terça-feira, 22 de junho de 2010

O TEMPO A ESCORRER ENTRE OS DEDOS



A ecrita da minha amiga Filomena Marona Beja é construída como um painel de azulejos que vai crescendo numa multiplicidade de apontamentos, pinceladas, breves retratos, avanços e recuos, frases e momentos suspensos no ar, acontecimentos entrevistos numa espiral que nos guia através de vários pontos de vista para o centro da narrativa.

Na sua escrita a Filomena põe o tempo a escorrer por entre os dedos. É assim em "As cidadãs", "A duração dos crepúsculos" ou nesse excelente "A cova do lagarto" que venceu o prémio de romance da APE em 2007 (os romances dela que li).

A autora trabalha extensamente a matéria do tempo em que situa as suas ficções. Trabalha-o por dentro, de uma forma tão cuidadosa que nos faz sentir por dentro a respiração desse tempo que porventura apenas conhecemos de uma certa forma de frieza característica dos manuais de História.

Este "Bute daí, Zé" li-o com paixão. Porque o tempo deste livro é o tempo da minha vida. E das minhas paixões. Frequentei grupos de jovens nalgumas coisas semelhantes ao grupo em que se envolvem os principais personagens deste romance. Passei por algumas inquietações aqui retratadas.

Momentos da leitura houve em que me identifiquei muito com a narrativa. Também eu sonhei assim, reagi assim, fiz aqueles disparates. Páginas à frente já achava que aquela narrativa estava errada, não era assim o que a minha memória me conta desse tempo.

É o problema do romance histórico sobre uma História que ainda se pode escrever com o próprio sangue e memória do leitor.

Intensamente voei neste romance e, ao chegar ao fim, pareceu-me que o grande personagem do romance é o próprio tempo. Esse tempo fantástico que agradeço ter vivido como jovem anti-fascista a rebentar de raiva nos últimos anos do Estado Novo e a voar em sonhos loucos e utopias desmedidas nos anos de fogo da revolução de 25 de Abril de 1974.

Um tempo que desaguou numa ressaca que nos deixou um sarro muito azedo na boca. E é já nesse outro tempo fosco da ressaca e melancolia que se deu o trágico acontecimento sobre o qual a Filomena construiu o seu romance: o assassinato de um militante de extrema-esquerda por um skin no final dos anos 80.

Não sei se a Filomena, neste seu romance, teve a explícita intenção de deixar as personagens resguardadas na sombra da voragem das suas própias acções.

Sei que a princípio, na primeira metade do romance, os personagens confundiram-se-me como se pertencessem a um mesmo corpo. Como se os seus papeis pudessem ser desempenhados alternadamente por um e outro. Como se todos fossem apenas facetas de um mesmo tempo.

É a fase do imediatamente antes e do imediatamente depois da revolução. Talvez esse tempo fosse demasiado vivo e as pessoas que o habitavam se dissolvessem nele e, só mais tarde, no tempo cinzento do desencanto começassem a reconhecer a sua própria individualidade.

Talvez tudo isto venha dos cenários onde dança a minha memória, que se confronta e se interroga com as memórias que fazem a matéria deste romance.

Mas os livros servem justamente para cada um construir e reconstruir o romance da sua própria vida, não é?

sábado, 19 de junho de 2010

Até sempre!




Correram assim os rios, quatro estações pontuais por ano, que essas estão certas, mesmo variando. A grande paciência do tempo, e outra, não menor, do dinheiro, que, tirante o homem, é a mais constante de todas as medidas, mesmo como as estações variando. De cada vez, sabemos, foi o homem comprado e vendido.

Levantado do Chão


Ricardo Reis sentiu humedecerem-se-lhe os olhos, ainda há quem diga mal dos médicos, que por estarem acostumados a ver doenças e infelicidaddes levam empedernidos os corações, veja-se este que desmente a asserção, talvez por ser poeta, embora de espécie céptica, como se tem visto.

O Ano da Morte de Ricardo Reis


... e dos países do Norte navios inteiros carregados de tabuado para andaimes, telheiros e casas de acomodação, e cordas e amarras para os cabrestantes e roldanas, e do Brasil pranchas de angelim incontáveis, para as portas, e janelas do convento, para o solho das celas, dormitórios, refeitório e mais dependências, incluindo as grades dos espulgadoiros, por ser incorrompível, madeira, não como este rachante pinho português, que só serve para ferver as panelas e sentar-se nele gente de pouco peso e aliviada de algibeiras.


Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas.

Memorial do Convento


Então a Península Ibérica moveu-se um pouco mais, um metro, dois metros, a experimentar a força.

A Jangada de Pedra


Mas primeiro é preciso limpar esta cidade dos ímpios católicos e dos luteranos rebeldes.

A mim anabaptistas! Juntai na praça quantos, papistas ou protestantes, recusaram o baptismo novo, expulsemo-los como a cães danados.

Antes que a ira de Deus desça do céu e os queime a todos, e também a nós por nos mostrarmos compassivos e tolerantes.

In Nomine Dei


Se cumprires bem o teu papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano, estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo que lutar, eu e tu, com muitas contrariedades, passarei de deus dos hebreus a deus dos que chamaremos católicos, à grega, E qual foi o papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que há de melhor para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé.

O Evangelho segundo Jesus Cristo


A distribuição das tarefas pelo conjunto dos funcionários satisfaz uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhe seja possível, de modo que só uma mínima parte dele tenha que passar à categoria seguinte.

Todos os Nomes


Se tivesses descido comigo compreenderias, ..., Não é fácil deixar-se de ideias depois de ter visto o que eu vi, Que viu, quem são essas pessoas, Essas pessoas somos nós, ...

A Caverna


..., mas naquele momento foi tão intensa a sua impressão de solidão, tão insuportável, que lhe paraceu que só poderia ser mitigada na estranha sede com que o cão lhe bebia as lágrimas.

Ensaio sobre a Cegueira


A comunicação foi breve, Fala o presidente da mesa da assembleia de voto número quatorze, estou muito preocupado, algo francamente estranho está a acontecer aqui, até este momento não apareceu um único eleitor a votar ...

Ensaio sobre a Lucidez


No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme ...

As Intermitências da Morte


... a única decisão séria que será necessário tomar no que respeita ao conhecimento da História, é se devemos ensiná-la de trás para diante ou, segundo a minha opinião, de diante para trás ...

O Homem Duplicado


Têm toda a razão os cépticos quando afirmam que a história da humanidade é uma interminável sucessão de ocasiões perdidas. Felizmente, graças à inesgotável generosidade da imaginação, cá vamos suprindo as faltas, preenchendo as lacunas o melhor que se pode, rompendo as passagens em becos sem saída e que sem saída irão continuar, inventando chaves para abrir portas orfãs de fechaduras ou que nunca a tiveram.

A Viagem do Elefante


Desesperado, o pobre homem tentou, sem resultado, tragar o bocado da maçã que o delatava, mas a voz não lhe saiu, nem para trás nem para diante. Responde, tornou a voz colérica do senhor, ao mesmo tempo que brandia ameaçadoramente o ceptro. Fazendo das tripas coração, consciente do feio que era pôr as culpas em outrem, adão disse, A mulher que tu me deste para viver comigo é que me deu do fruto dessa árvore e eu comi.

Caim


Compensação

Caminho de palavras vou abrindo,
Ao coração das coisas apontando.
Mas não me pesará o desencanto
Se, no ponto em que parar o meu arado,
Rombo na pedra que a morte houver lançado,
Puder ainda, com os ecos deste canto,
Já no coração das coisas afastado
Mover um coração, se valho tanto.

Os Poemas Possíveis



Orfeu B.

sábado, 12 de junho de 2010

AS PERTURBAÇÕES QUE NOS CHEGAM DE ESPANHA




“Perturbaciones. Antología del relato fantástico español actual” é o título de uma obra organizada e prefaciada por Juan Jacinto Muñoz Rangel e publicada pela “Salto de Página”.
Publicação que me surpreendeu por várias razões: em primeiro lugar, pela qualidade de grande parte dos textos seleccionados; em segundo, pela quantidade de obras deste género literário editadas em Espanha; em terceiro, pela relevância que o contismo tem actualmente em Espanha, como se comprova, não só pelos numerosos prémios concedidos a este género (prémios nacionais, provinciais, locais, institucionais), como também pelo interesse que as casas editoras manifestam por livros de contos.
Antes de entrar no conteúdo da obra, propriamente dita, queria fazer uma referência ao prefácio de Muñoz Rangel. É um texto muito bem elaborado, que analisa e aprofunda o conceito de literatura fantástica, mostrando a sua especificidade em relação a outros géneros (ou subgéneros) afins, como o realismo mágico ou a literatura maravilhosa, ou, ainda, a literatura de terror (e a literatura gótica). Literatura fantástica que se distingue, também, da ciência-ficção (em português será mais correcto o termo “ficção científica”?) e da literatura surrealista propriamente dita.
Não me compete, neste escrito, desenvolver o conceito de literatura fantástica e sua distinção de géneros afins. Mas, para uma primeira abordagem, transcrevo a seguinte nota apensa ao prefácio:

É o Doutor Jekill o primeiro que se surpreende com a sua transformação em senhor Hyde, uma surpresa semelhante à das outras personagens da história que vão deparando com o insólito fenómeno; pelo contrário, Gregorio Samsa e, sobretudo, o resto da sua família encaram com uma certa naturalidade a sua (respectiva) transformação. Por outro lado, nenhum dos Buendía revela (qualquer) assombro perante os prodígios que vão acontecendo à sua volta, tal como, naturalmente, não o fazem elfos ou hobbits. E, no entanto, as duas primeiras leituras provocam nos leitores uma inquietação e uma hesitação intelectual distintas das sensações provocadas pelas obras do realismo mágico ou da literatura maravilhosa. Assim, a perplexidade existe independentemente da conduta das personagens, porque radica na concentração, na forma como se enfatizam determinadas anomalias.

O fantástico não se situa, pois, fora da realidade. Aceita-a e explora-a até aos seus limites (ou, até, para além dos seus limites). A perplexidade, a inquietação que o leitor experimenta (o leitor, note-se, não as personagens da história) decorrem da “concentração, na forma como se enfatizam determinadas anomalias ”.
No final do seu prefácio, Muñoz Rangel dá uma panorâmica dos temas abordados nesta sua obra:

Como o leitor poderá comprovar, decidido a empreender a leitura destas páginas, as temáticas do fantástico espanhol são tão amplas quanto as anomalias, lacunas e interrogações que a nossa explicação do mundo deixa por responder. Encontramos de tudo. Anomalias e perturbações para todos os gostos. Num constante braço de ferro com os limites da nossa realidade. Entrem. Entrem e leiam. Leiam sobre a morte e a vida depois da morte, os ressuscitados, os espectros, a imortalidade, o paraíso, o limbo e o inferno. Sobre Deus e o Diabo, a origem e o fim. Leiam sobre os mundos paralelos, os laços no tempo, a predestinação ou as viagens no tempo. Sobre a duplicidade, a simetria, a identidade e as conexões invisíveis. Leiam tudo sobre as interacções entre realidade e ficção, metaficção e metaliteratura. Sobre os sonhos e os pesadelos. Sobre as transformações impossíveis de homens e mulheres, de objectos e animais. Leiam acerca da pré-ciência, da telepatia, da telecinesia, e de todas as alterações das capacidades cognitivas, as da memória, as da personalidade, as da percepção. Leiam. Leiam e desfrutem o calafrio e a vertigem sentidos ao aproximarmo-nos da beira do abismo.

