terça-feira, 2 de agosto de 2016

O Ponto da Ternura


Se

Se me dessem um animal de solidão
seria um flamingo.
Sua mancha rosada se vislumbraria de longe,
seus pés aparentemente hesitantes
traçariam um círculo ao meu redor
e seu pescoço fino acharia sempre 
o ínfimo espaço
entre mim e qualquer outro
e se fecharia, fiel, no meu pescoço.


Cobertura

… debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. 

Bernardo Soares/Fernando Pessoa, “O Livro do Desassossego”


Nesta hora escura
todas as crianças são iguais.
Nesta treva basta a palavra “crianças”
para que se encolha de medo.
A boca do caminhão se escancara, Salima
Matria procura tesouros na imundície,
já estará enterrado no monte de lixo
cobertura, a mão busca os cobertores
enrolados em sua candidez,
cobertores que nem tinham caído. 
Ahmed Zar’una não subirá mais
no brinquedo do grande blindado,
seu coração agita-se no peito magro
sob o alvo do fuzil
Assim, com os pulsos sobre a cabeça,
o amor está amarrado ao terror. 


O Ponto da Ternura

… at the hour when we are
trembling with tenderness
lips that would kiss
form prayers to broken stone

T.S. Eliot

Aqui é onde mora a ternura.
Ainda que o coração, em seu silêncio,
afunde pela cidade feito pedra -
sabe que este é o ponto de ternura.

Segura a minha mão neste mundo.
Vi uma mãe falando ódio a seu filho,
exterminado com palavras.
Vi um prédio ruir a pó,
devagar, piso por piso -
como precisamos de piedade,
como precisamos de alívio. 

O cair da noite numa nuca tão beijada
vai além da cura: para toda asfixia,
de toda garganta,só há um remédio.
Vê, simplesmente, é o ponto. 

Tal Nitzán


Há literaturas que são indissociáveis do contexto que lhes dá origem. Tal ligação é muito marcada nos escritores de origem judaica. De Kafka a Joseph Roth e Paul Celan na Europa central, passando por Saul Bellow, Philip Roth, Paul Auster e Moacyr Scliar nas Américas, para citar alguns exemplos, retratar o ambiente que os circunda de uma forma única e original não é só um exercício literário, mas pelo contrário, é a fonte primordial, ainda que muitas vezes críptica, que engendra e alimenta as suas fabulações e estilos. 

Esta ligação é ainda mais forte nos escritores israelitas contemporâneos. Das condições históricas que deram origem ao estado de Israel, ao incontornável conflito israelo-palestiniano, a literatura israelita é um campo aberto de experimentação que não pode deixar de reflectir sobre estas questões sem correr o risco de ser artificial e estéril. E neste contexto historicamente complexo e tenso, escritores da estirpe de Amos Oz e David Grossman demonstraram que não há neutralidade possível. O escritor deve estar necessariamente do lado da humanidade, do lado da solução e da mitigação imediata dos conflitos que hoje afligem a todos, israelitas e palestinianos. O escritor deve ir necessariamente para além da sua origem e do seu posicionamento político-ideológico, deve situar-se no terreno mais elevado duma ética que não pode admitir o sofrimento dos semelhantes, independentemente da sua origem, deve ser arauto de uma ética que coloca a humanidade acima de tudo. Esta posição é compartilhada e está fortemente reflectida na escrita da poeta israelita Tal Nitzán. 

A coletânea “O Ponto da Ternura” em versão bilingue, Hebraico-Português, publicada em 2013 em São Paulo (Lumme Editore, Brasil 2013) com tradução de Moacir Amancio, reune poemas escritos ao longo de cerca de década e reflectem a maturidade de uma escritora com uma voz muito própria. Mas como o dissemos acima, a originalidade de Tal Nitzán está indelevelmente marcada pelo contexto denso e viscoso de uma realidade que impõe a todos, e muito particularmente aos escritores, a defesa de causas, o examinar crítico das encruzilhadas da ética e da lógica dos posicionamentos automáticos. 

Se por um lado, a minha incapacidade de apreender a poesia de Tal Nitzán na sua versão hebraica original é um óbvio obstáculo, a universalidade da mensagem de Tal Nitzán é-me perfeitamente inteligível e conduz-me, sem reservas, a uma solidária empatia com as causas que defende. No livro “O Ponto da Ternura” a autora intercala a sua intimidade emocional e as suas inquietações com a discussão de questões que envolvem diretamente as implicações do conflito israelo-palestiniano. Inconformada com a violência de toda espécie, com qualquer acção repressiva e com a guerra, há na mensagem da poeta Tal Nitzán um clarão de esperança na forma pungente como expressa o seu amor por todas as crianças, israelitas e palestinianas, por todos os gatos, pelos flamingos e pela pureza das emoções. Ao ler Tal Nitzán somos confrontados com a certeza básica de que pertencemos a uma família alargada que deve necessariamente incluir aqueles que durante décadas foram retratados como sendo os inimigos.      
    
Etty Hillesum (1914-1943), escreveu em 1943 no seu diário, enquanto ia a caminho de um campo de extermínio, que era preciso ajudar Deus, então fraco e moribundo, a cumprir a sua tarefa. Não creio em Deus ou em deuses, acredito nas ideias. Mas penso que vivemos tempos onde até as ideias que potencialmente nos poderiam salvar estão exangues. Há que as resgatar das sombras e do cinismo, e as pintar com as tintas frescas da esperança. Há que reinventar as palavras e as religar segundo critérios de humanidade renovados. É significativo que uma poeta israelita tenha esse dom. Há muito, foram as trombetas, os cimbalos, as harpas e os tambores que secundaram os Salmos e que cantaram ideais que carregados pelos ventos do deserto chegaram até nós.   

Orfeu B.
   

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