domingo, 10 de abril de 2011

Cândido ou Um Sonho Tido Na Sicília


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A verdade é que se fora embora: e só os factos contam, só os factos devem contar. Nós somos aquilo que fazemos. As intenções, especialmente se forem boas, e os remorsos, especialmente se forem justificados, cada um dentro de si pode jogá-los como quiser, até a desintegração, até a loucura. Mas um facto é um facto: não há contradições, não há ambiguidades, não contém o diferente e o contrário.
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Um facto. Fazer perguntas, inquirir, investigar servia só para complicar dolorosamente o que fora simples e verdadeiro.

Cândido ou um sonho tido na Sicília


Acerca desse seu livro, o escritor siciliano Leonardo Sciascia (1921 - 1989) cita, numa nota final, Montesquieu, segundo o qual "uma obra original faz quase sempre nascer outras quinhentas ou seiscentas, servindo-se estas da primeira mais ou menos como os geómetras se servem das suas fórmulas". E segue, "Não sei se o Cândido serviu de fórmula a outros quinhentos ou seiscentos livros. Creio que não, infelizmente: pois certamente ter-nos-íamos aborrecido menos, com tanta literatura. Contudo, quer este meu conto seja o primeiro ou o seiscentésimo, foi dessa fórmula que tentei servir-me. Mas parece-me que não o consegui bem, e que este livro se assemelha aos outros meus. Aquele ritmo e leveza já não é possível encontrá-los: mesmo por mim, que creio que nunca aborreci o leitor. Se não o resultado que valha portanto a intenção: procurei ter ritmo, ser leve. Mas sério é o nosso tempo, bastante sério."

Tendo como inspiração a obra mais famosa da literatura sobre o optimismo, Sciacia cria um personagem de coração puro e alma límpida, Cândido Munafò. A sua honestidade, a sua incapacidade para mentir e de ser cúmplice da hipocrisia, levam a quase todos, mãe, pai, avó, a criada próxima, a hierarquia clerical, o secretário local do partido comunista, a considerá-lo um "monstro".

O equivalente do filósofo leibniziano, Pangloss, o optimista total que afirmava que o mundo era o melhor de todos e que mesmo o terremoto de Lisboa poderia ter sido muito pior, é na obra de Sciascia, Don António, um padre que troca a igreja católica pela igreja do partido comunista. Don António acreditava que fora do partido não havia salvação possível. Esta salvação, não estava contudo, à medida da razão de Cândido, para quem o comunismo "era uma facto da natureza" e não da ideologia.

Assim, evolui Cândido na direcção do iluminismo, na direcção da natureza e duma utopia algo anarquista, caminho que o conduz à pátria da razão e da esperança, Paris, pátria de Voltaire.

Uma obra actual, de grande destreza literária, e com interessantes traços auto-biográficos, pois em certa medida, a brilhante obra de Sciascia versa essencialmente sobre o sonho, a razão e sobre a Sicília.

Orfeu B.





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