quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

CARNAVALIZAÇÃO OU VANTAGENS E MALEFÍCIOS DE UMA TEORIA




O texto de Jorge Amado “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água” (um dos contos mais fabulosos da moderna literatura brasileira) tem sido analisado a partir do modelo apresentado pelo estruturalista Bakhtin (veja-se a sua obra “La poétique de Dostoevski”), o que se me afigura extremamente redutor – portanto, errado.
No texto de Jorge Amado, são postos em confronto os dois mundos de Quincas: o mundo médio-burguês de funcionário público, em que viveu a grande parte da sua vida, e o mundo da vadiagem, do malandro dos bairros populares da Baía, em que mergulhou nos seus últimos anos de vida. Ou, de outro modo: o mundo dos socialmente "bem comportados" e o submundo dos "desregrados." É a morte de Quincas que desencadeia a acção, que culmina com o "rapto" do seu corpo do caixão, em que a família o depositara, e a "organização", pelos seus companheiros de estúrdia, de um funeral, durante o qual o morto-vivo é passeado pelo "bas-fond" baiano - e que atinge o seu clímax a bordo de um saveiro, em que todos embarcam, para festejarem condignamente a "morte-aniversário" de Quincas. Quintas que acaba por mergulhar no mar, para não mais ser visto. É evidente que a história (o conto, como lhe chamou o autor) não se confina a este esquema simplificado, pois envolve outros aspectos - de ordem psicológica, sociológica, antropológica - que lhe conferem uma densidade emocional e humana, digna das melhores páginas de Jorge Amado.
E aqui surge a minha discordância em relação a algumas interpretações de críticos brasileiros: para eles, Jorge Amado, nomeadamente neste conto, constitui o exemplo perfeito da carnavalização na literatura. O modelo de análise proposto por Bakhtin, quando aplicado a este autor, permitiria detectar e caracterizar a verdadeira carnavalização em literatura. Neste linha de interpretação encontra-se Affonso Romano de Sant'Anna, que, em artigo publicado em "Jorge Amado, Km 70. Tempo Brasileiro", transforma Jorge Amado num autor carnavalizante - "malgré lui". Mas Affonso Sant'Anna, quanto mais defende a sua tese, mais entra em contradição - de que não se apercebe. Sendo o Carnaval, para Affonso Sant'Anna, uma festa comunitária (feita de excessos consentidos), a ter lugar na praça pública, em que todos participam, mascarando-se do que não são, toma como exemplo acabado o enterro de Quincas, realizado pelos seus pares de folia. Sacado do seu caixão forrado a cetim, onde a família o tinha encafuado depois de lavado e vestido a preceito, Quincas é desvestido do seu fatinho de morto bem comportado e recupera os trapos com que se cobria, quando foi encontrado morto - os trapos que usara nos seus últimos doze anos de vida. Assim, voltado ao seu normal, Quincas é levado a fazer o périplo diário das tabernas da cidade e, destas, levado é para a grande farra do saveiro que sulca o mar da Baía - para a homenagem final, que os amigos lhe querem prestar - sempre acompanhado pelos seus companheiros do álcool, da música, do amor. Ou seja, é reposto na sua identidade, por aqueles com quem conviveu na parte final da vida - em suma, é "desmascarado."
Ora, na opinião de Affonso Sant'Anna, o "enterro" constituiria a mais lídima das expressões de uma verdadeira carnavalização, o que se me afigura totalmente errado. Não só porque a família não participa nele (nem o pode aceitar), mas também porque os amigos não o vêem como situação carnavalizante, mas, sim, como a recuperação de um viver normal (para eles, se carnavalização houvesse seria o seu enterro de caixão e roupinha de luto...). Em última instância, não há mascaração alguma, pois cada uma das classes sociais, a que pertenceu o Quincas, reivindica para si a identidade do "seu" morto, opondo-se a que a outra dele se aproprie. O enterro "em orgia" não é mais do que a legitimação do que seria a vontade final do falecido. Por outro lado, note-se (e repita-se) que não há qualquer festividade colectiva, em que todos participassem. Pelo contrário, cada uma das classes sociais se acantona no seu território, ignorando a outra.
Ao chegar ao fim destas linhas, interrogo-me sobre as razões que me levaram a escrevê-las. Talvez sejam duas: o valor literário do conto e a minha discordância pela análise que dele tem sido feita, à luz de um modelo que o simplifica e deforma. Os modelos são como fatos prontos-a-vestir: só por mero acaso é que o nosso corpo cabe dentro deles. E, aqui, a imagem do fato-pronto-a-vestir ultrapassa, e em muito, o seu sentido meramente simbólico - o fato é um elemento central da história de Jorge Amado... História maior dentro da literatura de língua portuguesa do século XX, em que o humor, a ironia, a paródia se entretecem de um modo inextrincável - e se negam a serem dissecados pelo escalpelo de um instrumento forjado na oficina do estruturalismo..

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