quinta-feira, 31 de julho de 2008

Rosa Montero – Coração Tártaro


Mais uma história de mulheres de Rosa Montero. Em “História do Rei Transparente” há a história de uma mulher que perante uma guerra e a morte dos seus familiares, faz-se passar por homem para sobreviver. Transforma-se numa letrada guerreira. Na “Filha do Canibal” encontramos uma mulher que perante o misterioso desaparecimento do seu marido embarca numa aventura. Neste livro vamos encontrar uma mulher, também sozinha, que no decorrer de um telefonema ameaçador entra em pânico e inicia um percurso, um percurso pelas memórias da sua vida, da sua dependência da heroína (a branca, a rainha como ela a designa), do abuso do pai, da possessão de um irmão gémeo, da sua decadência, das suas fragilidades, das fragilidades das pessoas visitadas e principalmente um percurso pelos livros e histórias. Estas histórias vão influenciar a percepção que a personagem tem da realidade e até vão ser responsáveis pela sobrevivência desta mulher que vive constantemente perto de um precipício. Esta também é história de uma mulher que luta pela sua liberdade, será, esta também, uma particularidade dos livros de Rosa Montero.
Para mim foi bom ler este livro, quase terapêutico, visto que fui assaltado e ajudou-me a compreender o outro lado, onde também há vitimas. Perceber que somos todos escravos, toxicodependentes. A certa altura a personagem pensa “Cada qual constrói o seu próprio tormento.” – Penso nisto mas não utilizo para fins morais. Outros dos aspectos deste livro é o convite que nos faz a outras leituras: a de Jorge Luís Borges “História Universal da Infâmia” (que tenho em casa e vou já começar a ler) e “A Sangue-frio” de Truman Capote. É bom que um livro nos ligue a outros livros, como um link no hipertexto. É também disto que nós, os 7 Leitores, procuramos, as ligações. Acho eu, que tenho poucas certezas.

noivas estrangeiras

Nos saldos de uma livraria (que ia, infelizmente, encerrar) encontrei um livro que me pareceu interessante. E fiquei deveras surpreendido. Trata-se de um livro da colecção “Outras estórias” da Teorema (já de 2001) intitulado “Noivas estrangeiras”. A autora deste livro de contos, a russa Elena Lapin, nasceu em Moscovo, mas viveu um pouco por todo o mundo. Reflectindo talvez a experiência da autora, “Noivas estrangeiras” é um livro sobre as vidas e os amores sobretudo de mulheres (menos de homens) que vivem experiências de multi-culturalidade, confrontando-se com países novos, famílias novas, religiões novas. Vindo de uma russa, poderíamos esperar a história da noiva russa de aluguer… ela existe mesmo, mas de contornos bem inesperados. O resultado final é um quadro terno, divertido, às vezes triste sobre estas vidas. Um livro muito bom e muito equilibrado no conjunto dos seus contos.

PS: A propósito de contos narrados por mulheres vem-me à memória o nome da canadiana Alice Munro: excelente contista

quarta-feira, 30 de julho de 2008

O Lixo - Luis Fernando Veríssimo

Gosto muito de Luis Fernando Veríssimo, como escritor, humorista e leio as sua crónicas sempre a sorrir, senão a gargalhar. Costumava acompanhá-las no Expresso e tenho alguns livros que reunem diversas crónicas e histórias que satirizam o quotidiano. Julgo que o humor é uma forma sublime de entendimento.
Aqui fica um texto retirado do seu livro "O analista de Bagé", apenas para partilhar uma leitura.

«O Lixo -
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.- No seu lixo ou no meu?»


In: http://portalliteral.terra.com.br/verissimo/porelemesmo/porelemesmo_lixo.shtml?porelemesmo
Ambrose Bierce, nasceu no Ohio a 24 de Junho de 1842. Aos 71 anos foi, em viagem, para o México e nunca mais voltou… (ideia que me apaixona desde sempre: a partida)
Foi um crítico satírico, escritor e jornalista, particularmente conhecido pela sua obra “O Dicionário do Diabo”, publicada pela Tinta da China. (Pretendo que seja uma das minhas próximas leituras.)
Ambrose Bierce, ficou conhecido pelo seu humor negro e dele retive há dias uma frase que achei muito interessante “Fidelidade: virtude peculiar daqueles que vão ser atraiçoados”.
É que não há muito tempo, em contexto profissional, tentava explicar as diferenças entre fidelidade e lealdade (se é que isso possa ter algum interesse).

