domingo, 30 de dezembro de 2012

Histórias de Goldkorn

 

Entre uma vida pródiga em benesses e outra feita de amargo azedume existem precisamente momentos assim, que um homem ou despreza ou agarra destemidamente. Pus-me imediatamente em pé, de um salto, e virei-me para o director de orquestra de peito rosado, cujos caracóis molhados aderiam à fronte nobre.

- Maestro - disse, batendo os calcanhares moles do meus sapatos de ponta revirados, tipo bobo. - Aqui tem L. Goldkorn. Licenciado em flauta pela "Akademie fuer Musik, Philosophie, und darstellend Kunst"; instrumentista auxiliar, por designação do imperador, da k. k. Hof-Operntheater Orchester, 1916-1918; e 1919-1938, da Orchester der Wiener Staatsoper. Desde mil nove e quarenta e três cidadão americano. Assinante domiciliário do New York Herald Tribune.   

A. Toscanini erguei os olhos do local onde Wormes estava agitar-se nas bolhas do Geyser. 

-Si. È vero? Un musicista? Flauto? Bravo! Signor Goldkorns, un disco grammofonico!

Eis como, senhoras e senhores, L. Goldkorn se tornou, pelo espaço de um só tarde, membro da National Broadcasting Company Orchestra. Uma só tarde? Apenas no sentido mais grosseiro, mais literal. A nossa gravação, "Aberturas de Ópera Bufa Bem-Amada", na qual, conforme sabeis, executo uma cadenza a solo de O Segredo de Susana, há-de durar por todas as tardes do porvir.

Histórias de Goldkorn.

Um livro de grande imaginação e dum humor muito especial sobre as desventuras do personagem tragicómico, L. Goldkorn, um modesto judeu originário de Viena, transplantado na grande nação da América do Norte por força da destruição material e cultural da Europa pelo nazismo. 

Uma narrativa sobre a voracidade do progresso duma América febril que aliena e transforma o humilde flautista, orgulhoso membro do quinteto de música Steinway do Restaurante Steinway, especializado em grelhados romenos e carne kosher, numa relíquia viva. Um testemunho comovente, embora também cómico dado o suceder de situações insólitas, dos infortúnios dum personagem profundamente humano. Particularmente inesquecível é a descrição da representação de Otelo pelos empregados do Restaurante Steinway visando publicitar e ressuscitar o moribundo estabelecimento, e os comentários do personagem sobre música e sobre a história do quinteto que ao longo da sua longa vida só por uma ocasião admitiu que um músico estranho se juntasse ao grupo, nomeadamente Albert Einstein aquando o grande cientista fez um repasto no restaurante e tocou uma peça com o quinteto. 

Um livro que espelha a imaginação transbordante e a mestria técnica dum grande autor e que analisa com grande verve os estereótipos culturais dos judeus europeus, dos norte-americanos e das múltiplas comunidades culturais de Nova Iorque. A escrita floreada e criativa do autor faz-nos pensar que Leslie Epstein é um brilhante discípulo de língua inglesa de Isaac Bashevis Singer.  

Orfeu B.



ALBERT LONDRES EM VIAGEM ENTRE OS LOUCOS

“Com os Loucos” (edição de Sistema Solar) é uma obra de Albert Londres (1884-1932), um dos grandes jornalistas franceses, das primeiras décadas do século XX, que contribuiu, e em muito, para transformar a crónica jornalística em género literário. Os temas por si abordados tiveram sempre um forte impacto social, não só pela sua actualidade, como pela forma realística como eram tratados. Entre esses temas, destaca-se a série de reportagens que fez a partir das suas visitas a hospitais para loucos, existentes em França, nos anos vinte do século passado. Mundo oculto, protegido pelo segredo médico e por uma legislação restritiva. Mundo desconhecido do grande público, que não sabia, nem queria saber do que se passava para além dos muros de cerca de oitenta hospitais existentes em França, naquela época. Mas Albert Londres, antes de Michel Foucault e da sua “Histoire de la folie”, teve consciência do que acontecia nessas “novas leprosarias” do século XX, nos manicómios em que a sociedade encerrava os que eram diferentes da maioria dos cidadãos, cidadãos que punham em causa o normal funcionamento das instituições sociais. Protegidos pelo sigilo médico e pelo poder administrativo, esses asilos eram locais onde imperava a violência e a crueldade. Depois de muitas dificuldades de ordem burocrática, Albert Londres conseguiu ter acesso a essas casas, onde o progresso social, o respeito pelos direitos individuais ainda não tinham penetrado. Por vezes, com a colaboração de instituições religiosas: “Filhas do diabo, filhas do diabo”, gritava a freira, de cabeça perdida, às loucas enfurecidas que a escandalizavam pelo gesto, pela palavra. Casas em que nem sempre era possível distinguir entre quem era o curador e quem era o que ali se encontrava para ser curado. Falta de preparação do pessoal médico e de enfermagem? Sem dúvida, mas, acima de tudo, desconhecimento do que era a “doença maldita”. Situação que se manteve até ao aparecimento da química médica, que fez do psiquiatra um administrador de fármacos. Situação que eu conheci de perto, através do convívio com tias velhas e outros familiares, que, por vezes, punham fim ao seu sofrimento pelo suicídio. Estamos, pois, perante uma obra literária de estilo incisivo, imbuído de uma certa leveza, como era próprio do jornalismo francês da época. E, simultaneamente, uma obra de denúncia de uma das maiores tragédias de um tempo, que parece longínquo, mas que é quase nosso contemporâneo.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

«Não abras a porta, / se for o sublime diz que não estou, / já temos palavras de mais, sentimentos demais.» Manuel António Pina.

