sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

FAREI O MEU MELHOR




“Um poema não serve para ganhar dinheiro mas serve para reorganizar o mundo”

Cornelius Castoriadis

Como Castoriadis podíamos dizer que o romance, e especialmente o romance em Portugal, não serve para ganhar dinheiro mas serve para reorganizar o mundo.


A verdade é que todos nós somos uma Alice que precisa da chave, da palavra mágica, da pedra filosofal que nos faça atravessar o espelho para nos reencontrarmos do outro lado, mais completos, mais claros, mais pacificados, improvavelmente mais felizes.

Numa sociedade de neurose, de excessivo peso do objecto, uma sociedade dominada por esta economia que mata reduziu a própria arte a uma dimensão de mercadoria, é do lado dessa mesma arte, do lado da literatura, do símbolo, da metáfora, da poesia, que podemos encontrar a chave que nos leve a atravessar o espelho.

Mal iremos sempre que a poesia, o pensamento, a literatura se auto-mutilarem, recusando o diálogo com o mundo e os homens.

Frágil e doente de ultra-romantismo me pareceu sempre a corrente que afirma a independência das artes em relação à espessura da realidade histórica, social ou política,

Um jovem poeta português escreveu há 3 ou 4 anos que:

“Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo…”

Contra este ensimesmamento convoco duas vozes.

Jorge Semprún que, ao falar da experiência extrema da sobrevivência num campo de concentração nazi, dizia que

“… uma voz encostada a outra voz pode chegar para manter um ser humano em vida”

E o que é a Lídia Jorge senão uma voz que se encosta às nossas vozes para nos manter verticais e em vida?

Outra voz, a de Czeslaw Milosz, poeta polaco nascido para a poesia no final da 2ª Guerra Mundial, que afirmava com grande veemência no seu poema “Dedicatória”,

“O que é a poesia que não salva
Nações ou pessoas?
Um conluio com mentiras oficiais,
Uma canção de bêbados cujas gargantas serão cortadas num momento,
Leitura para raparigas de liceu.”

(tradução Jorge Gomes Miranda)

Temos em Portugal uma vasta tradição de poetas e escritores cujas vozes e cujas obras são faróis que nos ajudam a pensar e a situar o nosso pensamento perante a sorte dos homens neste estrepitoso rolar do mundo.

Basta citar, entre vários outros, Antero, Torga, Sophia, Carlos Oliveira ou, mais recentemente, Saramago.

Cada um à sua maneira, todos eles se tornaram faróis que por momentos se exilaram da sua própria originalidade, da sua individualidade criadora, ou melhor, que as completaram, chamando a si o fogo da cidadania, oferecendo aos seus concidadãos uma palavra de consolo, um olhar rebelde e independente, uma capacidade de olhar mais largo e mais fundo.

Longa e, por vezes feroz, tem sido desde sempre a discussão à volta do compromisso dos escritores e dos poetas nomeadamente entre os presencistas e os neo-realistas.

A questão continua a pôr-se de outras formas, noutro cenário social e político, noutro tempo.

Muitos dos que se reclamam da mac-felicidade pós-moderna passam gloriosamente por palcos de purpurina escovando dos ombros os mosquitos da cidadania e do compromisso.

Mas a questão continua de pé. Senão oiçamos o poeta irlandês, prémio Nobel, Seamus Heaney

“Se pensarmos em países como a Rússia ou a Polónia, a Espanha até certo ponto, e talvez a Irlanda, em todos eles os poetas são objecto de uma permanente expectativa. Há aí uma tradição da poesia que faz com que os poetas tenham um compromisso com a História e com o país e faz com que haja um espaço no espírito colectivo para o poeta como figura representativa.”

O poeta fala de poetas talvez no sentido estrito. Eu falo de poetas num sentido largo que engloba obviamente a nossa Lídia Jorge, uma mulher que pela sua escrita e pela sua presença cívica afirma de forma tão elegante quanto incisiva um compromisso com a literatura, com o tempo, com o espírito colectivo de uma nação, através da denúncia dos tropeções diversos que a magoam e da necessidade de voltar a construir um dia limpo e pleno de esperança.

Em tempos, há uns 30 anos talvez, dizia-me um destacado músico que, quando não sabia o que fazer ou em que sentido caminhar, olhava para o Zeca Afonso porque era ele o farol, era ele que apontava os caminhos necessários.

Gosto de pensar assim da Lídia, como um farol para onde podemos olhar quando nos perdemo.

"O organista", um pequeno conto e uma grande obra.Um farol paraentendermos que caminhos podem levar muito longe a literatura em língua portuguesa.

Para terminar talvez possa usar as palavras de Helicon quando pergunta a Calígula na peça de Camus:


HELICON
Em que posso eu ajudar-te ?

CALÍGULA
No impossível !

HELICON
Farei então o meu melhor.

E é a isto que a Lídia nos habituou e que nós esperamos dela em cada obra e em cada uma das suas intervenções, que faça o seu melhor, porque precisamos muito desse melhor, da sua verticalidade e da grandeza com que exerce a sua condição excelente de mulher e de poeta.


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