segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

“Não quero ser uma árvore, quero ser o seu significado.” Orhan Pamuk



Do Longe e do Perto

Quase-Diário

Yvette K. Centeno

Editora Sextante


“Do Longe e do Perto Quase-Diário” é um livro de Yvette Centeno, senhora dona de uma bela voz literal e literariamente falando, que se lê como um passeio pelos campos. Campos de erva, arbustos, árvores, flores, numa desordenada ordem ou numa ordenada desordem. É leve e profundo e fresco

“No Outono já sei o que quero fazer. Plantar. Romãzeiras perto da casa.”

Gosto desta ideia, nos dias de todas as queixas, plantar árvores. Uma ideia de futuro, símbolo de esperança e de paciência para esperar os frutos.

Há neste livro o retrato do nosso mundo de hoje, um mundo de lonjuras que virtualmente ficam próximas e de proximidades que não sabem como vencer a distância de um olhar.

Andamos, como há mil anos, a aprender a arte da vida usando equações que têm cada vez mais incógnitas. Os resultados, nunca exactos, são o olhar e o sentir de cada um.

Há rituais que sabem bem, como este onde me cruzei com este livro e com a sua autora, as Correntes d’escritas, na Póvoa de Varzim, doze anos a crescer e, mais que isso, a consolidar uma ideia de celebração do que é a nossa mais profunda humanidade: a palavra e os mundos que ela constrói para serem habitados dentro do nosso. As palavras com que celebramos o brilho dos olhos dos amantes e a magnitude das estrelas.

“O Sol renova os dias, mas os dias não me renovam. Virou-se a página sobre quantas folhas passadas sobre quantos livros lidos que me fariam falta. São livros que guardam os segredos da alma, ficarei sem os saber”.

Sempre que abrimos um livro e nele encontramos uma alma que nos segreda ficamos redimidos por aqueles que ainda não visitámos.

Gosto de ler mas não vou a correr ler outro, vou ficar mais um tempo a reler este: quase-diário, do longe e do perto, da vida e do tempo solar e lunar de que somos feitos, na exacta medida do coração para o qual se inventaram as romãs. Para, calma e pacientemente, bago a bago, ensaiar arte do amor.

Sílvia Alves

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A Máquina do Mundo Repensada





I

...

de mágico pelouro por inteiro
o pasmasse: já o poeta drummond duro
escolado na pedra do mineiro

caminho seco sob o céu escuro
de chumbo - cético entre lobo e cão -
a ver por dentro o enigma do futuro

incurioso furtou-se e o canto-chão
do seu trem-do-viver foi ruminando
pela estrada de minas sóbrio chão

- e todos: camões dante e palmilhando
seu pedroso caminho o itabirano
viram no ROSTO o nosso se estampado

minto: menos drummond que ao desengano
de repintar e neutra face agora
com crenças desepultadas do imo arcano

desapeteceu: ciente estando embora
que dante no registo do íris no íris
viu - alcançando o topo e soada a hora -

...

II

...

galileo - aquele que heliocentra
o sistema - chegou depondo a terra
do seu trono senil que só sustenta

uma ciência obsoleta: o sábio a exterra
e faz descer na escala de grandeza:
ei-la - abatido o orgulho - feita perra

que lambe o hélios-sol (sem realeza)
o rastro do rei-posto (subalterna) -
e depois newton vem: a maça (reza

a lenda) cai-lhe aos pés - maga lanterna
vermelha - da alta rama e ao intelecto
pronto lhe ensina a lei (à queda interna)

da gravidade inscrita no trajecto
dos corpos mais pesados do que o ar
por amor-atração sempre que o objecto

se precipite e tombe sem cessar
- lei universal seja aos mais pequenos
seja aos maiores corpos a ordenar

...