Reunir Poesia 

No universo da literatura a poesia, dizem, é sempre outra coisa. De facto é. Pessoal, boa, má, funciona, não funciona. É para uso pessoal de quem escreve e de quem lê. Há quem nunca a descubra, quem não se sinta por ela tocado. Não sentimos todos a falta das mesmas coisas. Mas algures dentro de um livro de poesia há janelas, emoções, construções mentais. Mais que o dito é a arquitectura das palavras que conta. A Poesia é mais música que qualquer outra arte. Por isso mesmo que não abra mão do silêncio pede voz. E é como o amor, exige sempre dois envolvidos no mesmo ritmo e no mesmo tempo; por vezes toca mais a alma, outras o corpo e acontece em casos raros extraordinários arrebatar ambos, na singular conjugação das estrelas que é a arte dos poetas.
Ousar falar de poesia é um risco. Poucos entendem o parar a vida para nos encantarmos por um poema que nos rasga uma janela na escuridão de um quarto escuro.
A poesia existe para que alguém respire acima da linha de água. Mesmo que para isso tenha sido preciso ao poeta mergulhar nas mais obscuras profundezas dos pântanos ou ter a ventura de voar sobre as mais altas nuvens.
Poesia reunida, poesia toda. Poesia apenas. Uma vida escrita, vista e revista nos poemas que são de novo embrulhados para oferta aos saudosistas ou aos que a descobrem agora, pela vez primeira vez. Um livro de poesia reunida é um balanço de vida, uma espécie de biografia holística. Neste ano que agora termina editaram-se algumas.




Todas as Palavras
poesia reunida
Manuel António Pina
Assírio e Alvim, 2012

Todas as palavras de Manuel António Pina já foram ditas e escritas. Já não resta sequer um sábio fechado na sua biblioteca, apenas a biblioteca, os livros, as páginas, os poemas.

A biblioteca
"O que não pode ser dito/guarda um silêncio/feito de primeiras palavras/ diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,//quando já a incerteza/ e o medo se consomem/em metros alexandrinos./Na biblioteca, em cada livro,// em cada página sobre si/recolhida, às horas mortas em que/a casa se recolheu também/virada para o lado de dentro,//as palavras dormem talvez,/sílaba a sílaba,/o sono cego que dormiram as coisas/antes da chegada dos deuses.//Aí, onde não alcançam nem o poeta/nem a leitura,/o poema está só./E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.//” 
Manuel António Pina





Poesia Reunida
Maria do rosário Pedreira
Quetzal, 2012

Gostei muito de ouvir a Maria do Rosário Pedreira aquando da apresentação deste livro na Livraria Arquivo, em Leiria. Recomendo a todos. Esta Poesia Reunida aguarda leitura detalhada e vai durar Verões e Invernos. Os seus poemas são sempre de amor, o sentimento que melhor justifica a vida mesmo quando antecipa a morte, como sombra que permite atender a luz da vida, são como se tecidos sobre o corpo, uma segunda pele, vivem como árvores resistindo e mudando lenta e amorosamente no passar das estações.


“Vamos ser velhos ao sol nos degraus/da casa; abrir a porta empenada de/tantos invernos e ver o frio soçobrar//no carvão das ruas; espreitar a horta/que o vizinho anda a tricotar e o vento/lhe desmancha de pirraça; deixar a//chaleira negra em redor do fogão para/um chá que nunca sabemos quando/será — porque a vida dos velhos é curta,/mas imensa; dizer as mesmas coisas/muitas vezes por sermos velhos e por/
serem verdade. Eu não quero ser velha//sozinha, mesmo ao sol, nem quero que/sejas velho com mais ninguém. Vamos/ser velhos juntos nos degraus da casa —// se a chaleira apitar, sossega, vou lá eu; não/atravesses a rua por uma sombra amiga,/ trago-te o chá e um chapéu quando voltar.//” 
Maria do Rosário Pedreira





Poesia
José Fanha
Lápis de Memórias, 2012


O livro de Poesia de José Fanha é uma edição da editora Lápis de Memórias, de Coimbra. É de um campanheiro destas viagens leitoras mas não vou falar sobre ele,  ainda aguardo com expectativa a sua integral leitura. Apresentado há dias numa livraria de Coimbra que tem o mesmo nome da editora, Lápis de Memórias, traz muitos dos poemas que todos conhecem mas faziam parte de edições há muito tempo esgotadas e também muitos inéditos. Gosto muito do que conheço. A sua poesia é uma voz de razão, emoção e corpo inteiro. Cinco centenas de páginas que percorrem quarenta anos de escrita poética e de vida que a partir de agora vão andar por aí.

A Metáfora
"Encontro o Mestre e digo-lhe que há poetas/que recusam a metáfora/ e o Mestre sorri./A metáfora é apenas a metáfora/diz ele/e não vale a pena ser a favor nem contra a metáfora/nem a favor nem contra seja o que for.//As coisas são e não são/à margem/dos poetas com assento/em casas de comércio/diz o Mestre/enquanto almoça.//A realidade vale exactamente o que vale o nosso olhar./A realidade é um peixe/o peixe nosso de cada poema./E o poeta é uma criança que segue pelos caminhos/ com bolas etéreas/a subir no ar.//O poeta é um menino com olhos/de menino e uma dor/ muito funda no seu peito de menino./O poeta atravessa os pátios da infância/ e vai feliz//dizendo  que as breves metáforas que lança ao ar/são apenas planetas de sabão a explodir/sucessivamente//sobre a cabeça do mundo.// 
José Fanha


Arte Nenhuma

Carlos Poças Falcão
Opera Omnia, 2012

E por fim este “Arte Nenhuma”, também recente, que encontrei na Centésima Página, em Braga, uma livraria onde os livros de poesia têm um espaço maior que o residual habitual em outros espaços e um tempo de existir para lá do vertiginoso chega-logo-desaparece das livrarias. 
É uma edição da OperaOmnia, uma editora de Guimarães, onde vive o seu autor, Carlos Poças Falcão, que conheci num tempo já longínquo, numa época em que Guimarães estava longe de ser capital mas era cidade de cultura. Ao folhear o livro relembrei o Convívio, acho que ainda resiste no Toural, os primeiros passos do festival de Jazz… E o que nenhum de nós sabia, há vinte e cinco anos que é o tempo deste livro, o que a vida traria a uns e outros. Muito menos que a morte, coisa estranha e distante, atropelaria amigos comuns. 
Refiro o conhecimento factual do autor pois me faria, em qualquer circunstância reparar num livro seu. Mas não me obrigaria a falar dele, faço-o porque me surpreendeu, sem espanto, a solidez do seu percurso.
Começou a escrever em 1987 com “Número Perfeito”, foi professor depois de largar uma breve e excruciante experiência na advogacia, abraçou um projecto editorial, a Pedra Formosa, e a poesia foi acontecendo. Vinte e cinco anos depois encontro-a mais sofrida mas menos angulosa. O tempo adoçou-o embora continue a preferir o crescimento dos cristais como metáfora do enovelamento dos afectos. Desde a saída do último livro que li dele, “Invisivel simples”, em 1988, que não nos cruzamos. Este livro foi um reencontro. Tal como o esperado as palavras são buriladas mas não é apenas um exercício de palavras há pensamento, reflexão. Não é um livro fácil, nem áspero, é sério e profundo. Creio que nenhum exigente leitor de poesia sairá defraudado.

Arte Nenhuma
"Por arte nenhuma, murmuração, momentos/de não saber cair, o poeta é quase nada./Atravessa a rua, sobe a escada, ao abrir a porta/está mudado: é um batimento estranho,/o coração antigo, toda a aprendizagem/semelhante a uma ruína. Espera ficar árido/até apanhar luz, assim como um deserto,/um poço para a voz, a espelhar ao fundo./Depois abre a janela, está vazio, pronto/a mudar de vez: porque esse é o poema,/a respiração a negro na frequência exacta/de uma espécie de onda, alísea, não criada.//”
                                                                                                                               

Os poetas são resistentes marginais mesmo quando estão por dentro. São pessoas desconfortadas. Podem louvar ou odiar a humanidade, ser laureados ou proscritos. Amam uma pessoa ou muitas, cada uma na sua singularidade de ser e género. Mas num lugar qualquer um poeta luta sozinho com o branco onde inscreve as palavras por razões e necessidades que nem quem os ama pode atender.
No “Pequeno livro azul”, dedicado a sua mulher, a Mizé, que morreu no ano passado, dá a sua voz à dela, afunda-se na dor de quem sofre, omitindo a sua própria ao ver morrer a mulher amada. Vemos o pequeno e limitado mundo do quarto do hospital pelos olhos dela, de forma crua e delicada faz-nos sentir impossibilidade, dor,  lucidez,  abandono e fúria a agarrar a vida. O sofrimento na sua esperança e desesperança. Não é um capítulo para mentes sensíveis. A dor cada uma a toma como é capaz de melhor a suportar: a breves tragos ou toda de uma vez.

“Olhar o tecto/respirar baixinho/Estar nas mãos de Deus//”
(…)
“o corpo, pobre corpo/esta choupana/e uma luz lá dentro/que o ama/que o ama//”

Arte Nenhuma é uma antologia encorpada na sua essência, nos sentimentos que guarda nos duelos mentais que constroem os poemas. Sendo que os livros são também o que deles dizemos, falta-me a mim arte para falar dele, dela, a poesia, que é melhor lida que em tentativa explicada ou justificada. Mas eu posso dizer o que me aprouver neste canto, humilde espaço de leitores (in)comuns.
O diálogo com deus é um diálogo aberto no qual podemos retomar as perguntas e quem sabe deus nos responda perguntas para buscarmos outras e quem sabe um dia chegar a algumas poucas respostas.

(…)
“Sei que não devo perguntar. Mas gostaria de entender porque tem de ser assim. Nada/ devo perguntar, pois a resposta é sempre uma outra torrente de sinais- e o coração/ confunde-se e a inteligência fica dividida.//”
(…)
 “Deus dava uma pancada na coxa com a Sua larga mão./ E eu ficava sem saber o que fazer. Para que são estes sinais/Intensos? Apetecia-me chorar, pois não estava á altura das/ revelações. E desejava estancar o tempo, que é por onde/Deus lança os seus sinais//”

Há, desde o início com “O Número Perfeito” uma força no mistério telúrico das palavras que se prolonga e acentua nas criações mais recentes.

“As pedras têm uma forma própria de ir cavando a terra,/à força de humidade, aconchegando as larvas e pesando,/pesando sempre. Um dia alguém levanta uma e há um rede-/moinho nesse nicho que lentamente se afundava.//”
(…)
“Assim também as casas. Se alguém levanta uma, pode/encontrar ossadas, ou a antiga mancha das adegas e os ratos/ficarão assustados pela súbita ausência de peso.//”

E há a arte de fazer haikus, com o rigor de um perfumista que se nota a cada gota, no Coração Alcantilado.

“Não te envaideças tanto, ó flor!/Olha à tua volta:/Primavera!//”
(…)
“Exige todo o sol/e o mês de Maio longo/uma cereja!//”

Na poesia do Poças Falcão o lugar dos afectos tem forma despojada mas profunda. Há uma tentativa de busca de perenidade nos fenómenos cíclicos da natureza, na lentidão geológica das pedras. Uma contenção de palavras que nos leva a perguntar mais uma vez e outra dentro de cada um. No princípio parecia regida por leis mais abstractas e geométricas agora persegue outras mais flexíveis que regem o ser. Há agora um lado mais concreto a par da abstracção. Há uma lamentação nas coisas imperfeitas, como se amassem, como se recordassem. Tudo pede um deus e o encontro com ele é um exercício solitário de confronto com um criador sábio que se diverte como um pai a deixar que o filho descubra o caminho, sabendo-o sempre em aberto na descoberta. Há na imperfeição maceração de  terra e criaturas, alimento para a vida, medições de temperaturas…Auscultação dos arenitos, restos de chuva, erosões gravadas. A busca na natureza, nos elementos, nos tempos geológicos da segurança que nos foge na nossa humanidade.

(…)Somos líquidos/amamos a fragmentação, a incansável/desordem da matéria. Com a pequena voz /enfrentamos o tempo, com a brancura/de uma subtil lenta paixão. Ao unirmos/separamos. Intuímos uma funda duração/um denso envolvimento, uma gravitação.//”

Vinte e cinco anos. “Arte Nenhuma”, o próprio título metáfora da própria poesia. Arte Nenhuma a ela se compara.

