terra fez o mar.
Depois, para que a Igreja arranjasse entre os povos
Com bulas da cruzada alguns cruzados novos,
E Tartufo pudesse inda dessa maneira
Jejuar, sem comer de carne à sexta-feira,
Jeová fez então para a crença devota
A enguia, o bacalhau e a pescada marmota.
Em seguida meteu a mão pelo sovaco,
Mais profundo e maior que a caverna de Caco,
E arrancando de lá parasitas estranhos,
De toda a qualidade e todos os tamanhos,
Lançou-os sôbre a terra, e dêste modo insonte
Fez êle o megatério e fez o mastodonte..."

Creio que os exemplos que citei dão a dimensão do que pretendo fazer
ressaltar: as semelhanças entre o anticlericalismo dos dois autores. Semelhanças
na organização do discurso, nas terminologias, na construção das invectivas.
Evidentemente que em Alberto Caeiro surge como algo de pontual, o que não
acontece em Guerra Junqueiro, que utiliza este estilo de modo sistemático, com
um propósito bem definido: lutar contra o poder da Igreja Católica, enquanto
militante republicano que pretende minar o poder da Monarquia, de que a Igreja
era um dos suportes mais sólidos. Mas o escrito de Guerra Junqueiro data de 1882 e o de Caeiro-Pessoa de 1912, momento em que a República já estava implantada. Assim, o que se compreende em Guerra Junqueiro dificilmente será de entender em Caeiro-Pessoa. Não só pela sua inserção no tempo, como também pela falta de motivação de Fernando Pessoa para as lutas político-partidárias. Mas talvez possa haver uma explicação para o paralelismo entre “A Velhice do Padre Eterno” e “O Guardador de Rebanhos”. Ou seja, tratar-se-á de um mesmo artifício literário, através do qual se pretende fazer ressaltar a pureza, a beleza das “coisas simples e naturais”, por contraste com o “complicado”, o “bafiento” de crenças religiosas anquilosadas. Artifício extremamente evidente em Guerra Junqueiro, presente na estrutura temática de muitos dos poemas que constituem “A Velhice do Padre Eterno”, como é o caso de “O Melro”.
Como nota final, não posso deixar de formular uma pergunta: teria Alberto Caeiro colhido inspiração na obra de Guerra Junqueiro? Pergunta, questão, que nunca vi formulada pelos especialistas desses autores. Questão menor? Talvez não, até porque nos pode pôr na pista de alguma continuidade que a poesia do século XIX teve em autores da nossa modernidade. Inclusivamente, em Fernando Pessoa...