III

com esse paradoxo encerro a glosa
que entreteci à borda do caminho
da física evoluindo: deixo a prosa

ou relação de meu descaminho
para tentar erguer-me até o mirante
de onde a gesta do cosmos descortino:

no imaginar me finjo e na gigante
lente de um telescópio o ollho colando
abismo - apto a observar o cosmorante

berçário do universo gerando:
gerando aqui o big-bang - o começo(?)
de tudo - borborigma esse ur-canto

...

camões ao bravo gama todo-audácia
a máquina do mundo fez abrir -
não desenhou a nauta desta graça

e seguiu deleitoso a descobrir
o que não pode ver a vã ciência
dos ìnferos mortais: por um zefir

pôs-se a descortinar na transparência
o ptolomaico engenho de onze esferas
na na terra tem centro e pertinência

...

finjo uma hipótese entre o não e o sim?
remiro-me no espelho do perplexo?
recolho-me por dentro? vou de mim

para fora de mim tacteando o nexo?
observo o paradoxo de outrossim
e do outronão discuto o anjo e o sexo?

O nexo o nexo o nexo o nexo e nex


A Máquina do Mundo Repensada


Um livro de grande beleza do poeta, crítico, tradutor e professor brasileiro Haroldo de Campos (1929-2003), figura central da dita "poesia concreta". O movimento, que tinha ligações com o europeu (poesia concreta/konkrete poesie/concrete poetry), surgiu no Brasil em 1956-1957, através do grupo "Noigandes", título da revista que era o seu meio de expressão. O movimento brasileiro tinha uma vertente paulistana (oriundo da cidade de São Paulo, capital do estado de São Paulo) representada por Haroldo, seu irmão Augusto de Campos e o poeta Décio Pignatari, e uma corrente "carioca" composta por Wlademir Dias Pinto, Ferreira Gullar (Prémio Camões 2010) e Ronaldo Azeredo. Razões ideológicas deram origem à secessão do grupo carioca, que subsequentemente se auto-intitulou de "Neoconcretos". A poesia concreta caracteriza-se marcadamente pelo minimalismo linguístico e pela distribuição espacial não trivial e criativa das palavras, vocábulos e fonemas. Há inúmeros exemplos de grande beleza como os que reproduzimos abaixo e que são da autoria de Haroldo e Augusto de Campos, respectivamente.





Haroldo de Campos foi também um tradutor de excelência, responsável pela tradução para o português de vertente brasileira de obras fundamentais da literatura universal como a Ilíada de Homero, a prosa de Joyce, a poesia de Mallarmé. Nos seus últimos anos almejava apresentar ao público uma tradução integral da Divina Comédia de Dante. A sua sensibilidade e criatividade de poeta eram visíveis nas suas soluções de tradução e levaram Umberto Eco a afirmar que o poeta brasileiro era o melhor dos tradutores de Dante no mundo.

A Máquina do Mundo Repensada (2000), é segundo o seu autor, um livro que resultou da leitura dialogal da Divina Comédia de Dante, dos Lusíadas de Camões, e da Máquina do Mundo de Carlos Drummond de Andrade, para além de livros de divulgação de astronomia, cosmologia e física.

Digna de menção é também a edição brasileira (Ateliê Editorial) deste magnífico livro, na qual o prazer da linguagem é multiplicado por sugestivas ilustrações da galáxia Andrómeda e dalguns belos exemplos de nebulosas. Enfim, um livro que é uma obra de arte integral.

Orfeu B.


sábado, 19 de fevereiro de 2011

A LOUCURA DOS QUE NOS GOVERNAM



Sim, quase todos nós sabemos que Hitler, Estaline, Mussolini eram loucos. Mas nem todos sabemos das enfermidades que atormentaram alguns políticos que, em certos momentos, os terão inibido de exercer as suas funções na plenitude das suas faculdades. Este terá sido o caso de John Kennedy, sofredor de muitas maleitas físicas, que ocultava recorrendo constantemente a tratamentos vários. Ora, talvez tivesse sido num momento de maior acuidade dos seus males que ordenou o disparate da invasão de Cuba, e provocado, assim, o desastre da Baía dos Porcos.

Isso e algo mais nos diz o escritor, neurologista e político britânico David Owen, na sua obra “En el poder y en la enfermedad” (edição espanhola da Siruela). Obra que vem referenciada em extenso artigo da escritora e jornalista Rosa Montero, publicado na “Babélia”, suplemento cultural de “El País”.