“Agora outra vez a caminhar/Atraso de propósito o bater de vários ritmos/Não estou contra/não vou contra/apenas subo um pouco/ e desacelero/Assim vou desdobrando/um fio de oração sobre a cidade/Depois dos triunfos/e das pequenas mortes/é só pela humildade (a terra da alegria)/que posso regressar//” 

No ano que se segue todos vão fazer listas rigorosas de coisas úteis versus outras ainda mais rigorosas de coisas dispensáveis. Acrescentem a essa primeira lista, por favor, um ou outro livro de poesia. Antes isso que medicamentos, mesmo que esses contribuam mais para a economia, para a reabilitação do mercado. Antes a poesia. Os medicamentos têm contra-indicações e a economia, caros leitores, foi um brinquedo na mão de iletrados que não se deram conta a tempo que eram humanos os números das suas equações. Antes a poesia que é ela própria a expressão máxima de nossa humanidade. Uma luz segura na noite que atravessamos, iluminando cada um segundo o seu caminho. Um mundo de perguntas, de buscas e de lutas. Não há sombras a não ser nos nossos olhos. Dizer tanto do poder de um livro pode parecer excessivo. Mas por vezes um singular poema tem esse poder. A poesia que se publica bastante, vende pouco e muito se perde por aí nunca será um fenómeno de massas. Nunca pesará no PIB. É inútil e absolutamente necessária para tecer os dias.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Mortalidade


The new land is quite welcoming in its way. Everybody smiles encouragingly and there appears to be absolutely no racism. A generally egalitarian spirit prevails, and those who run the place have obviously got where they are on merit and hard work.

Um breve e perturbador ensaio sobre a experiência de "viver morrendo" com um prazo de validade indeterminado, mas claramente à vista. Uma descrição impressionantemente lúcida do brilhante jornalista britânico, Christopher Hitchens, considerado por muitos como um dos mais dotados oradores dos nossos tempos, sobre o inevitável declínio do corpo e da mente devido à acção destrutiva do cancro.  

Um breve volume que nos brinda com uma análise subtil e corajosa dos aspectos definidores duma personalidade, precisamente quando esta está em vias de sucumbir sob o avanço da doença. Particularmente tocante é o capítulo sobre o desaparecimento da voz, sintetizado por uma citação do poeta W. H. Auden, "All I have is a voice".  

Linhas intensas e profundamente tocantes sobre a transformação da linguagem quando da instalação da doença: "idioma local da cidade do tumor (local Tumorville tongue)"; o tumor no esófago, caracterizado como "um cego, um  estranho desprovido de emoções (blind, emotionless alien)", etc.

Linhas coerentes e extraordinariamente dignas de um dos mais eloquentes arautos da racionalidade no combate contra a superstição e o pensamento primitivo que durante o curso da história da humanidade tem engendrado infelicidade, obscurantismo e destruição. Christopher Hitchens faleceu em Dezembro de 2011.


Orfeu B.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

AHAB, UMA EDITORA PORTUGUESA QUE SABE EDITAR CONTOS

Tanto quanto sei, a Ahab é uma jovem editora sediada no Porto. Jovem, mas já com um conjunto notável de obras, de entre as quais avultam as de autores que cultivam o contismo, como o peruano Julio Ramón Ribeyro (1929 -1994 ) e o norueguês Kjell Askildsen (1929). De Ramón Ribeyro li o 1º volume da obra intitulada " A Palavra do Mudo" (editado em 2012); de Askildsen, "Um Repentino Pensamento Libertador" (editado em 2010) e "Os cães de Tessalónica" (2012). Livros de contos, de autores pouco conhecidos ou desconhecidos entre nós. Em "Os Cães de Tessalónica", o autor vai buscar o título da obra ao primeiro conto, em que se refere a dificuldade que os cães, por vezes, têm em se separar após o acasalamento, com todo o sofrimento que tal acarreta. Assim, as personagens destes sete contos, ligadas para sempre pela dificuldade em se separarem (física ou psicologicamente), por mais dolorosa que seja a sua relação.
Nem sempre é fácil enquadrar as atitudes e os comportamentos das gentes que atravessam os textos de Askildsen em correntes ou autores da literatura ocidental, em que estamos inseridos. Talvez o existencialismo literário francês (com as suas expressões de tédio e de absurdo) se possa considerar como um ponto de referência, nomeadamente na solidão das personagens, mergulhadas num silêncio que dá sentido ao confronto permanente entre um tempo interior e um tempo exterior. Silêncio que as torna invisíveis até aos que lhe estão mais próximos. Veja-se um extrato do conto intitulado "Os Invisíveis": "Marion serviu-lhe mais vinho. Costuma doer-te a cabeça?, perguntou ela. Não, respondeu ele. Bem, sim. De vez em quando. Atirou o cigarro fora e acendeu outro. Olha, disse ele, a nuvem continua sem se mexer. A Camilla disse-me que te vais embora já amanhã, disse Marion. Sim, assentiu. Que pena, disse ela. Tenho de voltar ao trabalho, disse ele. Bebeu. É um bom vinho, disse ele. Passado algum tempo olhou para ela de relance; estava sentada a olhar para as mãos no regaço, movendo quase imperceptivelmente a cabeça. Por fim disse sem levantar a vista: Não queres falar, pois não? Mas se estou a falar…, disse ele. Sabes muito bem o que quero dizer, disse ela. Ele não respondeu. (…). (…) Pouco depois, disse: Não posso deixar de ser como sou. Se eu por exemplo mato alguém, não o posso evitar, mas não mato ninguém porque não sou assim. Tudo o que faço, faço-o porque sou como sou, e não tenho culpa de ser assim. Os outros podem dizer o que lhes apetece. Entendes? Pegou no copo e bebeu. Acendeu outro cigarro. Foi até ao maciço de flores e ficou a contemplar a terra seca. Então olhou para a nuvem no alto da montanha; pareceu-lhe mais pequena." Silêncio por vezes entrecortado por uma "confissão", que dá mais espessura a esse silêncio. Note-se a técnica de construção dos diálogos inseridos no texto, o que os transforma em monólogos. E, quando o autor utiliza o diálogo de uma forma tradicional, apenas o faz para acentuar o desfasamento entre as personagens, os lugares comuns em que assenta a sua relação, a incomunicabilidade que se foi criando, que nem os copos de vinho que vão bebendo conseguem disfarçar. O conto "Um lugar Maravilhoso" é um exemplo perfeito do que acabo de dizer: "Tinham descido até ao molhe de cimento, o sol estava prestes a pôr-se. - Oh, como adoro este lugar - disse ela. Ele não disse qualquer palavra. - Foi mesmo ali que caí à água. - Sim - disse ele - , já me contaste. - Devia ter uns quatro anos - disse ela. - Cinco - corrigiu ele. - Sim, talvez. Bati com a cabeça numa daquelas pedras que vês ali e fiz um corte profundo por cima da orelha, e se o meu pai não tivesse… O que foi isto? - Algum animal - disse ele. - Foi alguém a gritar - disse ela. - Não, pareceu-me ser um animal. - Vamos para dentro - disse ela. (...) (…) Ao entrar, ele disse: - Vou abrir uma garrafa de vinho. - Sim, abre. Ela sentou-se no sofá. Ele serviu-lhe vinho. - Obrigado, está bom assim, - disse ela. Ele deitou o dobro no seu copo e sentou-se junto à janela. - O meu pai costumava sentar-se aí - disse ela. - Sim, já me tinhas contado - disse ele. - E onde se sentava a tua mãe? - A minha mãe? Ela… Porque perguntas? - Apenas por curiosidade. Saúde! (…)" E o conto termina com o diálogo que a seguir se transcreve, exemplar na solidão em que as personagens vivem mergulhadas, mascarada de uma aparência de comunicação: "Ele estava sentado na ponta do molhe a contemplar o fiorde. Ela estava deitada atrás dele a apanhar sol. Disse: - Não é um lugar maravilhoso? - Claro que sim - respondeu ele." Claro que sim, o mundo é um lugar maravilhoso, mas apenas para aqueles que nele têm lugar. Dizer mais sobre este livro de Kjell Askildsen seria algo de supérfluo: a solidão, a incomunicabilidade, a alienação estão sempre presentes no quotidiano das personagens e constituem o suporte da narrativa dos sete contos que compõem a obra. Obra que caracteriza a "malaise" de uma sociedade que, apesar dos novos meios de comunicação e da facilidade das redes sociais, que se multiplicam, acaba por deixar cada um de nós entregue a uma inevitável solidão. Ainda que rodeados de gente, todos vivemos e morremos sós…

