segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Homo Faber


The technologist's mania for putting the Creation to use, because he can't tolerate it as a partner, can't do anything with it; technology as the knack of eliminating the world as resistance, for example, of diluting it by speed, so that we don't have to experience it ... My mistake lay in the fact that we technologists try to live without death. Her own words: "You don't treat life as a form, but as a mere addition sum, hence you have no relationship to time, because you have no relationship to death". Life is form in time.

Max Frisch




Homo Faber (Homo Faber. Ein bericht) é uma novela do escritor suiço Max Frisch (1911 - 1991) publicada em alemão em 1957. Escrita na primeira pessoa, no estilo dum relatório, como o título alemão sugere, relata-nos o drama dum bem sucedido engenheiro, Walter Faber, que trabalha para a UNESCO em projectos na Europa e nas Américas, e que, por força duma improvável cadeia de acontecimentos, vê-se no centro duma tragédia que rompe definitivamente a sua visão lógica e estruturada do mundo e da natureza.

Uma novela inquietante que não poupa o leitor das perguntas essenciais. Como pode um homem, moralmente inatacável, cujo relacionamento com o mundo faz-se através da técnica e da racionalidade, enfrentar o falhanço de ter sido incapaz de proteger quem ama dum acidente, e depois descobrir que o ente querido era na verdade a sua filha? Uma tragédia desencadeada por uma víbora, o ser instigador do pecado original (o pecado do conhecimento-técnica), e que acontece na Grécia, berço das tragédias clássicas onde invariavelmente os personagens caem nas armadilhas improváveis do destino, inteligíveis apenas para os deuses, ou para o narrador dotado da clarividência da perspectiva cronológica.

Uma novela densa, por vezes onírica na sua fragmentação narrativa, dialéctica na contraposição das visões de mundo antagónicas dos personagens, arquetípica pelas conexões estruturais acima mencionadas, mas sobretudo, existencialista no seu ponto focal.

Um livro comovente e extraordinariamente bem conseguido, à altura da bem conhecida e brilhante obra dramaturgica do autor, que inclui títulos como "Andorra" e "O Muro da China".


Orfeu B.


sábado, 24 de dezembro de 2011

MAPAS E AUSÊNCIAS



Um romance portentoso que roda à volta do conceito do tempo e da ausência.

A Argentina é um país de ausências, um país onde as marcas do tempo se confundem. Ou talvez não tanto as marcas do tempo como as marcas das identidades de um país que nem sempre coincide consigo mesmo.

País onde uma ditadura apagava acontecimentos pessoas, ruas, cidades e afirmava que o que não se vê não existe.

Um romance que, de forma sinuosa, nos leva a percorrer o tempo para a frente e para trás, em torno do exílio de um escritor e da personagem real/irreal que ele persegue e que por sua vez persegue cegamente o marido assassinado. Deste exílio diz o autor que:

“Do exílio ninguém regressa. O que abandonamos, abandona-nos”

Esta é sobretudo a história de Emília, uma mulher que perdeu tudo. A confiança no pai que sabe cúmplice da ditadura ou mais ainda do que isso. A memória da mãe que enlouquece. O marido assassinado pela polícia.

Emília não aceita que o marido tenha morrido e fica 30 anos à sua procura do Brasil à Venezuela até aos EUA. Uma cartógrafa que procura o mapa em que ela e Simón se possam reencontrar.

“O que fizeste com a tua vida, Emília?”, pergunta o autor. “Nada,” responde Emília, “…e isso é que é pior. Não fiz nada. A minha vida é que fez comigo.”

O rio redondo de buscas e equívocos, que é este romance, desenha um purgatório, uma espera sem ponto de chegada nem desespero, uma metáfora poderosa para a vida de todos nós.

No entanto, e sem tocar as patetices da literatura cor-de-rosa, o autor não deixa de visitar uma profunda fé no que de melhor a Humanidade tem, ou seja, na capacidade de amar.

Ao longo desta leitura cruzada com outras leituras e uma exposição de pintura, fui reflectindo sobre o mal e a sua expressão na palavra de alguns escritores e na representação de alguns pintores, sobre a perversidade como estética, sobre o convívio com os terríveis fantasmas da guerra ou, pior, da maldade absoluta.

E fico-me nesta afirmação de Tomás Eloy Martínez que me parece apontar para um percurso poético da escrita tão distante desse prazer mórbido que tem invadido muita arte e literatura contemporâneas, nomeadamente entre nós.

“Os romances escrevem-se para emendar no mundo a ausência perpétua daquilo que nunca existiu.”

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

“necesarios son en la madurez los carteros capaces de recibir cartas que sólo un loco puede ser capaz de escribir”


                                            
"Kafka y la Muñeca Viajera"
                                                   
Jordi Sierra i Fabra
                                                     
Editora Siruela

Conta-se que um dia Franz Kafka se cruzou com uma menina que chorava uma boneca perdida, no parque Steglitz, em Berlim onde morava em 1923.
Conta-se que Kafka tentou consolá-la dizendo-lhe que era um carteiro de bonecas e que, por acaso, tinha recebido uma carta da boneca da menina, que a prometeu levar no dia seguinte e que durante três semanas escreveu cartas que leu à menina contando as aventuras da viagem da sua boneca
A história foi contada por Dora Dymant, que nessa época vivia com Kafka, à crítica Marthe Robert e ao escritor Max Brod.
Kafka morreu no ano seguinte e as cartas da boneca ou a sua destinatária jamais foram encontradas. 
80 anos mais tarde Jordi Sierra i Fabra conta essa história no livro "Kafka y la Muñeca Viajera" (um livro,  com ilustrações de Pep Montserrat,  vencedor do Prémio Nacional de Literatura Infantil y Juvenil do Ministério da Cultura Espanhol, em 2007). 
Fabra reinventa a menina, Elsi, a boneca perdida, Brígida, e um Kafka feito carteiro atento e terno diferente do que conhecemos de outros processos e metamorfoses. Nós, leitores, sabemos que a boneca está perdida mas sentimo-nos cúmplices querendo que Elsi acredite nas aventuras impossíveis de uma boneca. Pelo meio Fabra faz-nos cruzar com o relacionamento de Kafka e Dora, com a cidade Berlim entre guerras e com algumas das suas angústias na escrita, num registo de ternura e redenção. Uma história encantadora para leitores sem idade.


