domingo, 28 de novembro de 2010

HERNÁN RIVERA LETELIER



Há que falar da importância dos editores e da forma como vão conduzindo os nossos caminhos de leitura. É o caso deste autor que nos chegou há uns anos atrás pelas mãos sábias da Maria da Piedade Ferreira, editora então da Quetzal, e com capas notáveis de Rogério Petinga.

Publicaram dois títulos deliciosos (os títulos e o conteúdo) "A ranha Isabel cantava rancheras" e "Miragem de amor com banda de música", de que fiquei fã incondicional. Na feira do livro da Estação do Oriente têm estado à venda a 3 e 4 euros.

Letelier, mineiro nas terríveis minas de salitre do deserto de Atacama assegura que começou a escrever para ganhar um almoço num concurso radiofónico,.

Fala-nos nos seus livros (naqueles que li) do mundo de extrema pobreza da gente do deserto e das minas. E consegue fazê-lo com uma imensa ternura. Ficamos cheios de vontade de namorar aquelas prostitutas que estão no fim da linha e no fim do mundo, de nos tornarmos amigos daqueles homens mais curtidos que pele de vaca, de partilhar os desvarios, as grandezas e as revoltas da gente que vive despojada de tudo menos da poesia e da humanidade no sentido mais estrito,

O comboio que atravessa este livro atravessando o deserto leva ciganos, mineiros, videntes, prostitutas, nados-mortos, um guitarrista, um acordeonista e tudo o mais que se possa imaginar neste fim do mundo.

Nesta viagem acontece tudo o que pode acontecer, ama-se, morre-se, nasce-se, há grandes bebedeiras e bailes, assaltos, mortes, vida... E tudo acontece a um ritmo muito intenso e mergulhado numa enorme melancolia, numa deliciosa ternura e num não menos impressionante desvario.

Resumindo: quem não gostar da prosa de Letelier não merece ler e voar e amar e viver com toda a intensidade que as pessoas da poesia são capazes de pôr no correr dos seus dias.


domingo, 21 de novembro de 2010

«Como quem bebe água, o homem precisa de beber sonhos.»Álvaro Cunqueiro


"O Laboratório do Dr. Nogueira"
de Augustín Fernández Paz
Agustín Fernández Paz é quase desconhecido entre nós como, infelizmente, muitos dos escritores da Galiza apesar da proximidade, da semelhança linguística e de ter alguns livros publicados em Portugal. Com "O único que queda é o Amor" ganhou, em 2008, o Prémio Nacional de Literatura Juvenil de Espanha, publicado entre nós pelas Edições Nelson de Matos” sob o título “Só resta o Amor”, infelizmente, sem as belíssimas ilustrações que acompanham a edição original.
Os professores mais atentos saberão que o “O Laboratório do Doutor Nogueira” faz parte do PNL para o Secundário. Mas publicado, numa edição de 2004, pela defunta Ambar não sei que existência terá por livrarias e bibliotecas. Fica a merecer uma reedição e um trabalho gráfico de capa que faça justiça ao conteúdo. Para lá destes fait divers o livro é uma leitura interessante para passar entre mãos de pais e filhos e um pretexto para uma bem-humorada conversa sobre leituras, em dia de avaria televisiva pois, em breve, só assim se garante conversa nas famílias.
O Dr. Nogueira é um sábio milionário e excêntrico em incansável demanda de soluções para os problemas da humanidade através da ciência, de problemas prosaicos como a falta de cabelo ou problemas mais sérios como o racismo. As suas soluções conseguem apenas um relativo sucesso pois não há males no mundo que possamos resolver sem criar outros, de igual ou maior dimensão.
Um dos problemas que sensibiliza o Dr. Nogueira é o empobrecimento da linguagem, a redução lexical que parece afectar, transversalmente, toda a sociedade. Comenta ele com Rosa, sua leal e dedicada assistente, “cúmplice” na tarefa de encontrar a felicidade e o bem-estar do género humano” e narradora do livro, o espanto de serem usados os mesmo adjectivos nas situações mais diversas: “um gelado fantástico, a beleza de um pôr-do-sol fantástico, uma melodia fantástica, a declaração amor de uma pessoa de quem se gosta também fantástica… Tudo fantástico! Onde já se viu um gelado posto ao nível de uma declaração de amor?”
O Dr. Nogueira descobre então uma brilhante fórmula para melhorar, instantaneamente, o desempenho linguístico de uma sociedade que corre o risco de passar a usar menos de cinquenta palavras ou mesmo ficar reduzida à mais pura afasia comunicativa. Descontando o exagero, às vezes caminhamos nessa direcção.
Rosa conta-nos como o empregado da padaria, que habitualmente batia à porta atirando um seco: “Bom dia. O pão e o leite”, depois da solução milagrosa do Dr. Nogueira faz a entrega dizendo: “ seis pecinhas arredondadas feitas com a farinha branca obtida dos grãos desse cereal monocotiledóneo a que chamamos trigo, convenientemente misturada com água, sal e um pouco de levedura e cozidas no forno por não mais que vinte minutos…” e continua acrescentando uma reflexão crítica sobre a quota leiteira e os efeitos da pertença à Comunidade Europeia… Três páginas de um rosário de reflexões económicas e sociológicas cheias de humor e actualidade.
Claro que o caos se instala na cidade com toda a gente a exercer tão profícua comunicação exigindo, mais uma vez, um antídoto para regresso à normalidade.
“Só se aprende com os erros querida Rosa. A tentativa e o erro assinalam o caminho que o cientista tem de percorrer…” diz o incansável Dr. Nogueira à sua entusiasta e apaixonada Rosa. Ambos não reconhecem fracassos apenas percalços no caminho de uma missão maior continuada agora na mais absoluta clandestinidade. Aguardamos os resultados. Os da leitura só podem ser excelentes.
Sílvia Alves


