segunda-feira, 22 de setembro de 2014

ETERNO DOMINGO




“Eterno domingo” é um curiosíssimo livro, editado pela “Lápis de Memórias” do meu amigo Adelino Castro, em que se visita a paixão pelo futebol vivida improvavelmente por um professor universitário, doutorado em Teoria da Literatura.

Não é caso único no mundo. Bastaria falar dos escritos sobre futebol do grande escritor espanhol Javier Marías, de alguns poemas de Manuel Alegre ou, por outro lado, dos poemas de Artur Jorge, destacadíssimo jogador e treinador e creio que doutorado em germânicas metodologia de treino.

O autor deste livro, Ricardo Namora, foi jogador de futebol, treinador de futebol e é um desmesurado apaixonado pelo futebol. Além disso é professor de Literatura.

Normalmente, esta diferença temática de interesses não permitiria que se imaginasse uma coisa rimasse pacificamente com a outra. Mas a verdade é que acaba por rimar.

O que motiva Ricardo Namora é uma paixão alegremente desmesurada, um conhecimento extenso da matéria e uma forma de escrever que nos leva a seguir a leitura com forte motivação, interesse, curiosidade e surpresa.

Talvez isto só seja verdade apenas para quem gosta minimamente de futebol. Eu gosto. Não sou um taradinho. No entanto, mais de perto ou mais de longe, o futebol faz parte da minha vida, desde os relatos do Artur Agostinho ao domingo na emissora Nacional, passando pelo Benfica Campeão Europeu e por esse momento mágico e único que foi a explosão do Eusébio no Europeu de 66 em Londres.

Conheci e tornei-me amigo de alguns jogadores e adoro ouvir-lhes as histórias. O rei Eusébio outros magriços como o Simões e o Zé Augusto. Mais o Carlão e, entre outros, o Toni, um dos homens mais carregados de Humanidade que conheci.

Li a Bola escrita magnificamente por esses extraordinários jornalistas que foram Carlos Pinhão, Vítor Santos e vários outros, e deliciei-me durante anos com as crónicas do meu querido e saudoso amigo Duda Guenes.

Hoje em dia já acho menos graça. O negócio e o marketing invadiram tudo. A paixão foi substituída pela tribalização consumista. Deito um olhozito de vez em quando aos jogos na televisão. Mas não tenho paciência para ver um jogo inteiro.

O “Eterno Domingo” é que eu li inteiro, aprendi umas coisas valentes e diverti-me muito.

Ricardo Namora fala-nos das suas paixões e conta-nos histórias que presenciou ou que nos traz de dentro do bruma de outras memórias. Fala-nos de como começaram e s desenvolveram os clubes e os campeonatos de Espanha, Inglaterra, Itália, Alemanha, Brasil e Portugal.

Não será literatura pura e dura. Nem pretende. Mas, como sabemos, o livro vale pelo escrito e pelo lido. É feito por autor e por leitor. E este leitor que eu sou aprendeu umas coisas sobre futebol e mais, sobre a paixão pelo futebol.


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

AS FRONTEIRAS DA VERDADE




Javier Cercas é um dos escritores mais interessantes da actual literatura espanhola, o que não é dizer pouco porque são bastantes os escritores espanhóis que merecem referência.

Dele já tinha lido um livro emocionante, "Soldados de Salamina", um dos primeiros romances a abordar a complexidade da Guerra Civil de 36-39 e a trazer a sua memória para o romance.

Esse trabalho sobre a memória é importante, quer para a literatura espanhola quer para a portuguesa. A guerra Civil, de um lado, a guerra colonial, do outro, precisam de ser trazidas para fora dos mitos e das verdades convenientes, para serem questionados à luz da ficção que, por vezes, se torna no bisturi mais afiado para entender a história.

Este romance, que se infiltra na pele do leitor, desenvolve-se através de uma engenhosa construção dramática em torno de três personagens: Cañas, Zarco e Tere.

Zarco é um famoso delinquente juvenil em 78, finais do franquismo, um chefe de um gang marginais miseráveis e desalojados na Catalunha que começa pelo pequeno roubo e do esticão passa ao roubo de automóveis, depois aos assaltos a casas, a lojas, bombas de gasolina e, finalmente, a bancos.

Todo o gang é apanhado pela polícia, alguns morrem, e só um escapa, Cañas, o único filho da classe média que vai acabar por se tornar num advogado famoso.

Tere é outro membro do gang, uma rapariga extremamente sensual, atraente e misteriosa, por quem Cañas se apaixona e por que também se integrará no gang.

O romance é conduzido pelas entrevistas de um escritor que pretende escrever a verdade sobre Zarco.Os depoimentos de Cañas vão-se alternando com outras personagens, o polícia que prendeu Zarco e o director da prisão.


Ao longo dos anos, depois de fugas e novas prisões, Zarco vai-se tornando numa personagem mediática. Cerca de 20 anos depois, através de Tere, pede a Cañas que seja ele a defendê-lo.

E toda esta trama se torna num carrossel em que a busca da verdade nos leva a questionar o valor da memória a forma como a memória, as nossas memórias, se vão questionando e refazendo ao longo do tempo.