domingo, 10 de agosto de 2014

A Minha Mulher



“Mas como tudo isto é absurdo, absurdo … resmoneava enquanto descia as escadas. É absurdo que esteja ser arrastado pela vaidade ou pelo amor-próprio … Que coisas tão pueris! Serei, acaso, condecorado por causa dos famintos? Irão nomear-me director dalguma repartição? Mas é absurdo, absurdo! E aqui, no campo, para que hei-de representar o papel de pessoa importante? Se me inquieto e aflijo é apenas por amor do próximo …

Sentia confusamente que estava a ser desonesto e mentia a mim próprio. O amor pelos famintos, que eu nunca tinha visto nem conhecia, nada tinha a ver com tudo aquilo. Tive vergonha e lembrou-me, não sei porquê, um verso dum antigo poema, que aprendera na infância:

Ah! como é agradável ser bom!

Mas ainda tive depois mais vergonha …

Anton Tchekov


Tchekov (1860-1904) é referenciado como um dos mais dotados contistas de sempre. As suas obras são constantemente re-editadas e as suas peças foram seminais no repertório teatral russo e moderno e gozam duma unanimidade incomum junto da crítica e do público. O seu estilo é directo e impressionista, as suas descrições anímicas reminescentes dos grandes escritores russos do século XIX. Julgo ser justo afirmar que obras como "O Cerejal", "A Gaivota", "O Tio Vânia", entre outras, são leituras obrigatórias para qualquer leitor interessado nos clássicos da literatura universal.    

"A Minha Mulher", é um longo conto (ou uma breve novela) escrito em 1891. Há neste magnífico texto todos os elementos do universo de Tchekov: a subtileza dos retratos psicológicos, enquadrados em situações quotidianas e/ou extraordinárias, a sua visão por vezes pessimista, mas sempre apaixonada da humanidade, e o seu profundo conhecimento da alma russa, na sua grandeza e nos seus aspectos mais sombrios. 

Neste conto, temos Pavel Andreievitch, um abastado funcionário reformado dos caminhos de ferro russo, que vive dilacerado pelo amor que descobre ainda sentir pela sua mulher. Esta, porém, não o julga digno de qualquer benevolência. A precária relação de separação que vivem, sob o mesmo tecto, perde a sua frieza habitual quando a sua esposa toma a iniciativa de reunir, junto da burguesia rural duma região da Rússia profunda, meios para aliviar a fome e a miséria que assolam os camponeses num inverno particularmente penoso. Pavel Andreievitch presume que esta iniciativa permitir-lhe-á re-estabelecer relações com a sua esposa, porém o seu zelo burocrático e a sua insensibilidade tornam as coisas ainda mais difíceis e insuportáveis. A tensão crescente acaba por empurrar Pavel Andreievitch para uma frustrada fuga para a capital, a qual culmina com um humilhante regresso, que o obriga a enfrentar, sem subterfúgios, a solidão e o irreversível desprezo da sua mulher.       

Um livro de grande intensidade psicológica, realista ao ponto de ser profundamente tocante, ainda que por vezes, sufocante na desesperança que nos descreve a impotência diante de relações humanas em conflito e a incapacidade da burguesia russa em entender as causas dos infortúnios do povo.

Orfeu B.
   

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