sábado, 2 de abril de 2016

A singularidade de uma voz


Imre Kertész (1929 - 2016) nasceu em Budapeste, descendente de uma família judaica que foi totalmente dizimada nos campos de concentração nazistas. Em 1944, aos 15 anos, foi deportado para Auschwitz, Buchenwald e Zeitz, sendo libertado em 1945 pelas tropas norte-americanas. Ao retornar a Budapeste trabalhou, de 1948 a 1951, como jornalista até ter sido exonerado quando o jornal onde trabalhava se transformou em órgão do Partido Comunista Húngaro. Dedicou-se então à escrita e à tradução para o húngaro de obras de  Nietzsche, Hofmannsthal, Schnitzler, Roth, Freud, Wittgenstein, Canetti, entre outros. Escreveu também musicais e teatro de diversão. Trabalhou durante 10 anos no livro, Sem Destino, o seu primeiro romance. Pela profundidade e originalidade da sua obra literária recebeu inúmeros prémios entre os quais o Prémio Nobel da Literatura em 2002.       

"… 
Após um silêncio, o meu pai disse: pois bem, ficamos mais leves – a minha madrasta, com voz ainda embargada, perguntou-lhe se não teria sido melhor aceitar o recibo do senhor Suto. Mas o meu pai respondeu que tais recibos não tinham qualquer «valor pratico», além de ser perigoso esconde-los do que ao próprio cofre. E explicou-lhe: desta feita, «é preciso jogar tudo num única cartada», dado que, por agora não nos resta alternativa. 
Desde há duas semanas, também sou obrigado a trabalhar. Notificaram-me em papel oficial que eu estava «afecto a um emprego fixo» estava endereçado «Ao jovem aprendiz auxiliar Koves Giorgy», e vi logo que ali havia mão da União das Juventudes. 
O local de trabalho é em Csepel, numa sociedade cujo nome é «Refinarias de petróleo Shell». Desta forma, acabei por gozar de uma espécie de privilégio, pois é proibido sair da cidade com a estrela amarela.”
Quando um prisioneiro tenta regatear a entrega de um objecto de valor em troca de água e comida:

“…e ele mostrava-se disposto a fazê-lo, embora fosse, disse «contra os regulamentos». Só que não há acordo, porque a voz queria, primeiro, a água e o guarda queria, primeiro, as coisas, e ninguém queria ceder. Por fim o guarda sentiu-se melindrado: – Porcos judeus, que fazem negócio com as coisas mais sagradas!”
“Só em Zeitz percebi mesmo que o cativeiro tem a sua rotina, que o verdadeiro cativeiro não passa, no fundo, de um quotidiano cinzento.
“Não tardei muito a perceber que as opiniões favoráveis ouvidas ainda em Auschwitz acerca da instituição dos “Arbeitlager”, se baseavam, forçosamente, em informações exageradas.”

Sem Destino (1975)


“Auschwitz é o meu maior tesouro. A proximidade da morte é inesquecível. A vida nunca foi tão bela como nesse longo momento.”

O Fiasco (A Recusa) (1988)


“Não!”
"Tornou-se livre, porque já não tinha pátria. Já nem sequer tinha que decidir em que qualidade devia morrer. Como judeu, como cristão, como herói ou vítima, eventualmente, como absurdo metafísico, vítima do novo caos demiúrgico? Como estas noções nada significam para ele, decide, ao menos não sujar com a mentira o facto límpido da sua morte. Tudo lhe parece simples, porque conquistou o direito à lucidez: “Não procuremos sentidos onde não existem: o século, este pelotão de execução que cumpre o seu serviço, sem cessar prepara-se, pois, para dizimar de novo, e quis a sorte que me calhasse um número mau - ponto final”, são as sua últimas palavras, com as minhas palavras, claro.”   

Kaddish para uma Criança que não Vai Nascer (1990)


“ …
A língua – sim, ela é a única coisa que me mantém ligado a ele (Hungria). Como é estranho.  Essa língua estrangeira, minha língua materna. Minha língua materna, que me ajuda a entender os meus assassinos.
Às vezes, quase tenho que me arrancar do refúgio sossegado do meu anonimato, quando ouço falar ou vejo escrito o nome I. K., mas sei que nunca vou me identificar com ele.
"Eu sou um judeu diferente. Que tipo de judeu sou afinal? ... Sou diferente deles, sou diferente dos outros, sou diferente de mim.”

Um Outro - Crónica de Uma Metamorfose (1997)


“Vivemos na era das catástrofes, todo homem é portador da catástrofe, e para a sobrevivência se faz necessária uma arte peculiar da sobrevivência. O homem do tempo das catástrofes não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter. O meio social terrível — o Estado, a ditadura, chame-o como quiser — o seduz com a força de atração dos redemoinhos vertiginosos até que ele desista da resistência e nele exploda o caos como um gêiser fervente — e a partir de então o caos se torna sua morada. Para ele, já não existe retorno a um ponto de equilíbrio do Eu, a uma certeza sólida e incontestável do Eu: portanto, perde-se no sentido mais verdadeiro da palavra. Esse ser sem o Eu é a catástrofe, o verdadeiro Mal.”

Aniquilação (2004)


Orfeu B.





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