Ao acaso e apenas como exemplo, citarei alguns dos textos que mais me impressionaram. Textos em que a imaginação é o suporte para as construções imprevistas, que nos fazem viajar por mundos desconhecidos. Assim, em “Una cita aplazada sine die”, Luis García Jambrina fala-nos da leitura como forma – absoluta – de vida. Alguém que sente a Morte aproximar-se e lamenta que ela surja naquele momento em que ainda não tinha terminado o livro que estava a ler. O que deixa a Morte surpresa, pois não é a vida que se lamenta deixar, mas um livro, cujo desfecho ficará a desconhecer-se, assim, para todo o sempre. Esse livro e todos os outros livros da biblioteca desse leitor, que, assim, não terá tempo de ler. Livros que ele considera imprescindíveis para tudo conhecer o que à Vida e à Morte respeita. O que surpreende ainda mais a Morte e a deixa curiosa, a querer saber o que os livros dela dizem. E a fim de ficar a saber o que dela se tem escrito, a Morte adia o fim daquele leitor, com a condição de ele lhe ir lendo e contando as histórias que a ela se referem. Um conto que é um hino à leitura e ao leitor que dela faz a razão de ser da sua vida, e, assim, da lei da morte se vai libertando. Ou, porque não, uma versão moderna de “As Mil e Uma Noites”?
De Ángel Olgoso publica-se o conto intitulado “Los Palafitos”, uma história que nos fala da porosidade das fronteiras entre o mundo actual e o mundo passado. Um passeante, que deambula pela natureza, encontra um indivíduo estranho, mas amável, que o convida para a sua casa, uma construção lacustre de tempos pré-históricos, ao que ele acede, com curiosidade, espanto e prazer. História de um tempo que não se dilui no passado, mas que persiste ao longo dos tempos – o que hoje existe não anula o que já existiu. Ou seja, o tempo concebido não como uma linha recta, mas como algo circular, que nos permite voltar ao que já foi.
“Biológicas: una lectura circular” de Óscar Esquivias é um exemplo mais do fantástico que se constrói com a mesma lógica que assiste ao mundo “real”. Um jornal de província não apresenta aos seus leitores notícias “necrológicas”, mas sim “biológicas”: não noticia mortos (e respectivos elogios fúnebres dos finados), mas, sim, nascimentos e futuras carreiras dos que acabaram de vir a este mundo (carreiras fulgurantes, pejadas de êxitos e brilhantismos). O que, claro, agrada sobremaneira às famílias dos ditosos rebentos. A pergunta que o leitor poderá formular é muito simples: qual das “notícias” é mais verosímil? A da retrospecção de uma vida terminada ou a da prospecção de uma vida a despontar? Uma história deliciosa, plena de uma ironia tão subtil quão acutilante.
Que estas notas sobre os contos “perturbados” (e “perturbadores”) desta obra constitua o estímulo necessário à sua leitura, é este o meu desejo, a finalidade a que me proponho com estas linhas.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A MÚSICA DA LÍNGUA



Há algumas semanas, no "Ypsilon", suplemento do jornal "O Público" que não dispenso, dei por uma tentativa de assassinato literário deste livro e da própria obra de Manuel Alegre. Tratava-se de uma crítica que, entre uma a cinco estrelas, atribuía um ponto negro,ou seja, um zero, a este livro.

Era óbvio que a negra classificação tinha muito de censória. Já assisti a outros actos deste tipo por parte de um ou outro crítico. Acho-os profundamente lamentáveis e entendo tratar-se de um péssimo serviço ao público, seja qual for o livro sobre o qual a ira classificativa se abata. Sempre pensei que é inútil falar mal deste ou daquele livro. Gasta-se papel e dinheiro para dar soltura à bílis e perde-se espaço para falar dos muitos autores e livros que bem pedem para ser referidos e elogiados.

É claro que este tipo de classificações cheiram sempre ajuste de contas pessoais, políticas, institucionais, etc. Mas além da classificação o que me incomodou ainda foi o argumento de que a poesia de Manuel Alegre assenta no ornamento e na decoração, dá primazia quase absoluta á musicalidade, ao ritmo e rima sobre a necessidade do sentido, características que transporta para a prosa tornando-a por vezes num "non-sense".

Nem tenho mandato do poeta Manuel Alegre para esta conversa, nem lhe sou íntimo de perto ou de longe. A minha irritação é genuína. Já ouvi velhas e relhas discussões que opunham ornamento, musicalida e rima, de um lado, e, do outro, o sagrado exercício da busca de sentido.

Esta discussão que deve muito a uma vulgata romântica, sempre me pareceu ter algo de teologia que se põe em bicos de pés na defesa paladina dos misteriosos caminhos do sentido a que só uma elite teria acesso, por oposição à música das palavras que seria coisa baça, do vulgo, da rua, do povo e das suas cantorias.

A poesia de Manuel Alegre foi um instrumento de comunhão na revolta que unia muitos jovens contra o regime salazarista durante os anos 60. E teve o notável poder de trazer a palavra literária pra a rua e para o canto.

Sem deixar de lado os magníficos poetas dos anos 50 e da Poesia 61, digo que alguma da poesia mais intensa e mais viva dos anos 60 em Portugal terá sido a de Manuel Alegre, José Afonso, António Gedeão, Manuel da Fonseca, Ary dos Santos, António Quadros (o pintor), e vários outros entre os quais Hélia Correia ou José Jorge Letria. Gente da musicalidade da língua. Gente que, na ressaca do 25 de Abril, foi excomungada, colocada fora dos cãnones e dos manuais, fora da literatura. Gente "suja", da rua, da música.

E em defesa da musicalidade da língua e da capacidade que tem de transportar sentido em si própria, basta ler alguns dos textos de Georges Steiner em que ele defende a oralidade como produtora de sentdo, ao afirmar, nomeadamente, que quando não compreende o sentido de um poema, decora-o e repete-o em voz alta tantas vezes quantas necessárias para que o sentido se lhe torne claro.