domingo, 4 de dezembro de 2011

JOHN CHEEVER, CONTISTA EM CONSTRUÇÃO - UM APONTAMRNTO



A Sextante Editora acaba de publicar (Outubro de 2011) um livro muito interessante de John Cheever, intitulado “Fall River e Outros Contos Dispersos”. Sobre os contos de John Cheever já me referi, a propósito do seu livro “Contos Completos I”, também editado pela Sextante. Em princípio, nunca me refiro duas vezes a um mesmo autor, mas este “Fall River e outros Contos Dispersos” tem uma característica muito especial, pois agrupa contos de 1993 (“Fall River” e “Fim de Estação”) a 1949 ( “ A Oportunidade”), o que permite assistimos à evolução da sua escrita desde a juventude. Também será de destacar a “Introdução” de George H. Hunt, esclarecedora da evolução de Cheever ao longo daquele período: influências recebidas, elaboração progressiva de um estilo próprio. Embora muitas das histórias do período de formação assentem na sua vida pessoal, numa entrevista de 1976, citada na referida “Introdução”, ele esclarecia: “O que eu costumo dizer é que a ficção não é cripto- autobiografia. O seu esplendor está em não ser autobiográfica. É um riquíssimo complexo de autobiografia, de biografia, de informação – informação factual, informação espiritual, apropriação”.
Cheever possuia a capacidade de alterar qualquer incidente que lhe ocorresse “numa história magicamente alterada”. A sua criatividade e o seu potencial narrativo foi algo que o acompanhou desde os seus 19 anos até à sua morte, aos setenta anos. Segundo Hunt, a escrita de Hemingway, “ a sua simplicidade emotiva”, a sua contenção, teria sido a grande fonte de inspiração de Cheever, nos primeiros tempos, como se pode verificar em “Fall River”:
“Havia dois anos que as pessoas o sabiam, mas no inverno tornou-se óbvio. As fábricas tinham parado e as rodas enormes mantinham-se imóveis junto aos tetos. Os teares amontoavam-se no chão como a maquinaria sem préstimo num velho teatro de ópera. Pelos pavimentos, nas traves e nos flancos brilhantes de aço, o véu da teia estava coberto como neve antiga”.
Assim se inicia o conto, com uma descrição naturalista da situação em que a acção se irá desenhar. Descrição neutral, que nada nos sugere acerca das personagens que irão dinamizar aquela estrutura.
No entanto, a construção característica de Hemingway não lhe permitia expandir as suas faculdades de escritor: “Acho que com as imagens temos uma escolha a fazer: ou ampliá-las ou reduzi-las. Neste momento (1976) acho a redução deplorável. Quando eu era mais novo, achava isso brilhante”. E será através dos últimos textos da obra que estamos a analisar que encontramos uma outra escrita de Cheever, agora liberta das influências reducionistas que lhe conferiam um estatuto de autor de referência da escola “minimalista” norte-americana dos anos 20, 30. Estamos, pois, perante uma nova escrita, em que as personagens têm uma clara expressão de sentimentos e pensamentos, fornecendo ao leitor, desde o início dos contos, um conjunto de pistas para a compreensão da evolução da acção:
“ Quando naquela manhã Roger Gaige apareceu na pista e disse a toda a gente, treinadores,moços das cavaliças e aficionados das corridas, que ia mudar de vida, muitos deles riram-se abertamente e McGrath, o seu melhor amigo, não conseguiu disfarçar um sorriso. Havia quinze anos que viam a sua cara prazenteira e invulgarmente crédula em todos os cercados das pistas de corridas do país e a impossibilidade de separem Rorger dos cercados era apenas a fraqueza natural da imaginação humana”
O modo como inicia este conto, intitulado “Saratoga,” constitui um exemplo do que acabo de dizer. A suspeição da firmeza da decisão da personagem insinua-se imediatamente no leitor e funciona como o fermento da acção que se irá desenvolver nos parágrafos que se seguem, algo que contamina o leitor e lhe tira a possibilidade de um olhar distanciado sobre os acontecimentos.
Mas ainda não é o Cheever da maturidade, pelo que teremos de esperar pelos anos 50, 60, para que encontremos uma escrita verdadeiramente pessoal, liberta de influências de escolas e autores, como se podetá verificar nos seus “Contos Completos”, I e II.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

ENQUANTO O DIABO ESFREGA UM OLHO


“QUANDO O DIABO REZA”

MÁRIO DE CARVALHO

Os meus amigos são os melhores escritores do mundo. E o Mário de Carvalho é um dos primeiros entre eles.

Mário de Carvalho é um leitor atento dos clássicos portugueses do séc. XVII, a começar pelo Padre António Vieira. E com eles ou por eles terá caminhado para uma arte rara de bem tratar a nossa língua, de procurar vocabulário luminoso e expressivo, de construi a frase como poucos o fazem na nossa literatura.

Julgo saber que outra das paixões do Mário é a banda desenhada. Dela transpõe para alguns dos seus contos e novelas o traço rápido e um humor tão subtil como galhofeiro.

A juntar a isto tome-se o conhecimento que tem do popular lisboeta chegamos a esta novela que será prima dos famosos e notáveis “Casos do Beco das Sardinheiras”.

A história, que poderia ser também parente da “Crónica dos bons malandros” do Mário Zambujal, mete bandidecos de 3ª categoria, um carro a cair aos bocados uma rapariga facilzita, um dono de drogarias a caminhar para a senilidade com duas filhas que lhe anseiam pela herança para cumprirem os seus sonhos viajantes de pequenas burguesas lisboetas.

Tudo cheira a esta pobre terceira classe em que parece que não deixámos de viver, país pequeno e ronceiro, onde muitos gostam de se tomar a serio, até os governos, e acabam por mostrar à saciedade o seu lado mais frágil e manhoso.

Lê-se enquanto o diabo esfrega um olho, ou enquanto o diabo reza, o que deve ser mais ou menos a mesma coisa.

domingo, 27 de novembro de 2011

Kafka



... O verbo "desenvolver", no entanto, possui um duplo sentido. A flor é o resultado de um desenvolvimento diferente do barco de papel que se ensina a fazer às crianças e se desdobra numa folha lisa. Este segundo desenvolvimento é o que se adequa à parábola, ao prazer do leitor em desdobrá-la até lhe encontrar um significado liso. Mas as parábolas de Kafka desenvolvem-se no primeiro sentido, no sentido que culmina na flor. Pois, os seus resultados tem afinidades com a poesia ...

Como Lao-Tsé, também Kafka era um autor de parábolas, mas não era um fundador de religiões.

Walter Benjamin


Seria difícil encontrar um autor moderno que não esteja ligado directa ou indirectamente ao legado de Kafka. O crítico literário, filósofo, sociólogo e tradutor Walter Benjamin (1882 - 1940) sabia-o muito bem e não resistiu à sedução de mergulhar no enigma da obra do autor de " O Processo". Através dum pequeno ensaio, escrito em 1934, e publicado pela Editora Hiena em português em 1994, Benjamin dá-nos a oportunidade de vislumbrar as múltiplas e surpreendentes relações místicas, religiosas, talmúdicas, literárias, psicoanalíticas, etc, que a obra de Kafka suscita a uma mente brilhante e ecléctica.

O opúsculo começa com o truque brilhante de descrever uma situação ocorrida dois séculos antes, segundo a qual a depressão do tzar Potemkin emperra toda a máquina burocrática que necessita da sua assinatura em inúmeros documentos pendentes. Ansioso por agradar aos seus superiores, o humilde copista Chuvalkin irrompe no quarto do imperador com os documentos por assinar e, arranca deste as assinaturas desejadas. Porém para a consternação dos ministros e autoridades, em todos os documentos figurava o nome de Chuvalkin! Segundo Benjamin, a obra de Kafka, como a história de Potemkin, gira em torno de equívocos dessa natureza, de condenações presumidas, de transformações e nomeações incompreensíveis que seguem o seu curso absurdo, apesar da irretorquível lógica interna das acções que desencadeiam.

Para Benjamin, o mundo de Kafka é um Teatro Universal. Para Kafka o homem encontra-se naturalmente em cena. A prova sendo que todos são aceites no teatro natural de Oklahoma, texto central na obra de Kafka, e no qual é impossível se perceber que critério rege as admissões. No teatro natural de Oklahoma à aptidão declamatória não se dá qualquer importância; só se pede aos candidatos que representem o papel de si próprios ... E nas fábulas de Kafka, os animais descritos ganham ao longo do texto uma inevitável humanidade. E reciprocamente, é a solidão da condição humana que lhes empresta a condição animal. Assim, Gregor Samsa não acorda transformado num insecto, mas desperta para um estado de humanidade pura, destilada ao ponto de deixar desnuda a solidão fundamental da existência e a sua inerente inadequação às convenções.

Porque a questão fundamental é formulada no "O Castelo", sendo também a essa essência de"O Processo":

"Acaso um funcionário isolado tem o direito de perdoar? Pode-se admitir que ao colectivo das autoridades reunidas seja permitido tomar decisões, mas mesmo aqui há que distinguir: podem condenar, mas não têm poderes para perdoar".

Mas certamente, não serão todos tocados por este tipo de subtilezas e para exemplifica-lo permito-me citar um breve texto Umberto Eco intitulado , "Lamentamos não poder publicar o seu livro ... ":

"Franz Kafka. O Processo
Este livrinho não é mau de todo. Género policial, com passagens tipo Hitchcook: o assassínio final, por exemplo, terá os seus apreciadores.

Mas dir-se-ia que o autor o escreveu sob ameaça da censura. Como explicar aquelas vagas alusões, a omissão do nome das pessoas e lugares? E porque motivo o protagonista é levado a tribunal? Se especificasse melhor essas questões, enquadrando a história num cenário mais concreto, fornecendo factos, principalmente factos, o enredo ganharia em clareza e o suspense em eficácia.

Estes escritores novatos julgam criar "poesia" ao dizer "homem", em vez de "o Sr. Fulano de tal, em tal lugar, a tal hora" ... Em suma, se for possível dar uma volta ao texto, interessa. Caso contrário, aconselho recusá-lo."

Umberto Eco especula que os profissionais que assistem os editores também não aconselhariam a publicação da Bíblia, da Odisséia, da Divina Comédia, de Dom Quixote, de À Procura do Tempo Perdido ...

