segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

“precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia” valter hugo mãe

 De valter hugo mãe 



A Máquina de Fazer Espanhóis
Editor: Alfaguara Portugal




À primeira o título não me inspirou confiança; parecia tratar-se de uma qualquer piada ibérica.
Ultrapassada tal reserva o livro “a máquina de fazer espanhóis” veio para a minha leitura e passou a ser um dos livros preferidos. Os títulos de cada capítulo são imagens de uma realidade genialmente descrita em letras minúsculas. “o fascismo dos bons homens” “o amor é uma estupidez intermitente mas universal” “o esteves a transbordar de metafisica” “cidadãos não praticantes” “deus é uma cobiça que temos dentro de nós” e “precisava deste resto de solidão para aprender sobre este resto de companhia” são alguns que destaco. Depreende-se deles uma história de solidão, de velhice, de amizade, de reencontros.
Como que de raspão, mostra-se a teia política do Estado Novo, que leva um bom homem a denunciar um opositor ao regime salazarista, em nome da não sacrificável beatitude familiar.

O diálogo inicial entre o administrativo silva da europa e o silva, protagonista do livro, um quase monólogo daquele face ao resistente mutismo deste, inteira-nos com mestria no cidadão orgulhoso da liberdade conquistada, aceitando-a como dado adquirido num espaço orgulhosamente europeu, com o risco de “uma não importância que se pensa porque parece que já nem é preciso pensar”.
E a parca intervenção ensimesmada da silva protagonista varia, entre a preocupação sobre a vida da mulher hospitalizada e as interrogações comuns do seu universo como cidadão.
Magistralmente pela escrita sentimos o questionar da dignidade humana na sociedade actual, dos hábitos que gerem a vida, da necessária adaptação ao novo quando aqueles se rompem, mesmo que se tenha 84 anos.

Os 2 “silvas” são a escolha sábia de um nome e um sentir português, como se um e outro fossem “a frente “ e o “verso”. No decorrer da história, a bem dizer da escrita vários intervenientes se cruzam num misto de raiva, frustração, empatia, amizade e amor. E traz-nos ainda na vivência, um protagonista da Tabacaria de Álvaro de Campos,  figura que atravessa o livro como um ídolo com o qual os /nos presenteiam em pessoa, mandatário do génio escritor no seu heterónimo. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!” (Tabacaria)

A ironia mesclada de alguma inocência na imagética religiosa dá-nos pinceladas únicas de um ateísmo que se revela companheiro na figura solitária de uma nossa senhora de fátima rodeada de pombas em forma de estátua.

O lar que se afigura humano na pessoa dos companheiros e do ajudante de lar, personagem simpática e acolhedora que acompanha e suaviza a vida de cada um, não atenua o cinzentismo mórbido de uma ala com vista para o cemitério onde ficam os dependentes à beira da última viagem. Onde fica pois o espanhol um dos mais recentes utentes e onde se constrói toda uma sombria fantasia tornada real e onde se desenrola todo um sonhar que dá o título ao livro.

Aí nesse lugar despede-se de nós, como se da própria vida fosse, o Silva do livro por quem nos apaixonamos irremediavelmente e a quem queremos salvar da morte no encerrar das páginas. Um silva que traz nele cada um de nós no nosso presente e no nosso futuro. Inolvidável leitura.

Leitora convidada: Cristina Lopes. Advogada. “Leitora compulsiva, amante de artes e ambiente aqui ando em busca de correcta aplicação de leis na ajuda das vidas. Algum nomadismo desde que confortável.”




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