terça-feira, 2 de agosto de 2011

Um tratado sobre os nossos actuais descontentamentos

Os Estados-providência não eram necessariamente socialistas na origem ou propósito. Eram produto de outra mudança radical nos assuntos públicos que arrebatou o Ocidente entre os anos 30 e nos anos 60: uma mudança que atraiu para o exercício da administração especialistas e estudiosos, intelectuais e tecnocratas. O resultado, no seu melhor foi o sistema de Segurança Social americano, ou o Serviço Nacional de Saúde da Grã-Bretanha. Ambos foram inovações extraordinariamente dispendiosas, que romperam com as reformas e ajustamentos graduais do passado.

A importância dessas iniciativas de segurança social não estava nas ideias em si - a noção de que seria melhor garantir a todos os norte-americanos uma velhice em segurança, ou disponibilizar aos cidadãos britânicos um tratamento médico de primeira ordem sem ter de pagar de imediato, não era novidade. Mas o que não tinha precedente era a ideia que o Estado fazia melhor essas coisas, e que por isso elas deviam ser feitas pelo Estado.


Um livro brilhante, escrito em condições terminais, pelo historiador britânico Tony Robert Judt (1948 - 2010). Marxista sionista na juventude, Tony Judt rompeu com o sionismo depois de viver em Israel na década de 1960, e depois com o marxismo na década seguinte. Declarando-se um "social democrata universal", como historiador o seu trabalho concentrou-se na história da Europa do pós-guerra, sendo o seu internacionalmente aclamado "Postwar" considerado um livro de referência sobre o período.

A sua actividade acadêmica levou-o à liderança do Instituto Erich Maria Remarque em Nova Iorque depois de assumir a cátedra de mesmo nome na Universidade de Nova Iorque.

Algumas semanas antes de falecer Judt declarou que: "Vejo-me primeiro e acima de tudo, como um professor de história; depois como um autor que escreve sobre a história da Europa; de seguida como um comentador de assuntos europeus; depois como uma das vozes públicas dos intelectuais da esquerda americana; e só então, de forma ocasional, como um participante oportunista sobre a dolorosa discussão na América sobre a questão judaica ..."

Em 2008, foi-lhe diagnosticada uma esclerose amiotrópica lateral, também designada por doença de Lou Gehrig. A partir de Outubro de 2009, ficou paralisado do pescoço para baixo, mas apesar deste estado foi capaz de continuar a leccionar e ditar este magnífico livro. Este é uma verdadeira dádiva, um legado extraordinário, donde se destaca a lucidez, a perspicácia da análise, e a profundidade do conhecimento e das ilações do seu autor.

Mas qual é a causa, segundo Judt, do nosso mal-estar colectivo, dos nossos descontentamentos hodiernos? Nas palavras do autor:

"Há algo de profundamente errado no modo como pensamos que devemos viver hoje em dia. Durante 30 anos orgulhámo-nos do contrato social que definiu a vida da sociedade do pós-guerra na Europa e na América - a garantia de segurança, estabilidade e justiça. Tudo isto foi perdendo o seu real significado, revestindo agora em muitos aspectos apenas meras formalidades. Questões anteriormente pertinentes, em tempos até do foro do político, sobre a bondade ou a justiça das coisas, deixaram de ser colocadas ...

A qualidade materialista e egoísta da vida contemporânea não é intrínseca à condição humana. Muito do que hoje parece 'natural' remonta aos anos 80: a obsessão pela criação de riqueza, o culto da privatização, as crescentes disparidades entre ricos e pobres. E sobretudo a retórica que vem a par de tudo isto: admiração acrítica dos mercados sem entraves, desdém pelo sector público, a ilusão do crescimento ilimitado.

Não podemos continuar a viver assim. O pequeno crash de 2008 foi um aviso de que o capitalismo não-regulado é o pior inimigo de si mesmo: mais cedo ou mais tarde há-de ser vítima dos seus próprios excessos e para salvar-se recorrerá novamente ao Estado ..."


Quanto à capacidade das nossas lideranças políticas na condução dos nossos destinos, o veredicto de Judt, não poderia ser mais claro:

" ... as democracias ocidentais foram lideradas por uma classe distintamente superior de estadistas. Quaisquer que fossem as suas afinidades políticas, Léon Blum e Winston Churchill, Luigi Enaudi e Willy Brandt, David Lloyd George e Franklin Roosevelt representavam uma classe política profundamente sensível às suas responsabilidades sociais e morais. É uma questão em aberto se foram as circunstâncias que produziram os políticos, ou a cultura da época que levou homens deste calibre a entrar para a política. Hoje nenhum desses incentivos está a funcionar. Politicamente falando, a nossa época é de pigmeus."

E há também um lado ético da discussão, que na minha opinião, é limpidamente sintetizado pela citação de John Stuart Mill que serve de mote para o sub-capítulo sobre o Mercado Regulado:

"É uma ideia essencialmente repugnante, a de uma sociedade que se mantém unida apenas pelas relações e sensações despertadas pelo interesse pecuniário".

Em nossa opinião, este livro é uma leitura obrigatória para todos que querem entender os condicionantes e as motivações dos protagonistas neo-liberais que ameaçam destruir a estabilidade e a igualdade social construída ao longo décadas pelas sociedades democráticas ocidentais mais avançadas.

Orfeu B.

2 comentários:

Abder disse...

obrigada pela sugestao e palavras sobre este livro!

Orfeu B. disse...

Fico contente de aguçar o teu interesse por estas questões que, no meu entendimento, são fundamentais. O livro é de excepcional qualidade. Bjs.