Orfeu B.




sábado, 19 de novembro de 2011

HISTÓRIA E FICÇÃO



Os premiados romances de Dulce Maria Cardoso têm passado discretamente entre nós. E, no entanto, merecem muito ser lidos.

"O RETORNO" conta-nos o drama de uma família de retornados pobres que de Angola regressam à metrópole por alturas da Independência de Angola.

O primeiro equívoco desse longo rosário de equívocos que foi a questão dos retornados começa com o facto de o próprio narrador, um rapaz de 16/17 anos não retornar mas fugir da sua terra já que em Angola nasceu e cresceu e da metrópole ter apenas um conjunto de ideias vagas e pouco adequadas a esse mundo que vem encontrar tão diferente do seu.

A autora leva-nos a conhecer a diferença das raparigas e das mulheres de cá e de lá nos olhos do narrador, a demora dos crepúsculos, o frio do Outono e do Inverno nunca antes experimentado, a vida de gente acumulada como em latas de sardinhas em hotéis de luxo, as esperas sem fim pelos subsídios, pela resolução dos problemas pessoais, a construção de um projecto de vida.

A História faz-se tanto pelas investigações e pelos ensaios como por esse outro meio de investigação que é a literatura. E se os historiadores investigam a História por fora, pelo plano geral, a literatura fá-lo por dentro, pelos afectos, pelos espantos,
pelos arrepios, pelos medos.

A Guerra colonial começou a ser abordada pelos romancistas antes de o ter sido pelos historiadores. O momento chave desse fenómeno terá sido "Os Cus de Judas", fantástico grito de raiva e revolta de António Lobo Antunes, momento de arranque de uma nova literatura em Portugal.

Da guerra vai-se falando, vai-se desvendando as facetas mais terríveis, vai-se construindo a dimensão operática e também a tragicómica.

Até agora muito pouco se falou dos retornados, ferida aberta, tema incómodo no processo revolucionário português.

Será talvez esta a primeira narrativa do regresso dos colonialistas portugueses, fugidos à pressa, carregados de grandezas e memórias verdadeiras ou fabricadas, cheios de raiva aos pretos, aos revolucionários, aos comunistas, e delapidados de riquezas reais ou inventadas.

A recepção aos retornados é aqui narrada sem panos quentes, mostrando a mesquinhez de uns e outros, os que se vão adaptando a um novo Portugal que procura entender-se com o que possa ser a revolução, e os outros, os que perderam um outro Portugal, o do Império que começa a desfazer-se.

A nossa História passa por aqui. Por olhar de frente o claro e o escuro dos grandes momentos. Por ouvir a voz dos escritores como a Dulce Maria Cardoso que nos levam pela mão ao tempo das angústias e das esperanças com que as esquinas da História nos enredam e desenredam.

domingo, 13 de novembro de 2011

FELISBERTO HERNÁNDEZ, UM AUTOR ANTES DO SEU TEMPO



“O autor tem o sentido inato de que um dia será clássico”

(Jules Supervielle, em carta que lhe dirigiu)


Em crónicas anteriores, tenho-me referido a autores que não resistiram aos efeitos do tempo e que, por isso, já se lêem com dificuldade. E poucas vezes, muito pouco mesmo, tenho feito referências a autores que se anteciparam ao seu tempo e que, por isso, também se lêem com alguma dificuldade. Estão neste caso Julio Cortázar, de quem falei a propósito do seu “Rayuela” (“O Jogo do Mundo”, na edição portuguesa da Cavalo de Ferro) e Felisberto Hernández, com os seus “Contos Escolhidos” (edição de 2011, da Oficina do Livro).
São nove contos, pertencentes a períodos diferentes da escrita do autor. Alguns acentuadamente musicais, uma espécie de sonata em que uma nota procura a nota seguinte, numa relação sensitiva, cuja compreensão imediata nos foge, pois decorre, única e exclusivamente, da emoção, da intuição do autor. Notas musicais que são, neste caso, as palavras que se procuram, que se afastam, numa lógica nem sempre evidente. Algo que só adquire sentido se aceitarmos (sem reservas) o mundo subjectivo do autor. Algo que tem o contorno do sonho, em que o inesperado, o aberrante se tornam naturais para o sonhador, congregando, na mesma atmosfera emocional, pessoas, objectos, situações pertencentes a contextos diversos.
Assim, com exemplo, atente-se neste fragmento, extraído do conto ”Terras da Memória”

“Em Mendoza hospedaram-nos em casa do chefe dos scouts. Pouco depois de ter chegado eu desfrutava uma solidão agradavelmente submersa num banho de água morna. A água chegava-me até ao pescoço e os azulejos brancos daquele quarto de banho chegavam quase até ao tecto.
Olhava os objectos que tinham deixado fechados comigo e pensava nas pessoas que um momento antes haviam estado na sala; eu tinha tocado piano e conversava com as raparigas da casa - que também pertenciam à instituição de scouts e também iriam atravessar a pé, connosco, a cordilheira -”.
Partindo de um facto de uma realidade quotidiana (“Em Mendoza hospedaram-nos na casa do chefe dos scouts” ), o texto envereda rapidamente para o mundo onírico, em busca do sentido que se oculta nas palavras que, inevitavelmente, vão surgindo.
Palavras, sonoridades, membros estilhaçados, tudo aflui no processo da escrita que se desdobra para o lado de dentro, que não procura o leitor, mas espera que ele a encontre. Veja-se este fragmento de “A casa inundada”:



Finalmente apareciam as palavras prometidas - agora que eu não as esperava -. O silêncio apertava-nos debaixo dos ramos mas não me animava levar o bote mais adiante. Tive tempo para pensar na senhora Margarida com palavras que ouvia dentro de mim e como que abafadas numa almofada: “Coitada, dizia a mim mesmo, deve ter necessidade de comunicar com alguém. E como está triste, vai ser difícil manejar esse corpo...”

Ao longo desta crónica não procurei fazer o estudo literário destes contos (períodos a que pertencem, diferenças de estilo ou de concepções literárias), mas, sim, chamar a atenção para o que de maravilhoso, de novo eles contêm. Enfim, deixei-me embalar pelas palavras, pelo imprevisto dos textos, remetendo-me ao meu papel de leitor que se deleita com a escrita de um autor que nos concita a participar na inteligibilidade do que se oculta no mistério das palavras.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

"O essencial é invisível aos olhos" Saint-Exupéry




Cyrano
Tai-Marc Le Thanh
Rébecca Dautremer
Editora Educação Nacional

Há livros quase obrigatórios  e capazes de remeter a velha questão do livro para crianças ser ou não ser para todos para uma discussão sem importância. São, de facto, livros para todos. 
Aqui nos 7leitores somos todos fazedores de tarefas várias. Uma das mais excruciantes depois de uma história estar escrita, pronta para editar, digo-o por experiência nestes dias, é encontrar um ilustrador, uma escolha que auspicie um casamento perfeito de ilustração e texto. Por isso repousei da busca deliciando-me com este “Cyrano” que fica na categoria dos livros perfeitos. 

Vivemos num tempo em que muitas crianças, ainda ou já, não adormecem com histórias mas despertam para a vida a ver programas de lixo. Que aprendem? Que é preciso humilhação pública para perder 50 quilos, para recuperar dignidade? Estamos a educar uma geração para comida rápida, sexo rápido e amores a correr ditados a gráficos de audiências, para vidas de consumo rápido. É preciso reinventar outra vida, outro tempo, outro peso e outros segredos que nada têm a ver com os códigos que entram por uma televisão vista sem conta, sem medida e sem mediadores.

A educação para a Arte passa pelo livro e a descoberta dos clássicos também se pode servir de livros de passagem que abram caminho sem dispensar a sua leitura. Toda a cópia é um original, todo o reconto é um novo conto mas não pode ser um subproduto do original. A arte de recontar exige respeito e uma reinvenção que algo acrescente.

Neste livro é deliciosamente recontada, por Tai-Marc Le Thanh e Rébecca Dautremer, uma das mais bonitas histórias de amor: Cyrano humilhado pelo seu enorme nariz que não ousa confessar o seu amor e Roxana apaixonada pela beleza de Cristiano por desconhecer a sua colossal estupidez que só à beira da morte de Cyrano se descobrem reciprocamente amados. 

