quarta-feira, 27 de julho de 2016

Copo de Cólera


… estava longe de me interessar pelos traços corriqueiros de um caráter trivial, e nem eu ia, movendo-lhe o anzol, propiciar suas costumeiras peripécias de raciocínio, não que metessem medo as unhas que ela punha nas palavras, eu também, além das caras amenas (aqui e ali quem sabe marota), sabia dar ao verbo o reverso das carrancas e das garras, sabia, incisivo como ela, morder certeiro com os dentes das ideias, já que era com esses cacos que se compunham de hábito as nossas intrigas, sem contar que - empurrando pra raia do rigor - meus cascos sabiam inventar a sua lógica, mas toda essa agressão discursiva já beirava exaustivamente a monotonia, não era mais o caso de bocejar em cima de um sono mal-dormido, não era o caso enfadonho de esticar braços supérfluos, as coisas aqui dentro se fundiam velozmente com a febre, eu já não tinha sequer pedrisco na moela, quanto mais cascalho que era o indicado para digerir o papo dela, sem esquecer que a reflexão não passava da excreção totalmente enobrecida do drama da existência, … 
                                         
Raduan Nassar


Prémio Camões de 2016, autor sintético de uma prosa elegante e cortante, Raduan Nassar (1935) é autor de narrativas exactas e intensas, por vezes inspiradas na escrita seca e directa de Graciliano Ramos, de quem é um confesso admirador. Sendo autor de apenas três obras, Lavoura arcaica (1975), Copo de cólera, escrita em 1970, mas só publicada em 1979, e a coletânea de contos Menina a caminho, publicada em 1997, não deixa de ser surpreendente que uma prosa com um estilo tão marcado e original tenha surgido praticamente sem qualquer experimentação. 

Copo de cólera é uma novela erótica e feroz, veloz e arrebatadora na forma como se situa na instabilidade entre a dominação e a submissão, entre a paixão e o ódio, entre a ternura e a violência. Pela dialéctica visceral como disseca a complexa anatomia de um amor selvagem e arrebatador, Copo de cólera é uma obra verdadeiramente intrigante e única na língua portuguesa.  

Orfeu B.



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