"Aprender a Rezar na Era da Técnica"

Acabei de ler "Aprender a Rezar na Era da Técnica" de Gonçalo M. Tavares.
Lenz Buchmann, personagem principal é médico de profissão e tem um carácter preciso, intolerante e violento. A certa altura da vida é confrontado com uma doença que lhe retira o domínio do seu próprio corpo, a dignidade.
Será esta a condição da vida - leia-se vida, não necessáriamente humana, humanidade - a força, a doença e a morte.

«O que nas pessoas estranhas, desviadas por passo próprio ou enxotadas pelos outros, o fascinava era a absoluta liberdade individual com que faziam as suas escolhas. Num louco ou num pedinte que vagueava pelas ruas a pedir pão e sopa e que, de noite, tal qual os outros humanos, só queria dormir, Buchmann via quem poderia escolher em liberdade pura, e sem consequências, a sua moral individual. Moral que nem sequer tem um par, um elemento que a acompanhe. Quem iria contestar a «vida imoral» de um pedinte ou de um louco? Aqueles homens tinham já em si, pela sua diferença, uma carga de imoralidade universal e profunda, que os tornava imunes às pequenas imoralidades praticadas. Um louco, tal como um pedinte, não era imoral. Eram indivíduos sem cópia, semelhantes a um rei; alguém que não tem par, que não tem aquele que está ao seu lado. E por isso não há para esses homens escorraçados, como não há para o homem mais poderoso, qualquer critério de comparação. Buchmann olhava com admiração para aqueles homens que traziam no bolso um sistema jurídico único, com o seu nome no fim. De certa maneira, era isso que Buchmann desejava; ser portador de um sistema legal cujas leis só fossem aplicadas a si; ser portador de uma moral que não é a do mundo civilizado nem a do mundo primitivo; que não é a moral da cidade ou sequer a moral da sua família mas a moral que tem o seu nome, apenas o seu, escrito por cima. »

O autor juntou-se a um grupo de leitores do Clube de Leitura da Biblioteca de Tavira e no decorrer da conversa (e as conversas são como as cerejas) alguém questiona o sentido de "Rezar" e "Era da Técnica" ... cabe ao leitor desvendar e como referiu "A lietratura é isto, é dar espaço para a leitura, para a interpretação, para as interpretações. Sem esta função não teremos literatura".

Efeito borboleta

Terminei a leitura do “Efeito borboleta e outras histórias” do José Mário Silva. José Mário Silva é crítico literário do Expresso e colaborador da revista ler. Escreve sobre literatura no blogue Bibliotecário de Babel.
Como é dito na badana, “Efeito borboleta e outras histórias” é um livro para ler como quem espreita um caleidoscópio. É como se de um “zapping” se tratasse, em que o autor se detém por breves instantes em fragmentos de vidas. Não se esconde ao longo do livro um tributo ao Italo Calvino e ao Borges. O cômputo geral destas narrativas muito breves é muito positivo, embora nem sempre me conseguissem elevar ao nível do encantamento.
O livro termina com 38 miniaturas, das quais não resisto a citar duas: “caixa negra: no rescaldo de cada relação falhada, lia de novo todos os e-mails e SMS, à procura do erro humano”; “ressaca de uma história de amor: o coração arrancado, preso ao peito com velcro”.
Finalmente, pensando no repto lançado pelo José quanto às leituras para férias, este parece-me ser um bom livro para ler em férias também. A nossa atenção selectiva só tem que ficar captada por breves momentos de cada vez.

terça-feira, 29 de julho de 2008

"CASA NA DUNA"

A TODOS,

RELI AGORA A "CASA NA DUNA " DO CARLOS OLIVEIRA,NUMA 3ª EDIÇÃO PUBLICADA EM 1964,LOGO 20 ANOS APÓS A 1ª EDIÇÃO.LI ESTE VELHO ROMANCE COMO UM LIVRO NOVO.E É AÍ QUE O CONFRONTO ENTRE AS DUAS EDIÇÕES SE TORNA APAIXONANTE.

TUDO EM CARLOS OLIVEIRA SE ENCAMINHAVA(DESDE INÍCIO AFINAL SE ENCAMINHAVA) NO SENTIDO DA EXTREMA CONCISÃO,NO AFASTAR DO SEU CAMINHO TODA A FOLHAGEM INÚTIL,AQUELA QUE ,MAL NASCIDA,LOGO SECA E DE CONSERVAR APENAS(MAS APENAS)O QUE ,MESMO NESSA FOLHAGEM SECA NO SEU MAIS ANÓNIMO RECOLHIMENTO,AINDA VIVE.

UM ESCRITOR NUNCA TERÁ A OBRA ACABADA?



POR SER MUITO SENTIDA TRANSCREVO A DEDICATÓRIA MANUSCRITA POR CARLOS OLIVEIRA NESTE EXEMPLAR:



«MEU CARO JOEL SERRÃO: AQUI TEM V. ESTA VELHA CASA COM AS PAREDES REBOCADAS E UM OU OUTRO VIGAMENTO NOVO;NÃO ACHO QUE VALHA A PENA ENTRAR,MAS É DE QUALQUER MODO UMA CASA INTEIRAMENTE ÀS SUAS ORDENS.

CÁ ESTOU,NO REBATE DA PORTA,COM UM GRANDE ABRAÇO PARA OS AMIGOS COMO V. A QUEM TANTO ESTIMO E ADMIRO.CARLOS DE OLIVEIRA».
QUE BELEZA!


ACONSELHO A LEITURA DESTE CLÁSSICO E DENSO ROMANCE NEO-REALISTA.
ABRAÇO

CARLOS V

Ildafonso Falcones – A Catedral do Mar



Romance Histórico com um excelente enredo e uma personagem que inicia o seu percurso como vassalo de um senhor, foge para Barcelona onde conquista a liberdade e vai exercer várias actividades, tendo sempre como fundo a construção da magnífica Igreja Gótica de Santa Maria Del Mar. O autor retrata a condição das mulheres, a perseguição aos Judeus, os métodos da Inquisição, a relação sociais e de trabalho numa Espanha medieval. Ler este livro é uma forma de passear pelos bairros da cidade velha de Barcelona.

Só resta o amor

Nos últimos tempos tenho lido vários livros de contos dos quais vos gostaria de falar. Inicialmente, pensei fazer uma espécie de súmula de todos (e foram ainda bastantes) os que li. Uma amiga mais ajuizada aconselhou-me a ir fazendo aos poucos, dando tempo a que haja alguma reacção da parte dos companheiros desta aventura.
Tinha que começar por algum lado e escolhi o Só Resta o Amor do galego Agustín Fernández Paz. Há nestes contos um fio condutor que os une. As vidas dos personagens experimentam as diferentes cambiantes da experiência amorosa. O livro começa muito bem com o conto Um silêncio ardente. Sara, uma executiva de sucesso num grande banco, mas leitora obsessivo-compulsiva como nós, vê abrir defronte ao banco uma livraria que passa a frequentar diariamente fugindo à pausa-café com os colegas. Uma manhã, quando se dirigia á secção de poesia, encontrou encaixado entre dois livros, um pequeno cartão. O cartão conduzia-a a um livro, mas num dos cantos da parte de trás, surgia escrito a lápis o seu nome. Os r vão-se sucedendo. O livro continua formosos e seguro até que me deparo com histórias de fantasmas pueris e perfeitamente previsíveis. Desiludiu-me muito e só me voltou a conseguir reconquistar verdadeiramente ao voltar a um estilo muito a la Paul Auster com o conto Uma fotografia na rua. Daniel encontra uma fotografia de uma mulher em frente do edifício da Reitoria da Universidade em Vigo. O coração acelera-se subitamente e ficou definitivamente atraído. Começa então uma demanda pela mulher da foto, mas nessa demanda infrutífera vai encontrando outras fotos da mesma mulher…Depois deste re-arranque o livro continua seguro e termina com outro muito bom conto, Um rio de palavras. Enfim, eu perdoo-lhe as histórias de palavras.
Uma palavra de apreço para as Edições Nelson de Matos que tem vindo a dar à estampa bons livros.
Abraços,

conto brevíssimo

Nas minhas deambulações nocturnas pela blogosfera encontrei este brevíssimo conto que captou a minha (através do José Mário Silva) atenção.

http://estadocivil.blogspot.com/2008/07/histria-alternativa.html
Abraços,
Paulo

segunda-feira, 28 de julho de 2008

ÂNCORAS

Desconfio sempre do novo-riquismo das citações quando servem para validar uma afirmação própria através do pensamento comprimido e mais ou menos em pastilha de um nome de indiscutível prestígio.

No entanto, e por outro lado, gosto de sublinhar os livros que leio. São âncoras que deixo ficar por ali a agarrar-me a memória. Às vezes são também sementes de outros voos. Ou peças de um grande puzzle que é este jogo de entender a vida através da leitura.

Por isso, aqui vão algumas

“- Ouve (o sino) sempre, porque assim, profunda e tranquila, igual ao sino maior da tua aldeia, assim deve soar a tua voz.
- Mas, madrinha – objectou a menina – , esta não é a minha aldeia.

- Mas há-de ser logo que a tua voz soe como o sino maior.”