Cyrano de Bergerac, uma peça escrita em 1897 por Edmond Rostand, sobejamente conhecida pelas adaptações cinematográficas, renasce aqui num cuidado trabalho gráfico que harmoniza o texto de Tai-Marc Le Thanh com o traço da Rébecca Dautremer ( marido e mulher na vida real, um detalhe ou não…)


No trabalho da Rébecca são evidentes as influências da fotografia, do cinema e da pintura de Vermeer ou velásquez… Cada imagem parece a captação fotográfica de um momento, a narrativa da acção da câmara e ao mesmo tempo a calma estática do traço lento na tela. Com uma cuidadosa atenção ao detalhe o seu traço é de extrema leveza e bom gosto e as cores envolventes e confortáveis mesmo quando, como é o caso aqui, nos transmitem melancolia. Quase podíamos disfrutá-las sem o texto mas o texto é neste livro, como aliás em todos os que a Rébecca tem ilustrado, muito bom. A construção da narrativa pela imagem abre novos pontos de vista e a tentação de nos perdemos na imagem é equilibrada e enriquecedora da leitura do texto, inteligente e bem humorado, a que voltamos com prazer.

As bibliotecas devem dar a conhecer livros assim: de histórias eternas e lentas que não podemos nem devemos dispensar. Livros que se abrem como uma sinfonia a ecoar pela casa, afastando a tristeza, dando-nos o consolo das palavras e da beleza sensível ao coração.
Sílvia Alves

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

LEITURA - A "ESTRELA"




Ter um livro para ler e não o fazer, é uma obra de Albano Estrela, constituído por uma série de textos escritos para o blog “7 leitores” e foi há algum tempo publicado pela “Indícios de Oiro” (Lisboa, 2010).
O título é, como sabem, tirado duns versos de Fernando Pessoa e é, em si mesmo, uma ironia e uma provocação. Porque se há livro que nos abra à leitura e ao seu valor inestimável, que nos estimule à leitura, é este. Portanto, «ter um livro para ler e não o fazer» só pode ser interpretado como uma forma de valorização daquilo que se nega, explicitamente, para implicitamente o afirmar, valorizando. É pois, (deve ser) um estratagema para prolongar o prazer que se vai ter, em suma, um método irónico de valorização das leituras. Assim como quem passa o dia a sonhar com o prazer de, à noite, mergulhar no romance maravilhoso que anda a ler, mas, temendo terminá-lo já hoje, guarda o resto para amanhã. Hoje não, mas amanhã sim, e com ânsia redobrada. É pois uma forma de falar, uma brincadeira à Albano Estrela que nos quer dizer justamente o contrário daquilo que nos parece querer dizer. Enfim, uma forma de retardar e reforçar o prazer.
Porque Albano Estrela revela-se (o que aliás já sabíamos) ser um leitor insaciável e de grande qualidade. Ou seja, passou a vida a ler livros e foi acumulando disso uma capital e uma qualificação que o transformam num crítico informado, vivo, actual e frequentemente inesperado; embora não seja crítico literário, como diz. Mas o que é facto é que apanha os textos não só pelo lado em que a maior parte das pessoas o faz mas ainda por outros pontos de vista, abrindo perspectivas inesperadas, interpretações que não estariam na ordem do dia mas que ele introduz fazendo pontos de ordem à mesa e obrigando-nos ao debate, isto é, ao pensamento. E pelo meio, de passagem, dando informações, fazendo críticas, fornecendo dados culturais, falando de vivências, memórias, sempre com a ironia à espreita, e numa prosa leve, corrida, coloquial, elegante e cheia de humanidade e de compreensão para os autores.
O livro tem uma apresentação do próprio Albano Estrela e um prefácio de José Fanha, um dos responsáveis do referido blog “7 Leitores”, de que Albano Estrela é dos colaboradores mais assíduos. São pequenos textos, como disse, sobre «leitura e leitores», «escrita e escritores», «contos e contistas», «minificções e pequenas histórias», «romances e romancistas», «memórias e memorialismo», «entrevistas e entrevistadores», «ensaios e ensaístas», «poesia e poetas», «crítica e críticos literários», «traduções e tradutores», «edição e editores», «livreiros e livrarias» «literaturas paralelas» «fotografia, cinema». Ou seja, pequenas crónicas sobre todo o mundo da cultura, a partir dos livros, lidos e relidos, e com a riqueza, uma já longa experiência de leitor e um gosto fino e de grande qualidade que tornam o livro, de facto, uma preciosidade. Já não há muitos leitores assim, e gente disposta a falar, sem presunção mas com inteligência, sensibilidade e gosto do que vai lendo, ainda há menos.
E a propósito, não podemos deixar de considerar o que de muito bom os blogs têm trazido à cultura, como aliás os leitores do De Rerum Natura sabem. Se não fosse o blog “7 Leitores” provavelmente nunca Albano Estrela escreveria todos estes textos. É, pois, de algum modo, uma homenagem aos blogs e aos que neles trabalham com inteligência, cultura e civismo.


João Boavida

Licenciado em Filosofia, doutorado em Ciências da Educação, professor catedrático da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação de Coimbra, aposentado há dois anos.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

PARA ALÉM DOS 7 LEITORES



Este blog tem sido uma aventura teimosa de meia dúzia de leitores obsessivos. Inesperadamente obteve um público muito significativo quer em Portugal, quer no Brasil, quer em vários países por onde supostamente se espalha a diáspora da cultura lusófona.

Como os 7 leitores não são profissionais, o seu ritmo de publicação é necessariamente irregular. Mais ainda. Alguns dos 7 leitores descobriram que afinal ler e escrever sobre o lido eram actividades muito diferentes e, nalguns casos. essa escrita revelou-se demasiado difícil.

Talvez a escrita posterior interfira com o acto livre e solto da leitura. Talvez a escrita esteja magoada pelas leitura de recenseamentos críticos dos jornais. Talvez... Seria interessante reflectir sobre esta relação complexa, por vezes feliz, outras tantas bloqueadora e congelante.

Pensámos alargar o campo dos que leem e escrevem. Começamos hoje a trazer a espaço o contributo de amigos conhecidos de perto ou de longe, que em comum connosco têm a paixão pela leitura e o gosto pelo exercício de escrever reflectindo sobre o que se vai lendo.

- Não somos críticos ou recenseadores nem queremos cumprir essa função tão vendida hoje ao marketing editorial;

- Não pretendemos pôr em cada livro estrelinhas ou garfos ou qualquer outra forma
mais ou menos policial de os classificar;

- Não pretendemos fazer análise literária mas apenas reflectir sobre uma obra ou parte dela e partilhar com outros essa reflexão;

- Não pretendemos assumir o papel de falar a correr das actualidades literárias, embora não as queiramos excluir necessariamente;

- Só falamos dos livros que gostámos de ler e, preferencialmente, daqueles que gostámos muito de ler. Não temos tempo nem espaço para falar dos livros de que não gostamos. A nossa aposta é a paixão por esse acto tão fantástico que é o de cruzar a vida de cada um de nós com as vidas dos que habitam as histórias dos livros.

domingo, 30 de outubro de 2011

3 SANTOS INESQUECÍVEIS



“TRÊS VIDAS DE SANTOS”

EDUARDO MENDOZA

Há muito que queria ler este autor catalão. E foi um bom começo.

Prosa escorreita e cheia de uma irónia que se vai construindo tanto nas situações como no uso do verbo e do adjectivo certeiro e afiado.

O tio Vítor era “Era fraco de luzes” diz o autor de uma das personagens. É disto que se faz muito da boa literatura. Passei a andar por aí e a descobrir algumas pessoas de fracas de luzes. E a descobrir o acerto da escolha adjectiva do autor.

Os 3 santos são 3 inocentes, 3 tontos, 3 vítimas do acaso. Três homens que passam ao lado do entendimento social do que é o bem e o mal.

Trágicos ou cómicos, sempre desajustados, estes santos são parte de uma ideia equivocada, de um trauma psicológico, de um acaso da vida.

São desses seres que se arrastam pelo mundo com a sua luta interior e ninguém se interessa pelo seu aspeto, quase não têm representação física mas cruzam-se neles neles muitos dos grandes dramas dos seres humanos e, por isso, são excelentes habitantes de muita da melhor literatura nomeadamente da russa (Turgueniev, Tolstoi, Dostoievsky, Tchekov)

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ferdydurke

...