Artigo que me fez recordar o desequilíbrio emocional de que dava mostras um nosso primeiro ministro (Vasco Gonçalves), no período que se seguiu ao 25 de Abril. E também não pude deixar de recordar as crises de hipocondria de Salazar que, em determinados dias, lhe dificultavam o exercício do poder. E não pude ainda deixar de pensar em certos comportamentos de políticos que hoje nos governam ou nos querem governar.

Rosa Montero termina o seu artigo com a evocação da “hybris” dos gregos:
“ Segundo Ésquilo, os deuses invejavam o êxito dos humanos e enviaram a maldição da “hybris”, a doença do excesso, da soberba absoluta, da perda do sentido da realidade.” “Hybris”, doença que muitas vezes se associa a um outro desmando psicológico, “ o pensamento de grupo”. O pequeno grupo que se fecha em si mesmo, rejeitando todas as ideias, as opiniões que considere diferentes das suas.

Exemplo flagrante é o que ocorreu recentemente no Egipto, em que Mubarak, já extremamente doente, continuou a governar (com o apoio do grupo que o rodeava) contra ventos e marés, isto é, contra milhões e milhões de concidadãos que exigiam a sua renúncia ao poder.

Mas não serão apenas os políticos que são afectados por este mal. Também os intelectuais, os escritores, os criadores em geral, apresentam, muitas vezes, sinais evidentes de tal desequilíbrio. A “hybris” não escolhe profissões, classes sociais ou raças para se manifestar. Afecta, sim, todos aqueles que querem roubar, um pouco que seja, do fogo sagrado dos deuses.

Moral da história: bem- aventurados sejam os humildes, de quem as divindades nada têm a temer.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A AMANTE HOLANDESA



Há já alguns anos, um amigo holandês perguntou-me o que é que eu achava daquele grande escritor que era o Rentes de Carvalho. Devo dizer que, na altura, esse grande escritor português era-me completamente desconhecido. E até cheguei a desconfiar do entusiasmo do meu amigo holendês e que seria improvável não ter pelo menos ouvido falar de um tão elogiado escritor português.

Tenho de fazer um imenso mea culpa.

VIm a saber mais tarde que, depois de um exílio político que começou no Brasil, Rentes de Carvalho vivia na Holanda desde 1956, onde publicou vários romances com um tremendo sucesso junto do público holandês mas que o seu nome era quase desconhecido em Portugal.

Conheci-o há cerca de um ano, durante a “Literatura em Viagem”, na Biblioteca de Matosinhos. Conversámos, almoçámos e jantámos à mesma mesa. Fiquei encantado pela sua afabilidade e pelo seu brilho de palavra.

Finalmente cheguei à escrita dele. Li-o impressionadíssimo. Pela belíssima escrita, pela qualidade e pelo domínio do tempo narrativo, pelo retrato duro, intenso e arrebatador que faz de um Portugal profundo situado numa aldeia perdida no meio de Trás-os-Montes.

Dois amigos de infância reencontram-se, o professor de História e o pastor que foi emigrante na Holanda. O pastor conta-lhe a sua vida na emigração, o fascínio pela Holanda, o amor deslumbrante por uma belíssima holandesa de quem teve uma filha que lá ficou.

O professor começa a roubar ou a fazer sua a narrativa do outro e apaixonar-se pela amante holandesa do amigo. E tudo isto em longos passeios pelas encostas e penedias onde caminham e conversam.

Por razõres diversas ambos são diferentes do comum da sua aldeia. Por isso os seus conterrâneos vigiam-nos e tornam-nos em vítimas de olhares, de boatos e coscuvilhices

No entanto, debaixo da superfície daquilo que se diz no dia-a-dia de uma vida onde nada parece mudar, fica a pequenez, o azedume, o vício, a mentira, a inveja que germinam silenciosamente e que acabam por explodir numa violência desmesurada de que é máximo exemplo a cena da taberna, das mais intensas e agudas que tenho lido nos últimos tempos.

lavada a sangue a raiva, logo de seguida tudo parece ficar esquecido para se voltar à mesma rotina sempre minada e à beira de uma qualquer outra explosão.

