segunda-feira, 8 de agosto de 2016

As cores da memória



    
A propósito da obra Mariola Landowska

Todo artista é um microscópio, um telescópio, uma máquina do tempo, um prestidigitador, um tomógrafo de almas. Todo artista, no delírio febril do processo criativo é, acima de tudo, um fabulador de estórias possíveis na sua impossibilidade, um narrador de estórias reais e potenciais. A verdadeira arte é a verosimilhança do inverosímil, é o recuperar da cor da memória dissipada que melhor se adequa ao exercício de relembrar. Mas desculpe-me o leitor por essas considerações iniciais algo genéricas. Certamente, fosse eu um artista, sentiria a arte de Mariola Landowska de forma distinta e seria capaz de exprimir mais claramente as motivações e as ambições mais profundas que caracterizam os artistas do nosso tempo. Mas quem escreve não é mais que um professor de física que tem como horizonte a expansão acelerada do universo e a matemática como seu guia. Ocorre-me o exemplo clássico de Giorgio Vasari, o artista que magistralmente descreveu-nos as vidas e as obras de Giotto, Brunelleschi, Donatello, Mantegna, Leonardo, Michelangelo, entre outros, e que demonstrou serem os artistas os mais capacitados para discursarem sobre a arte. Mas suponho que um físico que tem a imaginação como fiel instrumento de trabalho, terá alguma sensibilidade para escrever umas poucas linhas sobre o encantamento e o fascínio que suscita a obra de Mariola Landowska. Que assim o seja.

Ao contemplar as telas de Mariola Landowska somos impelidos a viagens inesperadas. Sentimo-nos indígenas banhando-se nas águas amazónicas da realidade e do mito. Ouvimos a orquestra selvática de símios e aves, o zumbido de insectos, o miar abundante de gatos multicoloridos, que elegantes  e melancólicos, executam Noturnos de Chopin. Ou então, mergulhamos na alma da Índia ou do Fado, enquanto pedalamos na bicicleta da infância da artista. E é muito ágil essa improvável polaca que abraça o universo e que o pinta com o optimismo da inocência infantil. Os meus olhos a acompanham até onde a minha imaginação pode ir, mas ela é demasiado curta e às tantas perco de vista a artista quando ela vira a esquina duma estrela distante e reaparece no cantar de um galo numa encosta de Alfama ou a molhar os pés na praia de Carcavelos. Porque a arte de Mariola Landowska conduz-nos à canícula dos trópicos, leva-nos a respirar a salsugem e os aromas fortes e cortantes, a sentir o fresco das montanhas e as águas gélidas do Mar Báltico. Cada tela de Mariola nos impele contingentemente para direções surpreendentes, mas inexoravelmente para o âmago dos temas em foco. Mariola Landowska tem o mundo como sua casa e as suas telas transpiram a multiplicidade tonal das suas experiências existenciais. E há na arte de Mariola Landowska a clareza estética que define inequivocamente a maturidade de um estilo. E jaz na essência dessa afirmação o delicioso paradoxo da antropofagia artística. Se pudéssemos encharcar uma esponja com solvente e passar numa tela de Mariola Landowska, e quando digo uma tela quero dizer qualquer tela de Mariola, e fizéssemos uma análise semântica-cromatógrafa-anímica encontraríamos fragmentos dum Chagall tropical, dum Lazar Segall centro-europeu, dum Portinari amazónico, duma Morisot onírica, e as cores de Macke, Kandinski e Gauguin. E sentiríamos o aroma de especiarias incorruptas e chás exóticos. E o sabor de raízes cozidas e de carnes de caça.

E a explicação do pretenso paradoxo é tão simples como o da mistura das cores: o verdadeiro artista é a encarnação intelectual e emocional de todos os artistas. O mesmo exercício, por exemplo, numa tela de Chagall revelaria uma Mariola Landowska embrionária ou em processo metamórfico. Mas para além da beleza pictórica e a estética do optimismo praticada por Mariola Landowaska há na sua arte um compromisso espontâneo com a humanidade nas suas múltiplas e variadas manifestações culturais. A arte de Mariola Landowska não é um exercício de expansão de um ego que procura justificar-se enquanto artista inserida na dimensão mesquinha duma sociedade de consumo e do seu mercado; muito pelo contrário, a arte de Mariola Landowska é fruto duma identidade madura e segura que desaparece ao capturar os seus sujeitos, mas que reaparece íntegra e indelével no resultado de cada tela. O conhecido dito segundo o qual a descrição duma imagem exige pelo menos mil palavras sugere que seria necessário um extenso e mágico texto para fazer justiça à arte de Mariola Landowska; contudo, sinto-me escusado de multiplicar linhas, pois julgo que o mais adequado é o exercício zen que sugere, para mais profundamente apreender a essência das coisas, uma desconstrução da lógica usual e o entendimento do “som” duma só mão a aplaudir. Noutro registo, mas na mesma linha, a poeta Natália Correia proclamava ao perorar um bem conhecido poema: “ó subalimentados do sonho! a poesia é para comer”. Penso que as telas de Mariola Landowska são a dieta ideal para carências como a anemia crónica de imaginação.

Porto, Julho 2012

Orfeu B.



Sem comentários: