sábado, 13 de novembro de 2010

O Barão Trepador


Ombrosa já não existe. Olhando para o céu sombrio, pergunto a mim mesmo se alguma vez terá existido. Aquela pujança de ramos e folhas, bifurcações, penugens sem fim e o céu somente entrevisto a espaços irregulares e retalhos talvez fosse assim só de propósito para que sob ele vivesse o meu irmão, com o seu ligeiro passo de esquilo; era um bordado feito de nada, assemelhando-se a este fio de tinta que sai da minha pena e que deixei correr livremente por páginas e páginas, cheio de riscos, emendas, traços nervosos, manchas, lacunas, e que por momentos se estende em grossas bagas muito claras, outras vezes se recolhe em minúsculos e tímidos, como pequenas sementes, que se dobra sobre si mesmo ou se bifurca, ou ainda descreve partes de frases com contornos de folhas ou de nuvens, e depois se encontra novamente, e novamente também volta a enredar-se, e corre, corre, e continua correndo, torna-se mais espesso, cresce num último cacho insensato de palavras, ideias, sonhos, e termina.

Italo Calvino.


O Barão Trepador (Il borone rampante 1957) é a segunda obra da "trilogia heráldica" do genial do escritor e jornalista italiano Italo Calvino (1923-1985), que foi inaugurada e encerrada com os romances "O visconde dividido" e "O cavaleiro inexistente".

Nesta deliciosa narrativa Calvino conta-nos a vida e as aventuras do filho dum nobre da província de Ombrosa na costa da Liguria que decide viver, depois duma querela familiar, trepado nas árvores.

É outro livro notável do autor de obras inesquecíveis como "O castelo dos destinos cruzados" (1969), "As Cidades Invisíveis" (1972), "Sob o céu jaguar" (1986), entre tantas outras. E sem falar no seu alter-ego tornado o personagem "Palomar", que apareceu inicialmente em crónicas no ``Il Corrieri della Sera" a partir de 1975, e em livro em 1983, e sobre o qual o autor dessas linhas já teve a oportunidade de escrever num contexto epistemológico.

O Barão Trepador dá-nos uma visão extraordinária da mente do seu autor. É impossível não se encantar com a divertida vida do Barão de Rondó, um "Peter Pan" das árvores, que na transição entre o feudalismo e a modernidade, vê o mundo por cima de tudo e de todos, sem nunca deixar de participar nas transformações políticas e sociais desencadeadas pela Revolução Francesa. Este Lafayette italiano, apesar de viver nas árvores, lê os clássicos e os livros fundamentais do seu tempo, e troca correspondência com Diderot, Rousseau e o Tsar da Rússia. Quando em Itália, Napoleão não quis perder a oportunidade de conhecê-lo. Duma árvore o barão pergunta se pode fazer alguma coisa pelo imperador. Napoleão diz-lhe que poderia se afastar ligeiramente para que o sol não o ofuscasse, e dá-se conta que a situação lhe excita a memória. O Barão de Rondó responde-lhe que o imperador provavelmente se referia ao encontro de Alexandre Magno com o filósofo Diógenes no qual este pedia a Alexandre que se afastasse ...

Se um dos aspectos mais fundamentais da literatura é de nos permitir ver a vida de pontos de completamente distintos e diferentes do usual, este livro demonstra-nos que a volta às árvores não é necessariamente uma regressão. As ilações que se podem retirar desta mudança de referencial existencial são todas extremamente interessantes.

Orfeu B.

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