segunda-feira, 7 de junho de 2010

A MÚSICA DA LÍNGUA



Há algumas semanas, no "Ypsilon", suplemento do jornal "O Público" que não dispenso, dei por uma tentativa de assassinato literário deste livro e da própria obra de Manuel Alegre. Tratava-se de uma crítica que, entre uma a cinco estrelas, atribuía um ponto negro,ou seja, um zero, a este livro.

Era óbvio que a negra classificação tinha muito de censória. Já assisti a outros actos deste tipo por parte de um ou outro crítico. Acho-os profundamente lamentáveis e entendo tratar-se de um péssimo serviço ao público, seja qual for o livro sobre o qual a ira classificativa se abata. Sempre pensei que é inútil falar mal deste ou daquele livro. Gasta-se papel e dinheiro para dar soltura à bílis e perde-se espaço para falar dos muitos autores e livros que bem pedem para ser referidos e elogiados.

É claro que este tipo de classificações cheiram sempre ajuste de contas pessoais, políticas, institucionais, etc. Mas além da classificação o que me incomodou ainda foi o argumento de que a poesia de Manuel Alegre assenta no ornamento e na decoração, dá primazia quase absoluta á musicalidade, ao ritmo e rima sobre a necessidade do sentido, características que transporta para a prosa tornando-a por vezes num "non-sense".

Nem tenho mandato do poeta Manuel Alegre para esta conversa, nem lhe sou íntimo de perto ou de longe. A minha irritação é genuína. Já ouvi velhas e relhas discussões que opunham ornamento, musicalida e rima, de um lado, e, do outro, o sagrado exercício da busca de sentido.

Esta discussão que deve muito a uma vulgata romântica, sempre me pareceu ter algo de teologia que se põe em bicos de pés na defesa paladina dos misteriosos caminhos do sentido a que só uma elite teria acesso, por oposição à música das palavras que seria coisa baça, do vulgo, da rua, do povo e das suas cantorias.

A poesia de Manuel Alegre foi um instrumento de comunhão na revolta que unia muitos jovens contra o regime salazarista durante os anos 60. E teve o notável poder de trazer a palavra literária pra a rua e para o canto.

Sem deixar de lado os magníficos poetas dos anos 50 e da Poesia 61, digo que alguma da poesia mais intensa e mais viva dos anos 60 em Portugal terá sido a de Manuel Alegre, José Afonso, António Gedeão, Manuel da Fonseca, Ary dos Santos, António Quadros (o pintor), e vários outros entre os quais Hélia Correia ou José Jorge Letria. Gente da musicalidade da língua. Gente que, na ressaca do 25 de Abril, foi excomungada, colocada fora dos cãnones e dos manuais, fora da literatura. Gente "suja", da rua, da música.

E em defesa da musicalidade da língua e da capacidade que tem de transportar sentido em si própria, basta ler alguns dos textos de Georges Steiner em que ele defende a oralidade como produtora de sentdo, ao afirmar, nomeadamente, que quando não compreende o sentido de um poema, decora-o e repete-o em voz alta tantas vezes quantas necessárias para que o sentido se lhe torne claro.

É verdade que a prosa deste "Miúdo que gostava de pregar pregos..." ´parece por vezes excessivamente circular e "martelada". Mas não podemos deixar de nos comover com a busca permanente do ritmo da terra, do corpo, da poesia e do mundo. E embora o autor vá semeando pelos seus livros episódios da sua vida repetidos uma e outra vez, a verdade é que só repete memórias quem as tem.

Além do mais, sou de opinião que o exemplo de Manuel Alegre deve ser seguido por muitos outros. Num mundo que vai perdendo a memória, precisamos de agarrar no passado e escrevê-lo à maneira de cada um, e reinventá-lo como é mister de todos os que o escrevem e reescrevem, para que um dia não acordemos apenas com bolas pretas à nossa frente.

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