A narrativa de Rentes de Carvalho é conduzida com um ritmo constante e controlado, dominando com eficácia o tempo com que faz surgir as surpresas que vêm rasgar uma e outra e outra vez a superfície da história e trazem um tremor crescente ao coração do leitor.


domingo, 13 de fevereiro de 2011

"A melhor coisa que há é ser criança. A segunda melhor coisa que há é escrever sobre ser criança." J.M.Barrie




“Os contos de fadas superam a realidade não por nos assegurarem que os dragões existem mas porque nos juram a pés juntos que os dragões podem ser vencidos."

G. K.Chesterton

Jardins de Kensington

de Rodrigo Fresán
Edição: Cavalo de Ferro


Robert Fresán inventa Peter Hook, um famoso autor de livros para a infância, que nos conta a sua história. Filho de um cantor de rock e de uma mãe aristocrata e hippie cresceu, em Londres,nos loucos anos 60. A morte prematura do irmão mais novo e dos pais leva-o a refugiar-se no mundo mágico de Peter Pan e à obsessão pelo seu criador, o escritor James Mattthew Barrie. Ao longo do livro as biografias de Peter Hook e de J. M. Barrie desenrolam-se como se estivessem ligados pelo mesmo destino. Confundem-se as sensações, as vidas, as leituras de Peter Hook e de Barrie; como, por exemplo, “A Ilha do Tesouro” lida por Hook , impossível,cronologicamente, de ter sido lida por Barrie. Hook assume e reage ao longo de todo o livro a esta miscelânea da sua infância com a de Barrie.

O livro é como aqueles sonhos recorrentes e complexos em que vamos acordando e sonhando acrescentando sempre algo ao interminável sonho. Ao acordar sentimos um certo desconforto de não sabermos exactamente se o sonho sonhado foi bom ou mau. Alguns detalhes são difusos e podemos depois de acordados interpretá-los à luz da razão e decidir que são maus embora no momento do sonho o não parecessem, ou o contrário. Fica-nos a dúvida se a maldade estará na nossa interpretação se no sonho.

O livro é um culminar de um aturado trabalho de pesquisa de Rodrigo Fresán sobre a vida e obra de J. M. Barrie. Mesmo que o próprio autor garanta que não foi sua intenção biografar Barrie todos os detalhes são apresentados com o rigor de quem mergulhou na vida e na obra do criador de Peter Pan, intercalando referências e reflexões extremamente interessantes e pertinentes sobre a infância, os livros, a leitura e a escrita.

Muitas coisas se decidem na infância. Ter uma infância é bom. Regressar sabe bem. É bom ter um lugar onde regressar mas é preciso crescer. As crianças precisam de uma matriz de carinho que as proteja. A Terra do Nunca pode ser também a revolta pela ausência de laços de afecto. O livro é excelente, muito bem escrito, que podemos ler como viagem ao passado, como passeio por Londres, como regresso à nossa própria infância ou às que vamos construindo nesses regressos.

James Mattthew Barrie nasceu em 9 de Maio de 1860, o menor de uma dezena de filhos de Margaret Ogilvy. É um miúdo franzino que aparece nas fotografias de família como figura esboçada como se sem força para fixar a sua imagem no papel, contrasta com a imagem da mãe: “…firme e forte como doce déspota, mãe profissional…”.

A morte de David, o irmão mais velho, num acidente marcará para sempre Barrie e também Margaret que passará a aparecer nas fotografias de olhar perdido, como uma figura translúcida. Barrie dirá, acentuando o impacto sentido aos sete anos com a morte do irmão, “nada de importante acontece a um homem depois de fazer doze anos” Depois da morte do irmão “Barrie entra no quarto da mãe, sempre às escuras, como se entrasse numa gruta de tesouro ou numa tormenta em alto mar.” A fuga da imagem da morte leva-o a refugiar-se nos livros. “Barrie abre os livros como se fossem janelas, abre livros para abrir caminho à luz de uma história numa vida tão sombria.”