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

A VOZ DA ÁFRICA ACTUAL


Diz-se entre os editores que os livros de contos não se vendem em Portugal. Muito poucos haverá de autores portugueses. No entanto, nos últimos meses deu à estampa um número muito significativo de livros de contos de outras literaturas. De memória cito Don DeLillo, Juan Ramon Rybeiro, Carlos Fuentes, Carson McCullers, Linda Davies.

A arte do conto é uma arte delicada e muito própria. Exige uma carpintaria cuidada, sem espaço para que a escrita se possa espraiar excessivamente, o domínio rigoroso do uso da surpresa, do desenlace eficaz e do punch final.

Jovem de 35 anos, várias vezes premiada, Chimamanda é uma bela escritora com um excelente ritmo de escrita e um universo narrativo muito próprio, que nos situa entre a Nigéria das tradições, a dos abusos, da corrupção, da violência, a de uma classe média de intelectuais e professores universitários (a que parece pertencer a autora) e a relação com a América, sonho primeiro de todos os que querem emigrar, estudar, mudar de vida.

A primeira qualidade de Chimamanda é a de agarrar o leitor com unhas e dentes. Começado a ler um conto o leitor tem dificuldade em afastar-se da sua leitura. A autora amarra-nos a partir de uma frase inicial... "A primeira vez que nos assaltaram a casa...", "Hoje vi Ikenna Okoro, um homem que julgava morto há muito.".

Depois, a autora estabelece um ambiente aparentemente normal onde vamos conhecendo uma intensa verdade interior de cada personagem (sobretudo as femininas) e um ponto de vista, um olhar sobre aquele mundo particular que muitas vezes nos surpreende até um final forte e frequentemente ambíguo de forma a deixar ao leitor a hipótese de ficcionar o depois da última frase.

Muito curiosa é a forma como mostra o contraste entre a cultura nigeriana e a americana, sem falsos preconceitos nem para um lado nem para outro, embora fique uma imagem ingénua da América, capaz de muita eficiência e pouca espessura.

Gostei muito e gostava que os meus amigos gostassem. Porque a leitura tem esta vantagem. Não carece de ciúmes. Permite e até exige partilhar os mais belos amores que cada um de nós venera.


domingo, 18 de novembro de 2012

“…a minha dor é esta primavera que nasce e me mostra que o inverno se instalou definitivamente dentro de mim” José Luís Peixoto




Foi pela voz de um grande contador de histórias ( Filipe Lopes ) que conheci a poesia de José Luís Peixoto e posso dizer que o “embate” foi forte. O Filipe leu o poema “na hora de pôr a mesa, éramos cinco” e eu fiquei atordoada, apertando as mãos à força das lágrimas que teimavam em espreitar (e acho que não fui muito bem sucedida no disfarce...). Daí à leitura integral do livro foi “o passo de um anão”...

Posso dizer que a leitura não é simples e está longe de ligeira (o que, na minha opinião, só abona a favor do livro). Pelo contrário, é trabalhosa e requer uma grande envolvência, quase íntima, com cada palavra.

Este livro não se deixa florir com o simples gesto de folhear as páginas, é preciso tempo para ler até se ouvir o ritmo certo de cada estrofe, que não se impõe, deixa-se descobrir a quem o quer encontrar. Mas não é essa, afinal, a magia da verdadeira Poesia?!

É como se José Luís Peixoto quisesse ter a certeza que quem lê os seus poemas se dá ao trabalho de realmente os ‘ouvir’. O hábito de ler silenciosamente é razoavelmente recente na nossa sociedade e no caso deste livro, e porque não dizer em todos (ou pelo menos quase todos), essa modernidade faz perder parte do encanto do texto escrito. Dá muito mais trabalho e é muito mais difícil ouvir as palavras ditas de lábios cerrados...

Tive de lutar com a minha dificuldade em escolher uma pequena amostra “Como isolar um sabor de um bolo de várias camadas feito?” A escolha inicial era o poema que já referi, mas essa por tão óbvia peca pela facilidade. Assim deixo aqui este raminho de cheiros para aguçar o apetite.