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

IRONIA, POESIA E MORTE



Rubem Fonseca é daqueles autores que se lê de um sorvo. E é também um autor que sempre me deixou repartido. Cheia de cadáveres e mortes e matadores, a sua escrita sempre me atraiu intensamente e, simultaneamente, incomoda-me pela perversidade que transporta, pelo mergulho num mundo negro, grosseiro e mau a que me obriga.

No entanto, este romance é aquele em que menos senti essa perversidade.
Será por o autor estar a envelhecer? De alguma forma há aqui uma despedida já que o matador resolve neste livro reformar-se, embora as circunstâncias o envolvam de novo numa tremenda girândola de mortes e violêndia.



É divertidíssima a ironia do assassino profissional que é um ex-seminarista e enche o livro de citações latinas e da Bíblia. Além de ex-seminarista, o assassino é um leitor fervoroso, adora poesia, é estritamente fiel à mulher amada, com quem discute Rilke e outros poeta na cama.

Quer tudo isto dizer que o assassino não é perverso. Apenas um profissional, um homem culto que toca conforme a música, e que, neste livro, apenas pretende reformar-se e dedicar-se ao seu amor.

Há aqui alguma ou muita semelhança com os quatro livrinhos policiais que Dinis Machado escreveu nos anos 60 sob o pseudónimo de Dennis McShade.
Também o assassino dele era um profissional e gostava de ler e ouvir música clássica.

Sendo uma tremenda ironia, a questão transporta-nos para a questão do nazismo e da música clássica discutida por Luckács e Georges Steiner:

“Para ele (Luckács), os artistas, os escritores, os pensadores são responsáveis até ao fim dos tempos pelos abusos cometidos com as suas obras. Nietzsche e Holderlin seriam responsáveis pelo facto de a Wermacht e a Gestapo terem distribuído extractos das suas obras aos soldados alemães. Wagner seria responsável até ao fim dos tempos pelo facto de a sua música ter acompanhado todos os grandes SS no momento da morte. Tratava-se de um argumento falacioso, pensei eu: não existe nenhuma obra que não possa ser abusivamente usada. Lukács disse-me então que qualquer uso ou abuso inumano de uma nota que seja de Mozart era impossível.”

A literatura serve também para acender estas questões. Não sei discuti-la mas sei que é uma questão tão difícil como inquietante.

sábado, 13 de novembro de 2010

O Barão Trepador


Ombrosa já não existe. Olhando para o céu sombrio, pergunto a mim mesmo se alguma vez terá existido. Aquela pujança de ramos e folhas, bifurcações, penugens sem fim e o céu somente entrevisto a espaços irregulares e retalhos talvez fosse assim só de propósito para que sob ele vivesse o meu irmão, com o seu ligeiro passo de esquilo; era um bordado feito de nada, assemelhando-se a este fio de tinta que sai da minha pena e que deixei correr livremente por páginas e páginas, cheio de riscos, emendas, traços nervosos, manchas, lacunas, e que por momentos se estende em grossas bagas muito claras, outras vezes se recolhe em minúsculos e tímidos, como pequenas sementes, que se dobra sobre si mesmo ou se bifurca, ou ainda descreve partes de frases com contornos de folhas ou de nuvens, e depois se encontra novamente, e novamente também volta a enredar-se, e corre, corre, e continua correndo, torna-se mais espesso, cresce num último cacho insensato de palavras, ideias, sonhos, e termina.

Italo Calvino.


O Barão Trepador (Il borone rampante 1957) é a segunda obra da "trilogia heráldica" do genial do escritor e jornalista italiano Italo Calvino (1923-1985), que foi inaugurada e encerrada com os romances "O visconde dividido" e "O cavaleiro inexistente".