Os autores, com perícia e grande mestria poética, escondiam-se atrás de conceitos como Beleza, Perfeição Técnica, Lógica Interna da Obra, Férrea Consequência das Associações, ou ainda atrás da Consciência de Classes, da Luta, das Alvoradas da História e de outras ideias objectivas e anti-pantorrilheiras. Mas, desde o princípio, era evidente que estes versinhos, com a sua arte arrevesada e confrangedora pieguice, que não servem a nada e a ninguém, formavam uma linguagem secreta e complexa, e que devia haver alguma razão específica e de sobeja importância para que tantos sonhadores sofríveis compusessem aquelas extravagantes charadas. E, com efeito, após um longo tempo de reflexão, consegui verter para uma linguagem inteligível o conteúdo da seguinte estrofe:

O POEMA

Os horizontes estoiram como garrafas
a mancha verde eleva-se às nuvens
regresso à sombra dos pinheiros -
e de lá:
sorvo de um só gole

a minha primavera quotidiana.


A MINHA VERSÂO

Pantorrilhas, pantorilheiras, pantorilheiras
Pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas
Pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas -
Pantorrilha:
Pantorrilha, pantorrilha, pantorrilha

Pantorrilhas, pantorrilhas, pantorrilhas.

...

Ferdydurke


Um livro burlesco, satírico, experimental e iconoclástico do mais original escritor polaco do século XX, Witold Gombrowicz (1904 - 1969), autor de livros marcantes como "Cosmos" e "A Pornografia".

Józio é o herói desta insólita trama "Gombrowisquiana". Tendo completado trinta anos e renunciado abandonar a sua imaturidade, acaba por ser raptado pelo seu ex-professor, que após um superficial exame de latim e sobre advérbios, obriga-o a voltar aos bancos da escola dum liceu conhecido pela excelência dos seus professores e pelo modernismo dos seus métodos. O absurdo da circunstância exige da sanidade do protagonista uma contínua adaptação ao surrealismo das situações que se sucedem umas às outras.

Mas em reacção, o tornado infantil Józio, disseca todo o processo colocando a nu o ridículo dos condicionamentos subjacentes à norma social relativamente à vida quotidiana, às relações de classes, às obras-de-arte, à etiqueta, à moralidade, à sexualidade e às mentiras culturais engendradas pela ideologia e pela inteligentsia de serviço. E tudo isto numa linguagem satírica de grande originalidade, que cria situações absurdas e hilariantes, que descreve os personagens arquetípicos com um escárnio feroz e reduz ao ridículo as atitudes ditas modernas (hoje seriam pós-modernas) e os tiques mentais dos agentes da cultura oficial em todas as suas vertentes.

Uma leitura refrescante e libertadora.

Também digna de nota é a qualidade extraordinária da tradução levada a cabo por Maja Marek e Júlio Carmo Gomes directamente do polaco.

Orfeu B.



quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A CRISE NA LITERATURA ou A LITERATURA DA CRISE



Camilleri foi autor de guiões para televisão e de uma série de romances de cariz policial que tem como personagem principal o inspetor Mantalbano (cujo nome é óbvia homenagem ao escritor catalão Manuel Vasquez Montálban, por sua vez autor das aventuras do detetive particular Pepe Carvalho).

A escrita de Camilleri é ligeira, rápida , recebendo obviamente a influência da escrita para televisão e cinema. Uma ou duas pinceladas breves dão-nos a personagem. Não se perde na volta da palavra. Investe na situação, Avança na narrativa. Não dá muito descanso a quem lê.

Este romance é muito apropriado a estes tempos de crise. Passa-se em Itália, entre gestores, directores e administradores de um grande grupo económico.

Estas personagens vivem mergulhadas numa girândola de golpes e contra-golpes, corrupção, mentiras, ausência absoluta de valores éticos, jogo de influências, violência, traições, baixa política, promiscuidade a todos os níveis, sexo obsessivo.,

Explicado com clareza temos aqui um retrato cru e frenético do neo-liberalismo (especificamente do italiano no caso) e do desastre a que tem conduzido as economias ocidentais.

Por aqui se movem as personagens belas e elegantes mas grotescas e repelentes que conduzem a acção e onde até, por vezes, se tornam em vítimas das suas próprias maquinações.

Camilleri leva-nos rápida e facilmente nas asas da sua escrita e nós agradecemos a boleia.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

The Anglo Portuguese News



Arcádia

Notícia de uma Família Anglo-Portuguesa

Ana Vicente

Editora Gótica


O primeiro livro de Ana Vicente que me chegou às mãos era para crianças, chamava-se “O H Perdeu a Perna” e tinha ilustrações de Madalena Matoso. Talvez por associação à Madalena e pela frescura da história imaginei a Ana uma jovem moça. Algumas trocas de mails depois, desfeito o equívoco, descobri-a dona de uma já longa vida e rica de múltiplas actividades. Uns tempos depois foi publicado este: “Arcádia - Notícia de uma Família Anglo-Portuguesa”, estávamos em 2006. Hoje, ainda não nos conhecemos pessoalmente, ela já editou mais livros para crianças e a Gótica, que editou este, já não existe. Recentemente chegou-me o convite para o lançamento de um outro, na minha lista de leituras futuras: “Memórias e Outras Histórias”, uma edição Temas e Debates/Círculo de Leitores. E eu voltei a Arcádia de cuja leitura guardo excelente memória.

A história, a das vidas de Luiz de Oliveira Marques e Susan Lowndes, pais de Ana vicente, leva-nos numa longa viagem no tempo entre Portugal e Inglaterra atravessando a vida da família durante cerca de oito décadas.

A escrita, resultante de uma detalhada pesquisa de correspondência e testemunhos de pessoas que privaram com o casal, decorre num tom muito suave. Ana Vicente conduz-nos, sem se interpor mas também sem ser asséptica ou destituída de sentimento, num registo de memórias que é, aliás, uma tradição quer do lado inglês, quer do lado português desta família.

Susan e Luís conheceram-se no Hotel Inglaterra, no Estoril, quando Susan passava férias em Portugal. A mãe dela tinha ficado em Inglaterra a terminar mais um livro. Marie Belloc Lowndes era autora de policiais. Um dos seus livros, “The Lodge”, foi várias vezes adaptado para cinema, uma das quais por Alfred Hitchcock, ainda no tempo do cinema mudo.

Luiz tinha vivido doze anos em Inglaterra, primeiro como estudante e depois trabalhando no Banco Nacional Ultramarino. Começara a trabalhar quando o seu pai sofre a crise da queda do escudo, em 1921, após ter gasto mais de duzentos contos na construção de um palacete de habitação, escritório, armazém e rendimento na Calçada de Santos, e deixa de lhe poder enviar a regular a mensalidade.

Quando se conheceram, corria o ano de 1938 e Luiz Marques era director do APN (The Anglo Portuguese News), o primeiro número do jornal, saído a 20 de Fevereiro de 1937, custava 1 escudo (o Diário de Notícias era vendido por 50 centavos). O APN, jornal quinzenal, foi uma importante referência para toda a comunidade inglesa em Portugal.

Susan e Luiz namoraram por carta criando aí espaço para a emoção e hesitações sobre as mudanças que seriam necessárias para uma vida em comum. E por carta combinaram os preparativos do casamento que aconteceu em Londres, quatro meses depois do primeiro encontro.

Escreve Luiz: “Minha querida, dei um passo momentoso. Aluguei uma casa. Trata-se definitivamente de andar ideal e por isso achei que não devia perder esta oportunidade. É o primeiro andar de um prédio muito antiquado (…)A renda é de 545 escudos, pouco mais de 4 libras o que eu acho barato (…)” Este primeiro andar de um prédio na Rua José Fontana, nº12 virá a ser a casa da família.

Susan escreve no comboio a caminho de casa de uns amigos: “Gostei imenso das fotografias, em particular de ti em bebé. Espero que o nosso seja parecido. Os Pinney querem emprestar-nos a casa para a lua de mel. Acho que vais gostar. Fica no condado de Dorset, a a cerca de seis milhas de Bridport, onde podemos ir ao cinema(…)”

Susan dizia de si: “nasci e cresci londrina numa família muito dedicada às letras . Vivíamos no bairro de Westminster, ali à sombra da abadia , ao nº 9, Barton Street. Era como uma aldeia no coração de Londres.“ O seu pai propôs-lhe estudar em Oxford o que ela recusou, lamentado mais tarde tal recusa. “Eu pertenci à última geração de raparigas que não estavam preparadas nem tal lhes era pedido, para ter uma carreira profissional autónoma.” No entanto foi uma mulher independente e activa, estranhava que as mulheres da família do marido fossem apenas mães e esposas, e trabalhou, ao lado do marido, na redacção do APN. O jornalismo foi a principal actividade do casal.

