quarta-feira, 2 de julho de 2014

A ÚLTIMA NOITE EM LISBOA


Sérgio Luís de Carvalho é formado em História e todos os seus romances são construídos em torno da reconstrução cuidadosa de um determinado período que pode ser o tempo medieval, o renascimento, as trincheiras da 1ª Guerra Mundial ou, neste romance, a Lisboa da 2ª Guerra Mundial

Neste romance, situado em 1942, sente-se e vibra-se com a cuidadosa recolha de tudo o que pode dar consistência e rigor histórico à cidade, palco da ficção narrativa que se desenrola no cenário sublinhado por essa memória desenterrada dos relatos da época.

Estamos em Lisboa, cidade pobre, mais que pobre, quase miserável, mas alegrete, fadista, cheia do cheiro das tascas e do chilreio do rapazio a correr por ruas e calçadas, anunciando jornais ou a jogar à bola, imitando os ídolos do Benfica e do Sporting.

Esta Lisboa dos anos 40 está repartida entre os germanófilos cheios de pose bacoca e prosápia ribombante, os anglófilos mais discretos, os anarquistas e comunistas a falar e a protestar às escondidas, e os outros que andam distantes das políticas, os que vão vivendo e mantendo tabus que começam a ser estilhaçados pelos modos dos estrangeiros e estrangeiras que chegam ou passam por aqui.

Esta forte presença de estrangeiros em Portugal tem especial relevância nos judeus, fugidos da barbárie nazi, que aqui estacionam à espera de passagem para as Américas. Judeus ricos, nas esplanadas do Rossio ou nos hotéis do Estoril. E judeus pobres, na bicha para a Cozinha Económica de Israel ali à Travessa do Noronha, onde também acaba por ir pedir a esmola da comida o Cônsul Aristides Sousa Mendes, caído em desgraça junto de Salazar.

A narrativa é lenta e circular. Como lenta e circular é a vida de Lisboa, em torno de uma guerra lá longe que se vive através das notícias da rádio, tomando partido por alemães ou aliados e entremeando a tragédia distante com umas iscas, um copinho de branco, uma fadinho ouvido a Rádio Graça, um filme americano no Éden.

O título anuncia o final da história, ou seja, avisa-nos que chegaremos a uma noite que será a última passada em Lisboa. De quem? Talvez de Charlotte a bela austríaca que mora num rez-do-chão da Travessa do Noronha, ao lado da casa que aluga um quarto a Henrique que trabalha na “Esfera” embora sem grande convicção germanófila.

A acção é intervalada de cartas de um homem, Heinrich, que transcreve de ternura e amor no que escreve a Charlotte, primeiro de um campo de concentração nazi, e que sabemos ter sido libertado e ter conseguido partir para a Guerra Civil de Espanha.

Charlotte começa a fazer-se acompanhar por Henrique nas noites de Lisboa e depois por ele e pela sua namorada Maria Carolina que vai aprendendo com Charlotte outras formas de pensar, de vestir, de amar.

A pouco e pouco vai-se formando um triângulo amoroso em que a sensualidade cresce e se vai afirmando e em que a pequenez portuguesa vai sendo confrontada com outras formas de viver e pensar, até se chegar à última noite em que muitas coisas se revelam e outras tantos ficam por desvendar

É daqueles livros que se com facilidade, mesmo com urgência. E em que a ficção se conjuga bem com a História para nos ajudar a conhecer melhor os passos e os dramas dos que cruzaram as ruas da nossa Lisboa.

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