“Os livros como motores mágicos que não deixam de impelir os seus heróis e vilões para novas margens e palácios e é por isso que não convém interromper a sua leitura, pensa Barrie, perde-se tanta coisa quando se fecha um livro.” (…) “ler é fazer memória e também escrever é fazer memória” (…) “Os escritores não fazem outra coisa para além de recordar algo que lhes aconteceu ou que nunca lhes acontecerá, mas que acontece agora, enquanto escrevem introduzem-se nas recordações de quem lê até já não saber onde começam umas e acabam outras.”

A tinta tornada elixir da vida eterna: “Se existe algo melhor que ser escritor é ser personagem.” Pensa Barrie e eis que um dia Peter Pan voará com tal pensamento, num repetido : “Não crescerás. Não crescerás. Não crescerás…”

Barrie é confrontado com o desencontro do afecto da mãe. Quando o abraça ele sente o abraço como uma busca de David, o outro filho morto. E caminhamos um caminho de tentativas de acerto dos afectos, de libertação dos fantasmas. E o mergulho nos livros como fuga. Um dia, recordaremos as vidas que lemos mais que a vivida ou uma terceira vida fusão de todas.

“Bem-aventurados aqueles que leram muito durante a infância porque deles, talvez, nunca será o reino dos céus; mas poderão aceder ao reino dos céus dos outros, e aí aprender as muitas maneiras de sair do próprio inferno graças às estratégias não fictícias de personagens de ficção.” Um elogio da leitura que só serve para os adultos. Porque não podemos aconselhar-nos durante a própria infância, mergulhar no rio e vê-lo correr. Crescemos. Felizmente, crescemos e só fazendo-o podemos ser porto seguro de outras infâncias.

Também Peter Hook perde um irmão… A sua vida e a de Barrie segue caminhos paralelos e intercepta-se, por vezes, parecendo uma mesma vida. Na infância de Peter Hook, passada nos loucos os anos sessenta, no mundo da música, aparece uma espécie de “Neverland” repleta de drogas e Rock and Roll, onde Bob Dylan, John Lennon, Kubrick e tantos outros músicos e artistas entram como heróis dos “lost boys”.

É, também, interessante a reflexão que nos propõe sobre os pequenos heróis da literatura do século XIX: Oliver Twist, Alice, Little Nell… A época em que a mortalidade frequentemente imortalizava a infância. A infância foi a grande descoberta e preocupação do século XIX. A juventude o património dos livros do século XXVIII e a adolescência a descoberta do século XX. Teremos a velhice a marcar o século XXI? Seremos velhos e saudáveis mas desesperados por não termos aprendido a viver, inteiros e felizes, essa maior idade que a ciência nos ofereceu?

Encontramos Barrie e a mulher, a elegante Mary Ansell, passeando em Kensington Gardens. Barrie crescido mas ainda pequeno quase perdido num descomunal casaco. Um adulto num corpo de criança, uma criança num corpo de adulto. Peter Pan por escolha ou por desígnio da natureza? Podemos reflectir sobre isso. É em Kensington Gardens que Barrie encontra os filhos de Sylvia Llewelyn Davies e não consegue resistir ao fascínio por aquelas crianças. Sente-se com elas no seu mundo mais do que nos aborrecidos jantares de sociedade que o seu estatuto exige que frequente. Fresán leva-nos de visita aos salões onde no final dos jantares os homens deixam as senhoras e vão para a biblioteca fumar. Fumar, não ler, quando muito comentar o livro da moda: “Drácula”. Barrie leu-o como um conto de fadas para adultos, comovido pelo personagem malvado e eternamente jovem e impressionado, também, por saber que Bram Stoker se recusou a andar até aos seis anos ou que é membro de lojas maçónicas. Barrie pergunta-se como serão essas lojas secretas imaginando uma recriação de uma Terra do Nunca para crescidos.

É num desses jantares que conhece Sylvia Llewelyn Davies e que se torna visita de sua casa. Hook leva-nos a questionar se tal acontece por acaso ou por cálculo. E Neverland começa a desenhar-se. Bem como Peter Pan inspirado no pequeno Peter Davies…

Mais uma vez seguimos o paralelo do modo de amar de Hook e Barrie na exaltação do amor platónico renunciando ao corpo como quem renuncia a viajar pelos aos incómodos das viagens. Um perfeito e sublime amor pelas crianças e por sua mãe, sem corpo, presume-se.