“ainda que tu estejas aí e tu estejas aí e
eu esteja aqui estaremos sempre no
mesmo sítio se fecharmos os olhos
serás sempre tu e tu que me ensinarás
a nadar seremos sempre nós sob
o sol morno de julho e o véu ténue
do nosso silêncio será sempre o
teu e o teu e o meu sorriso a cair (...)”

                      José Luis Peixoto



Leitora convidada: Liliana Lima 
Fundadora dos Contos da Lua Nova. Contadora de Histórias e Formadora 

domingo, 4 de novembro de 2012

O livro das escolhas cósmicas.


O Universo é o livro de todas as escolhas cósmicas, o registo de todos os acontecimentos que cinzelam o corpo do cosmos. Cosmos em contínuo estado de transformação, global e local, que é o nosso porto de abrigo e o oceano das indagações cósmicas da civilização humana.   

Uma narrativa sobre a história do Universo é necessariamente uma história das ideias, descobertas e técnicas que conduziram ao estágio actual do conhecimento científico sobre o Universo. Assim, o Livro das Escolhas Cósmicas é também um relato do esforço da humanidade para entender o cosmos, dos mitos da criação à revolução científica, desta às descobertas da radiação cósmica de fundo e da aceleração da expansão do Universo. Descobertas estas que conduziram ao desenvolvimento das ideias mais recentes sobre a origem e evolução do Universo tais como os mundos-membrana, a inflação, a matéria escura, a energia escura e que convivem com objectos e ocorrências igualamente extraordinárias como os buracos negros, os núcleos activos de galáxias, as explosões de raios gama, etc.


terça-feira, 30 de outubro de 2012

O CRISTAL DAS PALAVRAS




A cidade de Trieste fica num cruzamento de países e culturas. Ali se encontram influências da cultura italiana, da cultura austríaca, da eslovena e talvez ainda alguns farrapos de cultura francesa, alemã e sérvia.

Ali nasceram, e da alma da cidade fazem âncora, alguns escritores notáveis como Italo Svevo, Claudio Magris ou Giani Stuparich. E já agora, o realizador Federidco Fellini também é triestino

A Editora Ahab tem vindo a fazer um trabalho que devemos sublinhar ao dar a conhecer grandes escritores menos conhecidos. É o caso de Stuparich com este seu conto intitulado "A Ilha".

Diz Elvio Guagnini no posfácio que uma das definições de conto é a de que o conto - ao contrário do romance - deveria representar o ponto culminante, a cena decisiva de um enredo mais longo, enquanto o romance apresentaria as suas etapas de forma articulada.

Não será exactamente o caso de "A Ilha". Aqui, um pai à beira da morte convida o filho que vive na montanha a acompanhá-lo a visitar a Ilha onde ambos nasceram no Adriático e pouco conseguimos adivinhar da vida dos dois para trás para além de um ou outro salpico que nos saltam de Teresa, por exemplo, a dona da casa de hóspedes que adivinhamos antiga amante do pai. Muito pouco.

Porque é que o filho vive na montanha, não sabemos. Nem porque será que se sente tão desprotegido naquele verão mediterrânico cheio de luz e azul, de vegetação rasteira, e do canto permanente das cigarras? Só por saber o pai à beira da morte e querer protegê-lo e adiar esse momento terrível? Só por querer falar como ele, dizer-lhe a verdade do seu estado, como se o pai não soubesse?

O pai era marinheiro. Correu mundo e pouca atenção deu à família. Adora o mar. Adora a sua ilha. Quer despedir-se dela. Quer pescar e receber o sol na pele. E quer passar ao filho uma última imagem de si. E talvez também passar-lhe o vírus do amor por aquela ilha.

O filho vai vendo o pai a perder forças. E não quase história a contar senão este caminho lento e penoso que nos vai sendo dado pela escrita brilhante do autor.

Esta ilha tem qualquer coisa do nosso Algarve no Verão, quando o turismo não tinha ainda estragado quase tudo.

E o trabalho de Stuparich é escrever com volúpia e espanto esse espaço intenso, esse calor abrasador, esse céu e esse mar excessivos, enquanto as suas personagens seguem passo a passo o caminho da morte que já irá acontecer depois do fim do conto, depois do barco que se afasta da ilha para levar pai e filho de volta ao continente.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

A BRILHANTE FICÇÃO DENTRO DA FICÇÃO


Ian McEwan é suficiente conhecido e aplaudido para que seja necessário enaltecer ainda mais a sua obra. Pertence, aliás, a uma geração de belos escritores ingleses como Martin Amis, Julian Barnes, David Lodge, Jonathan Coe, entre outros.

Não somos ingénuos quando vamos ler um livro. Sabemos o tema do livro, conhecemos alguma coisa sobre o autor, foi-nos aconselhado por um amigo, lemos uma referência num jornal. Podemos falar imenso sobre livros que nunca lemos como dizia Pierre Bayard.

Contudo, os bons livros têm o condão de nos surpreender quando os vamos ler apesar de quase já sabermos tudo sobre eles.

Foi o que me aconteceu com “Mel”. Tinha lido várias recensões altamente elogiosas, tinha e tenho o trabalho do autor em grande consideração.

A expectativa era alta, portanto.

Devo dizer, no entanto que ao fim de umas 50, 100 páginas talvez, me sentia um pouco decepcionado em relação às tais tão altas expectativas.

A prosa era sólida, o ritmo consistente e sólido mas… A história não me levava aos píncaros do prazer da leitura. Parecia-me uma coisa a andar demasiado em círculo fechado. E vinha-me uma ideia permanente à cabeça: isto é demasiado inglês.

Serena, uma licenciada em Matemática jovem e bela, filha de um bispo anglicano, leitura furiosa de romances, torna-se amante durante um Verão de um professor universitário muito mais velho que a inicia no pensamento conservador e a encaminha para os serviços secretos, o famoso MI5, antes de desaparecer de forma algo brutal da sua vida.

Tudo se passa no ano de 1972, já na ressaca dos desmandos dos anos 60, durante uma grave crise do petróleo.

Serena debate-se tal como as colegas para se afirmar sendo mulher no mundo masculino dos serviços secretos.

Sabe da morte do seu ex-amante e é encarregue de uma missão invulgar, acompanhar e apoiar um jovem romancista de cariz conservador e anti-soviético ou anti-socialista, no âmbito da tentativa de criar um ambiente cultural
não influenciado pela esquerda europeia.