Nesta deliciosa narrativa Calvino conta-nos a vida e as aventuras do filho dum nobre da província de Ombrosa na costa da Liguria que decide viver, depois duma querela familiar, trepado nas árvores.

É outro livro notável do autor de obras inesquecíveis como "O castelo dos destinos cruzados" (1969), "As Cidades Invisíveis" (1972), "Sob o céu jaguar" (1986), entre tantas outras. E sem falar no seu alter-ego tornado o personagem "Palomar", que apareceu inicialmente em crónicas no ``Il Corrieri della Sera" a partir de 1975, e em livro em 1983, e sobre o qual o autor dessas linhas já teve a oportunidade de escrever num contexto epistemológico.

O Barão Trepador dá-nos uma visão extraordinária da mente do seu autor. É impossível não se encantar com a divertida vida do Barão de Rondó, um "Peter Pan" das árvores, que na transição entre o feudalismo e a modernidade, vê o mundo por cima de tudo e de todos, sem nunca deixar de participar nas transformações políticas e sociais desencadeadas pela Revolução Francesa. Este Lafayette italiano, apesar de viver nas árvores, lê os clássicos e os livros fundamentais do seu tempo, e troca correspondência com Diderot, Rousseau e o Tsar da Rússia. Quando em Itália, Napoleão não quis perder a oportunidade de conhecê-lo. Duma árvore o barão pergunta se pode fazer alguma coisa pelo imperador. Napoleão diz-lhe que poderia se afastar ligeiramente para que o sol não o ofuscasse, e dá-se conta que a situação lhe excita a memória. O Barão de Rondó responde-lhe que o imperador provavelmente se referia ao encontro de Alexandre Magno com o filósofo Diógenes no qual este pedia a Alexandre que se afastasse ...

Se um dos aspectos mais fundamentais da literatura é de nos permitir ver a vida de pontos de completamente distintos e diferentes do usual, este livro demonstra-nos que a volta às árvores não é necessariamente uma regressão. As ilações que se podem retirar desta mudança de referencial existencial são todas extremamente interessantes.

Orfeu B.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

REEDIÇÕES



Há livros que passam despercebidos. Resultam da escolha de editores avisados e trazem avant la lettre grandes textos ao convívio de críticos virados para outras urgências mediáticas e de um público que por vezes anda pouco atento às pequenas pérolas que lhe são ferecidas.

É o caso de dois livros recentemente reeditados.

O primeiro, de de Carlos María Domínguez, argentino a viver no Uruguai. Uma história que se desenvolve sob a forma de uma investigação que parte de um livro e de uma relação amorosa que ele evoca e que segue em busca dos passos de um homem e do seu desmedido amor aos livros e à leitura.



O segundo é do irlandês Sebasian Barry em que o autor visita a Irlanda a partir do início do século XX com todas as suas lutas e contradições, misérias e grandezas, através da figura de Eneas, um não-herói ou anti-herói, que nos entra indelevelmente na pele e nos faz mergulhar intensamente na sua leitura.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O FEITIÇO DE BARCELONA



Cada grande cidade tem os seus grandes (e pequenos) escritores. Ainda não conhecia Juan Marsé. Estava ansioso por lê-lo. E fi-lo passeando pela sua Barcelona pobre e misteriosa, cheia de personagens invulgares e de feridas da Guerra Civil e fui seguindo pela Barcelona que conheço, aquela que me foi trazida palavra a palavra por Vazquez Montalban e por Zafón.

Cruzam-se aqui duas grandes histórias, uma realista e cheia de dores e pe1quenas tragédias, numa Barcelona com grente estranha e louca, gente grande e generosa, gente que guarda na pele a memória da guerra e continua uma militância política cuja dimensão épica se esvai na areia do tempo.

Uma menina tísica espera pelo pai, revolucionário e pistoleiro fugido em França. Um companheiro do pai conta-lhe a história de como ele foi arrastado para Xangai numa aventura que parece um filme da série B, com nazis, tríades chinesas, mulhlíssimas misteriosas.

A arte de Marsé está, em primeiro lugar, nas personagens que cria: o capitão Blay que percorre as ruas da cidade envolto em ligaduras como se fosse o Homem Invisível, a senhora Anita, muuitíssimo sensual, bilheteira de um cinema e alcoólica, os dois irmãos que vendem livros de quadradinhos em segunda mão e recolhem folhas aromáticas que levam à menina que sofre dos pulmões, o homem que tem o poder nas mãos de aquecer e tratar um joelho ou as dores de cabeça de alguém.

Em segundo luigar, Marsé liga magnificamente os dois fios narrativos, deixando-nos até ao fim presos a essa forma notável de nos chamar ao convívio com o desejo, o sonho desmedido e uma imensa melancolia.