Frésan leva-nos numa incursão pela vasta e desconhecida obra de Barrie, pelas reacções que colhe junto do público e por todo impacto que têm na recriação da sua ideia de infância, de felicidade, de afecto tomado na admiração dos seus pequenos George, Jack e Peter. Barrie vicia-se nos irmãos Davies, precisa deles como de um medicamento para a vida para a sua escrita.

Fazemos uma viagem no tempo cheia de referências musicais e um passeio por Londres onde Fresán esteve apenas de passagem. É curioso como a escrita nos permite estar onde nunca estivemos, levados por alguém que nunca lá esteve e no entanto depois de lermos qualquer um de nós se poderá sentar a olhar a estátua de Peter Pan, aparecida, misteriosamente, na noite de 13 de Abril de 1912, em Kensington Gardens, com aquela sensação de “eu já aqui estive” que só uma boa escrita nos proporciona.

“A vida é breve, a morte é duradoura. (…) A morte é fértil. Semeia mortos e colherás fantasmas.” A morte de Sylvia proporciona a Barrie mais fantasmas: mães que regressam à procura dos filhos. Ao longo da leitura extraordinariamente absorvente deste livro por vezes fica a pairar uma espécie de fantasma sobre um coração de mãe. Do meu pelo menos, uma mãe nunca deixa de ver o mundo filtrado por essa marca impressa de permanente protecção dos seus filhos.

Não pensamos muito no assunto quando olhamos para a história de Peter Pan ou de Alice no País das Maravilhas. Barrie e Dodson, passaram mais ou menos incólumes sobre os ecos das suas motivações ao relacionarem-se com crianças. Mas, de facto, penso ao ler que não sei, exactamente, que relação teve ou quis ter Barrie com aqueles miúdos. E quando leio o que ele escreveu em “Little White Bird” acerca dos fantasmas de mães a deslizar pelas casas velhas a verificar como estão os seus filhos não consigo deixar de ver uma espécie de peso de consciência de Barrie sobre o outro lado do zelo com que rodeou os irmãos Davies, a ponto de alterar o testamento de Sylvia para ficar a cuidar deles. E fica a pairar a razão porque o faz. Porque dobra o destino para herdar os seus “lost boys”. Por nenhuma razão reprovável, podemos pensar e querer acreditar.

Mas nada como um afecto forte de mãe para que as crianças, tentados com promessas de um Peter Pan para voar pela janela, não façam viagens sem retorno. Só muito tarde Barrie compreende que as crianças querem ser adultas e só os adultos querem não envelhecer e regressar à infância. Nenhuma criança quer, saudavelmente, ser prisioneira da infância. É preciso crescer para quer regressar.

Peter Hook vê o filme “Finding Neverland”, que o autor, Rodrigo Fresán, também verá no final da escrita do livro. No filme Barrie aparece redimido por um Jonnhy Deep, um Barrie por fim alto e bem parecido. Que seria de Peter Pan se Barrie tivesse crescido alto e forte e bem parecido? Existiria? Somo todos uma amálgama mais ou menos bem amassada de infância…

Com a morte de George, filho mais velho de Sylvia, Barrie ganha mais um fantasma e pontos em comum com Conan Doyle e Rudyard Kipling, também eles perderam um filho. E Kipling que, tal com Barrie não acredita na vida para lá da morte, carrega, como ele, uma dor mais cruel, sem mistério nem redenção.

James Matthew Barrie morre a 19 de Junho de 1937, com 73 anos. Curiosamente, quis ser enterrado ao lado do pai e da mãe, das irmãs e do irmão David que nunca esqueceu. É enterrado num pequeno caixão tão leve que aos coveiros parece estar vazio. Tal como o de Baco, irmão de Peter Hook que não cresceu.