Serena apaixona-se pelo escritor e debate-se com o problema de lhe confessar ou não a sua verdadeira profissão.

Quando as coisas estão em banho-maria e o romance parece caminhar para um final mais ou menos interessante mas que na aparência se anuncia algo banal, o autor faz uma tremenda e brilhante guinada, consegue fazer subir a narrativa a um ponto inesperado e notável, confere à sua narrativa uma dimensão absolutamente inesperada, em que a ficção se desdobra em ficção da ficção e nos faz perceber que nós, leitores, fomos manipulados e que nada é o que parecia ser.

Leiam, por favor, caros amigos e digam-me depois o que acharam. Estou convencido que este romance é um doce e extraordinário repasto para qualquer viciado em leitura



sexta-feira, 19 de outubro de 2012

"O que não pode ser dito/ guarda um silêncio/ feito de primeiras palavras/ diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,//(...)" Manuel António Pina


Paris Nunca se acaba
Enrique Vila-Matas
Teorema


Algures no meio da leitura não pude deixar de me lembrar do filme “Meia Noite em Paris” de Woody Allen. Um catalão em Paris acha parecer-se, sonha ser, o seu escritor fétiche Hemingway. O narrador reproduz a experiência do próprio autor, em Paris, igualmente na década de setenta, hospedado num esconso quarto no prédio de Marguerite Duras.          

Citando Pascal “É quase impossível fingir que se ama sem se tornar logo em amante”.

Talvez fingindo ser escritor, escritor se torne. Talvez em Paris esse feitiço seja possível. E assim vamos acompanhando as desventuras de quem querendo escrever o seu primeiro livro, nos vai contando como, sentindo-se parecido com Hemingway, tendo-o como referência desde que aos quinze anos leu um livro dele, está em Paris onde foi pobre mas, ao contrário dele, infeliz.

A sua vida na cidade leva-nos por casas, ruas e cafés, através das memórias que eles guardam dos escritores. O livro exige alguma cumplicidade do leitor no reconhecimento dessas memórias, dos seus actores e da obra que produziram. Não ter esse conhecimento não impede a leitura mas empobrece-a, naturalmente.
Todos esses passantes, escritores de maior ou menos sucesso, são imperfeitos. De algum modo todos esperam que a cidade luz os envolva e eleve na sua arte, na sua mais ou menos angustiada existência.

Entramos nos bares onde ele entra para estar nos lugares onde os escritores entraram, conversaram, foram (in)felizes.
Num ”café simpático quente assado, amável” “Paris é uma Festa” mas nem sempre, nem para todos. Apesar de haver muitas raparigas bonitas a poderem deixar em brasa um jovem putativo escritor, um pouco idiota, a querer num café com leite beber a inspiração de Hemingway, naquele bar do Boulevard Saint Mitchel.

Encontraremos Scott Fritzgerlad, Garcia Lorca ou Zelda, Graan Greene...Rilke,Jules Renard… E tantos outros.

Há episódios breves que ficam na memória. Como a história de Jeanne Hébuterne, amante de Modigliani que se suicida após a morte deste, grávida de nove meses, deixando-se cair de costas de um quinto andar. E um dia ao passar na rua será impossível não olharmos para cima espectando a queda de um corpo desesperado, desamparado pela perda do seu amor.

Passamos pelo café Flore…
Encontramos Mallarmé… Quem sabe um gato.
Entramos no Café Blaisse...

Também o leitor é um pouco “flâneur” nas  ruas de Paris.

Num momento apetece largar o livro e entrar no de Fritzgerald, ao passar pelo conto “O gato à Chuva”.
Em outro acompanhamos a compra de uma mesa carcomida no Marché au Puces, para que o narrador coloque a máquina de escrever, escreva, a sua obra: “A asesina Ilustrada”, que se vai arrastando na busca de ideias e de regras para o processo de escrita. 
O livro de Vila-Matas é ele próprio um arrastamento. Por vezes brilha, por vezes apaga-se. Pede-nos cumplicidade. Mas não é totalmente generoso. O ritmo da escrita resulta, por vezes, um pouco frouxo. Li uma tradução. Não ficou a ganhar. O original aguarda-me algures, numa biblioteca dos nossos vizinhos, para tirar as teimas finais.

Testemunhamos a vertigem do escritor na proximidade com os seus heróis. A admiração é algo que fica quando a realidade desconstrói o herói. 
O jovem pede conselhos a Duras que lhe entrega um papel com recomendações óbvias. Conta-nos o narrador. Será que o fez o autor? Quem sabe? A autobiografia e a ficção confundem-se.
No dia 29 de Abril de 1970 compra papel e um envelope e escreve a mesma carta que Rimbaud escreveu no dia 29 de Abril de 1870 a Téodhore de Banville. A carta é devolvida e acontece "uma noite à espera de Rimbaud". 
Quantos seres fez Rimbaud esperar na noite, na vida? Há uma longa história de cadáveres, de literatura falhada na espera de ser Rimbaud.

Há o cinema. "O Último Tango...", "India Song", "Johnny Guittar"... 
Paris pode dizer, como Vienna e Johnny: “Quantas mulheres amaste?” “Tantas quantas os homens que esqueceste.”

Atravessamos o momento da morte de Franco. Há uma geração que vai partindo que fala dele. Franco é como uma grilheta. A que segue talvez  pergunte um dia Franco quem? Franco porquê? Se houver a pergunta haverá uma resposta, haverá um entendimento da História. Curiosamente no dia em que lia a parte em que o narrador conta como festejou a falsa morte de Franco moribundo, anunciada, por engano, por Santiago Carrilho, tinha morrido Santiago Carrilho. O que é que isto acrescenta ao livro? Nada. Apenas serve de exemplo de como a leitura nos devolve as leituras irónicas do mundo.