Apesar de Susan nunca ter aprendido a falar ou a escrever português correctamente, as suas conversas intelectuais decorriam sempre em inglês, isso nunca a impediu de se relacionar. Era uma mulher que convocava muita simpatia e sempre disponível para ajudar e intervir civicamente. Um traço que, por certo, influenciou a filha.

Acompanhamos as notícias do rebentar da Segunda Guerra. É muito interessante o relato dos comentários e preocupações de quem está em Lisboa, dos refugiados e dos seus familiares durante os bombardeamentos de Londres e de todas as complicações da guerra.

São inúmeros e deliciosos, ao longo do livro, os registos de cumplicidades, detalhes do quotidiano revelando planos, custos, dificuldades da vida. Alguma contenção e austeridade apesar da posição social correspondente às famílias de ambos.

No Verão de 1940, no mesmo ano em os Duques de Windsor passam por Lisboa, Luís Marques comparece na conferência de imprensa, como jornalista, alugam, por 15 libras, durante dois meses e meio, uma casa em S. Pedro de Sintra, com um grande alpendre, jardim e, o que era raro, esgotos. Quando o gato, Titus, morre Susan recebe uma carta de pêsames pelo passamento do bichano.

No Verão de 1947 Susan e uma amiga, Ann Bridge, dão a volta a Portugal num automóvel. Duas mulheres a viajar sozinhas não era comum na época. Desse périplo resultou um livro que foi, originalmente, publicado em 1949 e diversas vezes reeditado. “The Selective Traveller in Portugal”. Nunca houve referência a esse livro na imprensa portuguesa ou interesse de alguma editora e só recentemente foi publicado no nosso país, numa edição da Quidnovi: “Duas Inglesas em Portugal”, um excelente e rigoroso roteiro da época, de locais e de mentalidades, e ainda actual em alguns lugares.

Passamos pelos anos 50 quando toda a roupa de menina ou senhora era confeccionada por medida depois de aturadas provas, pelos momentos de nascimento dos filhos, viagens e relatos de pessoas e acontecimentos que vão passando pelas suas vidas.

Nem Susan nem Luiz escreviam diários mas organizavam a sua vida em agendas onde anotavam todos os seus inúmeros compromissos sociais. Tiveram uma vida social muito preenchida. Eram ambos crentes e praticantes. Susan escrevia em cada agenda, em cada ano: “Sou Católica. Em caso de acidente é favor mandar vir um sacerdote.”

Luís é conceituado como tradutor “capaz de traduzir poemas de Chaucer para português medieval fazendo-o rimar”. Um dia tendo uma dúvida numa tradução telefona a um amigo, Director da Biblioteca Britânica, que promete fazer uma pesquisa e telefonar depois. Passado algum tempo Luiz Marques recebe um telefonema da Embaixada Britânica colocando-lhe uma questão e exclama desesperado: “mas sou eu que tenho essa dúvida!”

Luís, faleceu a 1 de Outubro de 1976. Muitas cartas chegaram testemunhando a perda de uma excelente pessoa. Susan escreveu: “o nosso casamento foi muito forte e durou quase 40 anos”

Susan continuou a coordenar a edição do APN, com ajuda da sua secretária Maria Luísa Ferreira. Fizeram-se várias exposições sobre o jornal, considerado uma fonte para a história da comunidade inglesa durante segunda Guerra Mundial. O jornal foi comprado por Nigel Bartley, em 1979 e só chegou ao fim em 2002.
Susan morreu a 3 de Fevereiro de 1993. Um artigo de Francisco Hipólito Raposo intitulado: "Goodbye, Mrs. Lowndes" enaltece a sua vida, sensibilidade, interesses e humor.

Um livro de leitura, indubitavelmente, útil e muito agradável atravessando a história desta família, vivendo na sua “Arcádia”: essa região da Grécia Antiga onde os habitantes viviam um contentamento inocente.
No meio dos problemas da vida e do quotidiano a invejável ventura de uma relação de mútuo afecto, respeito e atenção ao próximo.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

À BEIRA DO ABISMO



Creio que terá sido lá pelos 12 anos que vi NO CINEMA "THE BIG SLEEP" ("À Beira do abismo").

Não nasci no tempo da televisão. Já tinha 10 anos quando o pequeno écran começou a entrar pelos cafés e pela casa dos mais abonados. Dava para ver o Eusébio, o Festival da Canção e o Villaret.

Mesmo assim, andei pouco pela televisão. Cresci com cinema. A partir dos 10 na Promotora, cinema de reprise no Largo do Calvário, Lisboa. Ao fim-de-semana e nas férias. Dois filmes pelo preço de um.

Depois fui alargando pela cidade. Muitas vezes sozinho, corri quase todos esses deliciosos cinemas, O "Palhinhas", o Paris, o Chiado-Terrace, o Lys, etc, etc.

Vi de tudo. Filmes americanos dos anos 40 e 50, mexicanos de fazer chorar as pedrinhas da calçada ("La Nobia" foi demais), cow-boys a granel, filmes históricos, de guerra, musicais, de polícias e ladrões, comédias com o Jerry Lewis, o Cantinflas, M. Hulot... Sei lá, sei lá que mais.

Julgo que vi o "THE BIG SLEEP" antes de ter lido o livro.



Depois li-o várias vezes na vida. A primeira deve ter sido na velha colecção vampiro. Depois, volta e meia, lá vai. Editado vezes sem conta, a última pelo Jornal o Público, não sei se li todas as traduções e todas as edições mas devo ter andado lá perto.



Chandler seguiu o estilo de Hamett. Ou terá sido o contrário? Fui ver as datas. Primeiro "A relíquia Macabra". Sam Spade. Philip Marlowe é o seu émulo.

No entanto, na minha memória, os dois têm a mesma cara, o mesmo jeito, a mesma forma única de conviver com as sombras do perigo: falo de Humphrey Bogart que mais do que Spade ou Marlowe será sempre para mim o Rick de Casablanca.



Ambos os autores trabalharam sobre uma figura de detective duro e solitário, cínico e íntegro, senhor do seu nariz, capaz de dizer que não às mais fantásticas loiras platinadas ou às carteiras mais bem recheadas, de conduzir um raciocínio para lá da nossa inteligência envergonhada e de despachar em menos de nada os mais terríveis assassinos.

É o romance negro, modelo de uma América cheia de podres mas também de gente que não precindia dos valores. Uma América onde os gangsters dominavam as ruas e os escritores iriam ser encostados à parede pelos esbirros dessa figura sinistra que foi o Senador McCarthy.

Volto sempre a lê-los com emoção e com a noção de que estes romances trabalham sobre alguma tipicação simplista mas a verdade é que, quando lhes pegamos só os largamos no fim.


sábado, 1 de outubro de 2011

DO PRAZER DA ESCRITA AO PRAZER DA LEITURA



Devo confessar que sou, leitor atento e agradecido do Afonso Cruz.

Ilustrador, músico, agricultor e escritor, senhor de uma cultura sólida em vários domínios, da literatura e da filosofia a muitos outros domínios, o Afonso é daquelas pessoas para quem uma vida só é curta para o muito que tem para dizer e fazer.

Conhecemo-nos de raspão, cruzámo-nos 2 ou 3 vezes, temos um livro em comum. Não me canso de recomendar os seus livros aos meus amigos desde o primeiro que foi "Os livros que devoraram o meu +pai".

A primeira coisa que salta da leitura dos seus livros é o prazer de escrever em Afonso Cruz, aliado ao gosto de fintar o leitor, abrindo sucessivos alçapões em que mistura citações reais com outras inventadas, personagens da História com outros de ficção e ainda alguns retirados de ficções alheias como é o caso de Helen e Schwartz saídos de "Uma noite em Lisboa" de Erich Maria Remarque, que se cruzam com o pintor Joseph Sors, a personagem central desta novela que se inspira, por sua vez, numa personagem real de que o autor diz pouco saber e que terá sido um judeu refugiado em casa de seus avós durante a 2ª Guerra Mundial.

Sors é uma personagem sui generis, um pintor que pinta olhos. Olhos fechados e olhos abertos. E que reflecte sobre o desenho, a arte e a vida de forma muito particular como na altura em que fala de:

"... um plátano que se despia no Inverno como se o frio lhe fizesse calor."