Barrie é enterrado, Peter Hook também, suicida-se atirando-se para a frente de um comboio logo no início desta narrativa e nos obriga a lê-la para descobrir quem era, quem são todos os povoam os livros que lemos e se tornam os fantasmas que umas vezes nos assustam e outras vezes nos fazem companhia. Afinal somos todos “lost boys”/”lost girls” em busca de afecto. Sílvia Alves.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

OS PASSOS NA CIDADE


Uma pérola, este livrinho de Modiano. A reconstrução da memória é o seu grande tema. A memória de pequenas coisas, de personagens pouco importantes, de ruas que desapareceram, da alma de uma cidade que se transforma com o tempo e de repente já não é a mesma, já não é casa que guarde momentos talvez vividos com intensidade mas fugazes como tudo na vida.

A história de Modiano constitui-se como se partisse de uma máquina de filmar que roda em torno da jovem fascinante e enigmática Louki, passando como se não tivesse destino que cruzar a cidade de Paris dos anos 60.

Esta máquina de filmar é, no entanto, manipulada por diversos observadores que vão construindo o mosaico de uma vida obscura e, no entanto, tão cheia de mistério.

Paris, as suas ruas e praças são o palco obsessivo e talvez apaixonado da narrativa onde vamos assistir ao reconstruir de pedaços da vida de Louki, seguindo os seus passos desde que aparece pela primeira vez num Café do Quartier Latin, passando pelo casamento com um homem que nada sabe dela, pelo seu interesse por uma abordagem esotérica do mundo, pelos dias partilhados com o amante, até um final discreto como tudo na sua vida.



A escrita de Modiano, de uma grande elegância, parece não tocar na matéria que aborda. Deixa-nos sugestões sempre envolvidas num nevoeiro que nos chama e nos puxa como se quiséssemos afastar as cortinas translúcidas com que nos leva a desvendar aos poucos a verdade obscura daquela personagem que, viremos a saber ou intuir, através do sexo e da droga busca serena e talvez desesperadamente um sentido para a vida.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Traição




Emma

It's a waste. Nobody comes here. I just can't bear to think about it, actually. Just ... empty. All day and night. Day after day and night after night. I mean the crockery and the curtains and the bedspread and everything. And the tablecloth I brought from Venice (Laughs.) It is ridiculous.

Pause

It's just .., an empty home.

Jerry

It's not a home.


Betrayal


Traição (Betrayal), escrita em 1978, é uma das mais conhecidas peças de Harold Pinter, Prémio Nobel de Literatura de 2005, falecido em 2008. Considerada como uma das mais significativas da dramaturgia de língua inglesa contemporânea, a peça exibe os elementos mais característicos da obra de Pinter: economia linguística e cenográfica, criação de personagens contidos que vivem de forma velada um turbilhão de emoções contraditórias, e a pintura de retratos da realidade que, embora despidos de adornos de qualquer tipo, dão origem a imagens pungentes e poéticas da vida quotidiana.

De natureza autobiográfica, a peça retrata as relações extramaritais clandestinas que envolvem Emma e Jerry, "amigo" do marido de Emma, Robert, e que se estendem ao longo de muitos anos. O uso da cronologia invertida é a nível formal um dos aspectos mais interessantes e inovadores da peça. Assim, a primeira cena desenvolve-se em 1977 quando a relação extramarital já terminou. A última cena termina quando a relação se inicia, em 1968. Entre estas cenas, dois anos centrais da relação, 1977 e 1973, desenrolam-se cronologicamente.

A peça é uma reflexão fria e cruel do cruzamento e permutação de relações desleais que inevitavelmente acabam por ferir todos os envolvidos. Durante 5 anos, a relação entre Emma e Jerry era desconhecida de Robert (e de Judith, a esposa de Jerry), porém, sem contar a Jerry, Emma admite a Robert a sua infidelidade, efectivamente traindo Jerry. O relacionamento continua contudo, por mais dois anos. Decorridos outros dois anos. Emma e Jerry encontram-se e Emma mente a Jerry ao dizer-lhe que o seu casamento está desfeito e que na noite anterior havia revelado a Robert o relacionamento extramarital.

Uma dissecção profunda das relações amorosas, e da qual resulta a conclusão que a traição não é uma componente menor nos relacionamentos, e que a um nível mais profundo, envolve não só a traição do outro, mas também a das convicções mais básicas de quem a perpetra.

Orfeu B.