É verdade que a prosa deste "Miúdo que gostava de pregar pregos..." ´parece por vezes excessivamente circular e "martelada". Mas não podemos deixar de nos comover com a busca permanente do ritmo da terra, do corpo, da poesia e do mundo. E embora o autor vá semeando pelos seus livros episódios da sua vida repetidos uma e outra vez, a verdade é que só repete memórias quem as tem.

Além do mais, sou de opinião que o exemplo de Manuel Alegre deve ser seguido por muitos outros. Num mundo que vai perdendo a memória, precisamos de agarrar no passado e escrevê-lo à maneira de cada um, e reinventá-lo como é mister de todos os que o escrevem e reescrevem, para que um dia não acordemos apenas com bolas pretas à nossa frente.

sábado, 5 de junho de 2010

O homem que era 5ª feira.


Você tem essa ideia fixa e idiota que a anarquia virá dos pobres. Porquê? Os pobres têm sido rebeldes, mas nunca foram anarquistas, têm mais interesse que quaisquer outros na existência de Governos decentes. Quem está verdadeiramente ligado à pátria é o homem pobre ... Os pobres às vezes repontam por serem mal governados, os ricos têm repontado sempre contra qualquer governo. Os aristocratas foram sempre anarquistas ...

O homem que era 5ª feira.

Prolixo, incisivo, inquietante, irónico e cómico. A sua inteligência, os seus 1.93 m e 135 Kg. eram provavelmente intimidantes. Numa ocasião, disse ao seu amigo Bernard Shaw: "Ao olhar para si, poder-se-ia pensar que houve fome em Inglaterra". Bernard Shaw, bem conhecido pela sua argúcia, respondeu imediatamente: "Ao olhar para si, poder-se-ia pensar que foi você a causá-la". Também proverbial em Chesterton era o seu desligamento do mundo, pois em várias ocasiões chegou a telegrafar para a esposa indicando que estava em certo sítio, mas que ao lá chegar descobrira que não era este o seu destino correcto, necessitando então de indicações para onde teria que se dirigir.

O homem que era 5ª feira é possivelmente o livro mais conhecido da sua obra considerável e que compreende praticamente todos os géneros literários. Um clássico da língua inglesa do início do século XX, que mantém ainda alguma actualidade temática, mas que se destaca sobretudo pela sua originalidade linguística e plástica.

No início da segunda metade do XIX, a ordem estabelecida era ameaçada por movimentos niilistas que não viam qualquer aspecto positivo na vida e na sociedade. Movimento de cariz intelectual, ficou registado na literatura com os Pais e Filhos de Ivan Turgenev em 1862. O movimento teve também raízes filosóficas e representantes influentes como Kierkegaard e Nietzsche, e ganhou dimensões de movimento político e social, principalmente na Rússia. Depois do assassinato do Tsar Aexandre II em 1881, o movimento adquire uma dimensão europeia e passa a ser considerado inimigo declarado da sociedade moderna, dado o seu apelo à violência e à destruição da ordem burguesa. Para os niilistas e os seus descendentes ideológicos, os anarquistas, a ênfase estava necessariamente na destruição do aparelho do Estado. "O prazer de destruir é muito maior" proclamava o grande teórico do anarquismo, o russo Mikhail Bakunin, rival de Marx no controle do movimento operário no século XIX. Mas se do ponto de vista do movimento operário, a dicotomia jazia entre o socialismo estatal advogado por Marx e a ideia duma sociedade sem Estado conforme defendida por Bakunin, do ponto de vista burguês estes movimentos não eram mais do que assunto de polícia.

O homem que era 5ª feira, retrata a batalha da ordem estabelecida, representada por um jovem idealista e intelectualmente dotado, 5ª feira, enquanto infiltrado no topo hierárquico duma célula anarquista. Os seus sete membros, designados pelos dias da semana, são liderados pelo temível Domingo, a "estrela fixa do grupo", um homem com poderes intelectuais maquiavélicos, para além da sua estatura e peso descomunais.