A aparente "naifeté" desta escrita resulta de uma sólida cultura literária, filosófica e artística e de um raríssimo sentido de ironia como na voz de uma personagem que afirma que:

"... que a metafísica sem duas pessoas a gritar não passa de ciência exata como a matemática".

Do prazer da escrita ao prazer da leitura vai um passo. Digo eu. E se esta afirmação pode nem sempre ser verdade, neste caso é-o plenamente.

domingo, 25 de setembro de 2011

Verdade e Política

Da genial filósofa Hannah Arendt (1906 – 1975), autora do monumental estudo “As Origens do Totalitarismo” de 1951, do controverso “Eichmann em Jerusalém: um relatório sobre a banalidade do mal” (1963), a “Crise da Cultura” (1972), entre tantos outros títulos, este surpreendente opúsculo de 1968, que impressiona pela lucidez da análise e pela actualidade do tema.

A problemática é-nos introduzida sem ambiguidades:

"O objecto destas reflexões é um lugar comum. Nunca ninguém teve dúvidas que a verdade e a politica estão em bastante más relações, e ninguém, tanto quanto saiba, contou alguma vez a boa fé no número da virtudes politicas. As mentiras foram sempre consideradas como instrumentos necessários e legítimos, não apenas na profissão de politico ou demagogo, mas também na de homem de estado. Por que será assim? E o que isso significa no que refere à natureza e à dignidade do domínio político, por um lado, e à natureza e à dignidade da verdade e da boa-fé, por outro? Será da própria essência da verdade ser impotente e da própria essência do poder enganar. E que espécie de realidade possui a verdade se não tem poder no domínio público, o qual, mais do que qualquer outra esfera da vida humana, garante a realidade da existência aos homens que nascem e morrem - que dizer, seres que sabem que surgiram de não-ser e que voltarão para aí depois de um breve momento? Finalmente, a verdade impotente não será tão desprezível como o poder despreocupado com a verdade?”

Reflexões que suscitam a inevitável pergunta: Estão os políticos comprometidos com a mentira como estão os filósofos com a verdade? Esta e outras questões relacionadas com a manipulação da verdade factual, prática comum nos regimes totalitários, são brilhantemente discutidas neste breve ensaio. Uma preciosidade. E muito útil nos dias que correm.

Orfeu B.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CONTOS DE JOSÉ CARDOSO PIRES, 30/40 ANOS DEPOIS - UM COMENTÁRIO APENAS


Há 30/40 anos, li, pela primeira vez, um livro de José Cardoso Pires, “Jogos de Azar”. E voltei a lê- lo há pouco, agora numa edição da Leya, de 2011. É uma colectânea de onze contos, recolhidos de dois livros do autor, publicados nos anos 50 e nos anos 60 do século passado. Dessa primeira leitura guardo uma memória precisa: era algo de novo, que me impressionou bastante, tanto pela forma como pelo conteúdo. Essa primeira impressão foi corroborada e ampliada pela leitura de outras obras do autor: “Balada da Praia dos Cães, “Alexandra Alpha”, por exemplo.
Por isso, foi com curiosidade que iniciei a releitura dos “Jogos de Azar”. Os contos nele incluídos teriam resistido aos efeitos de um dos tempos mais cruéis que conheço, o tempo literário? A resposta não é clara: por um lado, sim; por outro, não. Sim, pela beleza da escrita, feita de rigor, imaginação e criatividade. Não, pelos temas tratados. Temas que , de um modo geral, podemos situar no âmbito de um “neo-realismo urbano”, em voga nos meados do século XX e que já pouco nos diz nestes primeiros anos do século XXI. “Amanhã se Deus quiser”, “ Dom Quixote, as Velhas Viúvas e a Rapariga dos Fósforos”, “ Ritual dos Pequenos Vampiros” são alguns dos exemplos do que acabo de dizer. Em todos eles, a mestria da escrita e da construção da história atinge um fulgor extremamente raro na nossa ficção literária da segunda metade do século XX ( e não me estou a esquecer de Saramago nem de Lobo Antunes). Mas neles também se notam as marcas de um neo-realismo social característico de certos meios urbanos, em que a miséria e a morbidez dos ambientes e dos que neles vivem contrastam com a pureza, a ingenuidade de certas personagens que neles dificilmente vão sobrevivendo.

sábado, 17 de setembro de 2011

O AMOR, A GUERRA, LISBOA



Nasci em 51. Tinha um irmão muito mais velho e um pai militar. Deles encontrei pela casa inúmeras imagens de aviões, tanques, batalhas, bombardeamentos em postais, revistas, reportagens sobre a 2ª Guerra Mundial. Nos anos 50 essas memórias de pavor e talvez de algum fascínio ainda estavam muito vivas.

Mais tarde, aluno do Colégio Militar, voltei à iconografia e aos romances que davam testemunho não só da 2ª Guerra como da guerra da Indochina.

Entre os vários escritores que li na adolescência, Erich Maria Remarque foi uma das leituras de primeira linha.

A ele regressei para ler este seu romance já com várias edições em português e agora reeditado de novo pelo Público na excelente colecção dos escritores famosos que não tiveram o Prémio Nobel.

O autor, alemão, combateu na 1ª Guerra Mundial e dessa experiência extraiu a matéria para o seu mais famoso romance "A Oeste nada de novo".

O nazismo baniu a sua obra e queimou os seus livros e Remarque fugiu percorrendo vários paísses até chegar à América onde viveu o resto da sua vida.

"UMA NOITE EM LISBOA" é o longo monólogo de um homem que oferece a outro a salvação (dois bilhetes para a América) com o único preço de ouvir a sua história.

O narrador é também o "ouvidor" de uma fantástica história de amor, melodrama levado ao extremo, igual a tantos que terão acontecido nos tempos terríveis dos tempos II Guerra Mundial.

É uma história cheia de palavras, de voltas e viravoltas, de dúvidas e devoção amorosa sem limite, de perda de identidades que se desenrola com a sombra da noite de Lisboa em fundo.

Haverá por aqui muito da experiência do próprio autor. A cidade natal do protagonista é a de Remarque, muito do percurso na fuga do personagem até chegar a Lisboa coincidirá porventura com o do autor.

A literatura é isto também. O sarro que fica de um tempo que ainda produz filhos sinistros (veja-se o caso do monstro norueguês) e cujos relatos continuam a fazer-me tremer e me deixam ainda mais irritado com caricaturas simplistas, equívocas e grosseiras como a de Tarantino nos "Sacanas sem lei".

É claro que literatura não tem que ser retrato da realidade. Mas não pode ser traição à realidade. E foi nesse digno ofício de respeito pela realidade que Remarque trabalhou e nos deixou páginas que vale a pena revisitar.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

GOLPE SOBRE GOLPE



Na linha de Le Carré, Boyd conduz a acção no fio da lâmina, golpe sobre golpe, criando uma história verdadeiramente inquietante, numa sequência imparável de obstáculos à busca da verdade por parte do personagem principal, Adam, que se viu envolvido num assassínio com que não tem nada a ver e que acaba perseguido pela polícia e por um mercenário encarregue por uma grande empresa de o encontrar e matar.

O livro lê-se de um fôlego. Talvez o ritmo trepidante quebre no último terço ou então deveria o autor terminar a narrativa um pouco mais cedo.

O fulcro da questão é uma multinacional farmacêutica que pretende lançar um remédio supostamente revolucionário para a asma, escondendo o facto de que os últimos ensaios foram negativos e contam-se inúmeros casos de crianças que morreram após tomar o remédio.

Adam, jovem e brilhante especialista em climatologia, tem duas hipóteses: entregar-se ou não se entregar à polícia. E esta alternativa vai determinar toda a acção.

Resolve não se entregar e desaparece. Torna-se num sem abrigo, num não-existente, e vai aprender a sobreviver na grande cidade de Londres sem identificação, sem comunicações, sem dinheiro nem cartões de crédito.

Sofre os truques duros da vida sombria das zonas negras da cidade. Mas descobre também o amor quando se apaixona pela prostituta que começa por assaltá-lo e agredi-lo.

Quando a vida miserável dos dois e do filho dela começa a tornar-se de alguma forma consolador e confortável, o perseguidor encontra-lhes o rasto e mata-a.

Adam, no entanto, segue em frente. A partir de pequenos pormenores vai reconstruindo uma nova dida.