Há a deliciosa e algo trágica história de Tomás Moll. O desperdício de uma vida é sempre uma tragédia. Embora muitas vezes a tragédia maior de uma vida seja não ter tido tragédia alguma e passar incólume pela vida e pelo mundo.Tomás Moll é um maiorquino sem família, herdeiro abastado, que se auto exila em Paris, a cidade dos seus sonhos. Sonha escrever um livro que terá como titulo “Como ser o menos possível parecido com Pio Baroja mesmo que nos tenhamos exilado em Paris”.
Já não sabia eu porque guardava “El Arbol de la Ciência” de Baroja lido há muitos anos. Tantas vezes me passou pelas mãos em arrumações sem que a memória me levasse a (re)abri-lo….
Um dia Moll descobre ao ler Baroja, também em Paris esteve exilado, que afinal gosta dele mas o seu propósito de vida continua: tudo podia ser elegante em Paris menos parecer-se com Pio Baroja. E continua irrealisticamente a tentar a sua tarefa.

Não me interessou muito o final. Talvez porque, na realidade, o livro tem vários finais, os de todos os que atravessam o livro, isso nos desinteressa um pouco do destino do narrador.
Os escritores já não se arrastam pelos cafés. Mas em Paris a geografia e os cafés ainda lá estão. E quem escreve continua a cruzar-se com os seus fantasmas em qualquer lugar onde abra os livros.

Fechado o livro regressa-se à realidade como se vindos de uma viagem a Paris. Imagens sensações, coisas que sabemos, que sabíamos, que ficámos a saber melhor mas não o suficiente. Coisas de que duvidamos, que anotamos para saber mais.Lugares onde havemos de ir ou voltar.
Tal como o filme de Woody Allen talvez não uma grande obra mas atravessada por grandes vultos e grandes ideias. Ou que assim parecem, grandes, se vistos à luz de Paris.

“Paris é Uma Festa” e “Paris Nunca se Acaba”.

Em 1961 Hemingway cede à loucura, à incapacidade de escrever e a uma espingarda de dois canos. Para entender tal dor e desespero é preciso um dia ter escrito.

Acaba a vida, um dia… A dos poetas. 

Morreu Manuel António Pina…
Na tarde em que acabava este texto: 19 de Outubro.

domingo, 14 de outubro de 2012

MEMÓRIA E LITERATURA


Rentes de Carvalho é um escritor reconhecido tardiamente em Portugal quando já era um nome dos tops literários holandeses. E cabe-nos agradecer à Quetzal que tem vindo a publicar a sua obra completa e a permitir-nos conhecer uma obra muito consistente, intensa, com um olhar duro sobre o Portugal rural e, muito frequentemente, sobre Trás-os-Montes.

O autor teve uma vida rica em experiências. Por via da perseguição política exilou-se vivendo em terras e continentes variados, S. Paulo, Nova Iorque, Paris e finalmente na Holanda Jornalista, fez a sua carreira académica na Holanda onde se tornou professor universitário e onde inicialmente publicou a maior parte da sua obra.

A riquíssima e variada experiência de vida de Rentes de Carvalho vem constituindo parte importante do chão sobre o qual constrói a sua ficção.
Muitos dos contos que fazem parte deste livro resultam justamente, parece óbvio, de experiências vividas. E é também óbvio que o autor não se limitando à reprodução, parte do vivido para o ficcional ficando, assim, com um pé na memória e outra na banca de trabalho do escritor.

Sentimos que por vezes se aproxima mais da narrativa de uma história vivida, outras, qual titeriteiro, pega nas personagens e fá-las dar as mais inesperadas reviravoltas.

É aliás na construção das personagens que os contos deste livro brilham. No conhecimento profundo que Rentes de Carvalho tem dos portugueses, das suas particularidades, dos seus tiques, das suas grandezas e ridículos .

Podemos dizer que estes contos constituem um painel curiosíssimo, por vezes trágico, por vezes irónico, dos portugueses dos anos 40, 50 e das suas peculiaridades.

O ritmo narrativo seguro , o devaneio controlado, a descrição cuidadosa, o diálogo riquíssimo envolvem o leitor e dão-nos vontade de continuar a ler o autor muito para além do livro.

Os contos e os romances de Rentes de Carvalho mostram que a preservação da memória colectiva é feita pela literatura de forma por vezes tão ou mais rica que a própria História.

E se o autor faz esse trabalho de viagem ao passado também nos permite entender e reflectir sobre a permanência das tipologias no modo de ser português.



domingo, 7 de outubro de 2012

FALAR POR QUEM NÃO TEM VOZ



Que belas surpresas a literatura tem volta e meia para nos dar!.

Não conhecia a obra deste autor peruano. Mal teria ouvido falar dele.

Graças às Edições Ahab surgiu a tradução de dois livros dele. Comecei pelo que em segundo lugar viu a luz do dia: “A palavra do Mudo”. Contos. Deliciosos.

São pequenas narrativas construídas como mandam as regras, digo eu, como se houvesse regras na arte de contar histórias.

Escrita segura e sólida que se espraia em torno de pequenos acontecimentos, sem pressas nem sustos. Tudo o que acontece parece calmo e normal, sem nada de extraordinário. Podíamos deixar a história a meio porque aparentemente não acontece quase nada de significativo. No entanto, a arte do escritor leva-nos presos pelas palavras até ao final

E aí reside um aparte importante da arte do conto: conseguir um final que feche a história, que a torne num tempo e num espaço que se resolve numa viagem circular. E Júlio Ramon Rybeiro é um mestre.

“A Palavra do mudo”, título escolhido para esta colectânea vem do desejo do autor de dar voz aos que a não têm. Com poucas excepções, as suas personagens são tristes falhados, pessoas que levam as suas pequenas vidas e os seus pequenos sonhos envolvidos numa nuvem de melancolia. E o extraordinário trabalho do autor é, justamente, tornar essas personagens em gente. Gente falhada. Gente marginal mas de uma marginalidade apagada. Gente que aceita pouco. Gente que sonha pouco. E que mesmo assim, quando sonha, vê os seus sonhos esboroar-se como é o caso do homem que sonha o amor com a dona de um café vazio às duas da manhã e depois de tentar pagar esse amor arrumando as muitas mesas de ferro da esplanada, acaba por ver fechada a porta que o deixa de novo na rua.

O júbilo de quem lê estas histórias não está nas personagens que por vezes nos arrepiam e fazem quase tremer. O prazer desta leitura está na mestria da escrita, no ritmo, na arte de contar histórias de mudos em que Júlio Ramon Rybeiro era seguramente um mestre.