Com destreza, inteligência e cavalheirismo, move-se 5ª feira no seio da temível organização visando evitar o próximo ataque bombista do grupo, a ter lugar em Paris. Contudo, ao longo do processo, e através de aventuras rocambolescas, descobre 5ª feira que os seus cinco colegas de célula são também polícias! Resta-lhes então desmarcar Domingo e prendê-lo pela ameaça que representa para a sociedade. Este contudo, acaba por lhes revelar que haviam todos sido recrutados por ele, que também era um influente e poderoso estratega da Scotland Yard!

E com o que ficamos? Para além do prazer da leitura da prosa elegante e irónica de Chesterton, possivelmente com a conclusão que a ordem e a sua antítese, o terrorismo, estão muito mais que dialecticamente ligados, e que podem muitas vezes se confundir no que refere às causas e aos efeitos dos males que semeiam. Para as vítimas, possivelmente não importa se o terrorismo é originado pelo estado ou pelo que se lhe opõe. Mas esta não é uma questão de todo simples.



Orfeu B.


quinta-feira, 3 de junho de 2010

TRADUZIR



O primeiro livro de poesia comprado com o meu dinheiro foi, em 1969, a "ANTOLOGIA BREVE" de Pablo Neruda, nº 2 dos notáveis Cadernos de Poesia, editados pela D. Qixote, propriedade à data de Snu Abecassis e que tinha como director literário Carlos Araújo que é hoje uma história viva da edição portuguesa e de quem sou um devotado amigo.

Tradutor: Fernando Assis Pacheco, grande poeta, neto de galegos e que dominava magnificamente o castelhano.

Neruda foi e é um dos poetas da minha vida. Li-o em castelhano e acompanho as traduções que dele se vão fazendo e, entre elas, as de Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, José Bento, Albano Martins e agora, Nuno Júdice.

Não por acaso todos eles são poetas. E creio que para ser tradutor de poesia tem de se ser poeta, com ou sem obra própria publicada. Porque traduzir poesia é encontrar uma convergência da matéria das palavras na música de outra língua. E isso só pode ser ofício de poeta.

As traduções de Assis Pacheco tinham um sabor a mar. Sentia-se o rugir sereno da Ilha Negra. Adivinhava-se o Chile de Neruda.

Há alguns anos ouvi uma gravação de Neruda a declamar. E a sua voz trazia um som muito próximo das traduções de Assis Pacheco.

Também gosto muito da tradução que Eugénio fez de uma poema excepcional de Neruda, "Ode a Frederico garcía Lorca". A voz poética de Eugénio era muito forte. Talvez por isso ele se tenha apropriado em parte do corpo sonoro do poema. Mas manteve o delírio verbal, a cavalgada violentíssima de metáforas que Neruda derramava sobre o papel à época do livro fantástico que foi "Residência na terra".

A José Bento temos de agradecer as muitas traduções que tem feito da língua castelhana e o rigor que tem posto nesse labor. E traduzir de uma língua próxima de nós exige uma atenção especial porque essa semelhança transporta frequentes armadilhas que, com frequência, apanham o tradutor desprevenido.

Albano Martins fez alguns trabalhos de tradução de Neruda que ficarão na História, nomeadamente "Canto geral". E, entre outros, acrescento um livro de que gosto muito particularmente, "Os versos do capitão", cuja tradução brilhante não rouba um sopro à comoção com que sempre me entreguei à leitura destes poemas.

Nuno Júdice mostra uma oficina notável, um grande rigor e um cuidado muito grande para não fugir à dinâmica prosódica de Neruda.

Resumindo, pela sua beleza e pelo cuidadoso trabalho de Nuno Júdice, este é um livro excelente para quem conhece a obra de Neruda e também, muito especialmente, para quem não a conhece. Não se pode sair daqui sem querer ler mais, muito mais, deste poeta que não pára, verso a verso, de me levar a grandes alturas.

NOTAS

1. Pequena crítica. Faz falta nesta edição a identificação dos livros de onde foram seleccionados os poemas traduzidos.

2. Grande crítica O Livro intitula-se "Poemas de Amor de Pablo Neruda". A capa é muito bonita mas talvez de leitura difícil. A editora acrescentou-lhe um auto-colante que acrescenta tratar-se de "Grandes poemas de Pablo Neruda". Poderíamos ironizar à volta desta duplicação pouco elegante. Cheira a anúncio de super-mercado e não respeita a inteligência e bom gosto do leitor.

NOTA POSTERIOR

Esqueci-me do poeta Luís Pignatelli que traduziu excelentemente as maravilhosas "Odes elentares", primeira edição da D. Qixote lá pelos anos 70, ceio eu.