O autor mostra como um homem que sabe e está habituado a pensar é capaz de sobreviver, de elaborar informação, de usar a seu favor as mais dramáticas contrariedades.

Adam, o sem nome e sem abrigo arranja um nome falso, documentos, e começa a institucionalizar-se embora sempre numa espécie de clandestinidade. Arranja uma nova personalidade. Volta a apaixonar-se, agora por uma polícia a quem não se revela. Arranja casa e emprego no hospital onde morreram as crianças afectado pelo remédio contra a asma. Vasculha o registo informático dos testes e as circunstâncias das mortes.

Finalmente, com a ajuda de um jornalista especializado em remédios e farmacêuticas, Adam consegue desmascarar a multinacional e resolver a questão do assassinato e impedir a empresa a novos testes ao remédio e, assim, adiar os esperados milhões de lucro.

É claro que apenas se arranhou a superfície dos interesses económicos que tudo justificam em nome do lucro.

O romance tem como pano de fundo o retrato do ultra-liberalismo que comanda o mundo em que vivemos.

Várias vezes ao longo da leitura me veio à memória “O fiel jardineiro” de Le Carré. É a mesma problemática embora na arte da narrativa, Le Carré seja um mestre difícil de igualar.


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

ALBANO ESTRELA - 7LEITORES EM LIVRO



O blog 7leitores dá mais um passo. Ou melhor, dá o seu primeiro livro. É do Albano Estrela que foi o primeiro companheiro deste blog e talvez o mais entusiasta. Reuniu parte dos seus comentários aqui publicados e juntou-os num livro onde encontramos com mais facilidade a linha que os une e que é a do olhar sábio de um professor com que todos temos muito a aprender.

Pediu-me (por gentileza mais do que por mérito que eu possa ter) para lhe fazer o Prefácio. Aqui está ele:


"A ARTE DE SER LEITOR

Na elaboração dos seus direitos do leitor, Daniel Pennac incluiu o direito de não falar do que se leu. Esses direitos, que tanto sucesso conheceram, constituirão sobretudo uma crítica à forma conservadora e instrumentalizante de abordar a leitura em âmbito escolar.
Em última instância, creio que o pensamento de Pennac insere-se na corrente dos que entendem que colocar a tónica na interpretação pode matar o prazer da leitura entre os jovens.
Quem gosta de ler constrói a sua própria oficina de interpretação. Pelo contrário, são muitos os casos em que a promoção da leitura vira as costas ao afectivo e ao lúdico e reduz-se a um exercício quase abstracto de interpretação. Esse excesso e esse carácter abstracto da interpretação coloca-nos no compartimento da mais estreita mecânica escolar e pode conduzir à ausência de prazer na leitura.
Voltemos, assim , a Pennac que nos “concedeu” o direito a não falar do que lemos. Temos esse direito, sabemos que o temos e, no entanto, os verdadeiros leitores, os leitores obsessivos, gostam de falar dos livros que acabaram de ler. Mais do que isso: precisam de contaminar as pessoas à sua volta com o vírus dessa paixão feita vício que é a leitura.
Confesso que sou um desses viciados. Preciso de falar dos livros que leio durante a leitura, depois da leitura e, por vezes, muito depois dela.
Conheço outros assim. Amigas e amigos com quem a conversa, quando nos cruzamos, começa invariavelmente por: O que é que andas a ler? Já leste este ou aquele autor? E aquela personagem, não é fantástica? E aquela descrição de uma cidade? E aquela viagem? E, e, e…
O primeiro de todos é o meu muito querido amigo e mestre Albano Estrela. Um dia desafiei-o a ele e a outros para fazermos um blog que veio a intitular-se 7leitores. Trata-se de um espaço onde damos conta dos livros que lemos e partilhamos reflexões, ideias, apontamentos que nos foram acontecendo ao logo da respectiva leitura.
O blog já leva quase 2 anos e os 7 leitores já são mais. Gostava de encontrar uma designação que nos coubesse bem. Estamos longe de ser grandes leitores como Alberto Manguel, Georges Steiner, Umberto Ecco ou Jean-Claude Carriére.
Seremos talvez uns pequeninos grandes leitores. Isto é, pessoas que fazem da leitura uma actividade fundamental do seu quotidiano e da construção da sua sempre imperfeita humanidade.
O leitor que somos não é um crítico, nem um catalogador, nem um patologista clínico da leitura. Não tem contas a ajustar com os autores. Não pertence ao negócio mais ou menos bilioso da construção e destruição de prestígios literários.
Regra geral, o leitor que somos não tem tempo para falar dos livros que lhe desagradam. Está demasiado absorvido por aqueles outros que lhe abrem caminhos, que o fazem voar, que lhes mostram novas formas de olhar o mundo por fora e por dentro de si, que lhe acendem uma luz no coração.
Um leitor precisa sempre de quem o leve pela mão. Já leste o David Toscana? E o Bartleby de
Melville? É preciso revisitar o Chesterton. Vale a pena dar uma vista de olhos pelos policiais
suecos? E a última tradução do Tolstoi! E os portugueses, tantos, do Eça ao Raul Brandão, do
Saramago ao Miguel Real, da efervescência do Lobo Antunes à prosa fantástica do Mário de
Carvalho!
Este levar pela mão é sempre mútuo e resulta de um processo em que as referências se atropelam quase ofegantemente e saltam umas por cima das outras porque vício é vício e nem o dobro dos anos de vida nos permitiria ler tudo o que já acumulámos nas prateleiras abarrotadas das leituras urgentes.
Ao longo dos anos que dura a amizade que lhe agradeço, Albano Estrela tem-me levado pela mão nos caminhos da leitura e dos livros. Fez-me ter atenção a Buzatti e a Papini, à micro-literatura ibérico-americana, os contos de John Cheever e a tantos outros autores e livros. Agradeço-lhe do fundo do coração.
Acima de tudo há que dizer que Albano Estrela é um mestre na ARTE DE SER LEITOR que, como todos os verdadeiros mestres, nunca se põe em bicos de pés. Exerce a sua mestria com uma generosidade e uma discrição invulgares.
Neste livro, Albano Estrela reúne e partilha as suas reflexões de leitor, por vezes inesperadas, sempre sagazes, luminosas e apaixonadas.
Quanto a nós, os que temos a sorte de conviver e aprender o Albano Estrela temos de lhe agradecer comovidamente estes textos e, já agora, de perguntar-lhe: Ó Albano, o que é que está a ler agora?”


domingo, 4 de setembro de 2011

UMA CAIXINHA DE HISTÓRIAS



Dizia-me a editora Piedade Ferreira há poucos dias que algumas editoras publicam demasiado cedo autores que só mais tarde começam a cair no goto do público e no da máquina publicitário/crítica que promove alguns autores e ignora outros sem razão aparente que não seja a ignorância.

Deu-me a Piedade como exemplo os dois magníficos romances que publicou na Quetzal há 15/20 anos de Hernán Rivera Letelier,autor que só agora se tornou referido e sublinhado mas que foram então foram um fracasso na época e que aparecem a pataco por aí nas feiras do livro barato.

A Cavalo de Ferro tem feito um trabalho notável de divulgação de escritores de literaturas menos divulgadas em Portugal. E entre vários conta-se Ivo Andric, nacido de família croata na Bósnia, diplomata e Prémio Nobel em 1961.

Esta sua pequena novela é passada no pátio de uma terrível prisão turca, em Istambul. Em redor estão as celas que em cada manhã atiram para o pátio uma variado e muito sui geris grupo de prisioneiros que vivem durante o dia no pátio onde conversam, brigam, jogam e contam histórias.

Naquele pátio maldito onde um director exerce o poder sem peias e de forma muito própria, cruzam-se assassinos, ladrões, aldrabões, inocentes, ignorantes da sua culpa, gente da mais baixa condição social e senhores de hábitos de grande sofisticação.

Aqui se sussurram ou gritam as histórias reais dos presos, as memórias, invenções, mentiras, acusações, delírios, mitos e ficções que cada preso inventa para poder sobreviver e afirmar-se perante os outros.

Neste ambiente inquietante, as histórias quase que trepam umas por cima das outras, envolvem-se, repetem-se em versões novas, divergindo e convergindo numa girândola imparável.

Este pátio e esta história podiam ser uma espécie de mil e muitas mais noites, uma caixinha sempre pronta a deixar sair mais uma e outra história.