quinta-feira, 5 de agosto de 2010

SAÚDE, CIÊNCIA E RAZÃO




Este romance do meu amigo Francisco Moita Flores lê-se apaixonadamente. Não falo da paixão pelo enredo dramático em si mas pela questão central que atravessa a sua escrita que é a da luta entre razão e ciência, por um lado e, por outro, a fé religiosa e os hábitos incrustados na população e resultantes da falta de cuidados modernos de saúde.

O autor criou uma ficção próxima da realidade em torno da procura do assassino de Sidónio Pais, questão ainda hoje sem resposta, e através dessa ficção faz circular o seu vasto conhecimento sobre a situação da justiça e da investigação policial durante o Período da República e os primeiros e angustiosos passos das Ciências forenses, da Polícia de Investigação Criminal, da Medicina Legal e também da Saúde Pública.

Por aqui passam ou são referidas figuras reais, históricas e míticas de médicos da época: Miguel Bombarda, Ricardo Jorge, Sousa Martins e outros. Homens que construiram alguns os alicerces da modernidade em Portugal.

O ambiente da Lisboa onde se passa este romance é de negrura e miséria atravessadas por um turbilhão de confusões políticas, perseguições e ajustes de contas. Um tempo em que se ancia o falhanço do projecto democrático republicano e se anuncia a emergência da ditadura que tem uma primeira tentativa justamente através da figura de Sidónio Pais, o Presidente-Rei como lhe chamava Fernando Pessoa.

Enquanto ainda se combate e morre nas trincheiras de França a gripe "espanhola" ou "pneumónica" faz uma razia na população, agravada pela falta de cuidados de higiene básica.

A personagem principal é o dr. Asdrúbal de Aguiar, médico legista que procurou a todo o custo fazer os exames necessários para descobrir o assassino de Sidónio usando métodos modernos e científicos contra a incapacidade grosseira da polícia que arranja um culpado que confessa o crime através da pancada pura e dura.

Levada pela mão segura de quem sabe bem entretecer os fios novelescos, a ficção que envolve os factos reais agarra-nos e faz-nos atravessar a trama de uma forma por vezes pungente, por vezes emocionada, terna, cómica ou sarcástica.

Moita Flores é um escritor de bem. Trata bem as suas personagens. Não ingora mas deixa de lado a perversidade, e concentra-se no lado melhor de cada uma dessas personagens. Ana Rosa, o dr. Asdrúbal de Aguiar, o dr. Azevedo Neves, o divertidíssimo dr. Moreira Júnior (actor de magníficas cenas de comédia a pedirem para passar ao écran, grande ou pequeno).

No final fica-nos a certeza de que há pouco menos de 100 anos estávamos em muitos campos em plena pré-história, nomeadamente no que diz respeito à saúde pública e às ciências forenses.

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