Laura Restrepo, “A noiva obscura”,


“As histórias completamente verídicas só interessam à polícia”

Jorge Semprún, “Vinte anos e um dia”


“…a vida é uma sucessão de equívocos que nos conduzem á verdade.”

Roberto Bolaño, “Nocturno chileno”

ALBERTO MANGUEL

Obras editadas em Portugal

1998 - Uma História da Leitura (Editorial Presença)

2003 - Stevenson sob as Palmeiras (Asa)

2006 - Com Borges (Âmbar)

2008 - Diário de um leitor (?) creio que saiu há muito pouco tempo

O LEITOR AUTOR

Leio sempre com interesse os artigos, as entrevistas de Alberto Manguel. Ora, foi o que fiz, aqui há uns tempos: Manguel publicou na "Babélia", o suplemento literário de "El País", um texto muito curioso que intitulou "Los herederos de Pierre Menard."[i] Menard, um autor inventado por Jorge Luis Borges, teria escrito um D. Quixote ainda mais cervantino do que o de Cervantes. A tese do conto (novela?) de Borges é simples: ninguém pode conhecer um texto original, pois, o que lemos é sempre uma "tradução", uma reinterpretação filtrada pela nossa "própria experiência, pela nossa voz, pelo nosso momento histórico, pelo nosso lugar no mundo". Daí decorre uma conclusão: o D. Quixote de Miguel Cervantes não existe. Se alguma vez existiu, desapareceu com o desaparecimento do "leitor" Cervantes. O D. Quixote que tem existência real é o dos milhões e milhões dos seus leitores, ao longo dos tempos. Cada leitor é um autor, que cria (e, por vezes, recria, em segunda, terceira leitura) a obra que leu. E, de facto, assim tem sido com todos os autores: o que têm a ver "Os Lusíadas" do século XVII com os do século XIX ou os dos nossos dias? E onde pára o Fernando Pessoa dos anos cinquenta, sessenta? Ninguém sabe do seu paradeiro, nem nós próprios, que tanta emoção experimentámos ao lê-lo, pela primeira vez, nessa época...
E Manguel termina o seu artigo, escrevendo: "A partir de Pierre Menard, ninguém pode voltar a ler um livro, qualquer livro, da mesma maneira que pensavam ler os nossos antepassados. Menard transformou-nos em criadores ou, melhor ainda, obrigou-nos a ser conscientes, como leitores, da nossa responsabilidade criadora."
A morte do autor? De certo modo, sim. Mas, sem o autor "original" como poderiam existir os autores "eventuais"? Enfim, que viva a autoria: a primeira, a segunda, todas as autorias possíveis e imaginárias!

[i] Crónica de 6/11/2004 que está disponível on-line em: http://www.elpais.com/articulo/semana/herederos/Pierre/Menard/elpepuculbab/20041106elpbabese_3/Tes/

domingo, 27 de julho de 2008

"O Reino" de Gonçalo M. Tavares

Os quatro livros sucedem-se no mesmo tempo. As personagens encontram-se entre livros. No entanto vivem de forma diferente esse tempo. Para uns é um tempo de guerra, para outros é tempo de loucura ou de poder. “A Máquina de Joseph Walser” a personagem faz uma colecção muito peculiar, peças metálicas que não ultrapassam os dez centímetros. Walser está convencido que é indiferente aos acontecimentos exteriores, apenas é importante a sua colecção que se encontra dentro de pequenas caixas e de qual anota todas as características, procedências e medidas. No entanto W. descobre um dia, ao recolher uma peça de uma arma, que está a interferir no mundo, porque impede um soldado com a sua arma incompleta de matar um outro ser humano. Mais coisas sucedem-se. Gonçalo M Tavares é dono de uma narrativa única e peculiar, de um mundo minucioso.
No “Aprender a rezar na Era da Técnica” conta-nos a vida de um médico que resolve, com atropelos, iniciar uma carreira política, vai-se assim apoderando das coisas e das pessoas. Começa a dominar a técnica de poder, para esta personagem a guerra passa-lhe quase ao lado “O que espantava mais Buchmann era como o medo e a velocidade, a determinada altura, se misturavam, deixando de ser possível apontar alternadamente para um e para outro. Estava-se já perante uma nova substância - como o hidrogénio e o oxigénio na molécula de água - substância (medo/velocidade) mais explosiva que dinamite.
Ou, talvez com mais exactidão: o grande rastilho do mundo, pois essa mistura não era ainda a explosão mas o trajecto que terminaria na grande explosão. Seremos tanto mais fortes, dizia Buchmann a Kestner nas suas conversas sobre estratégia, quanto mais conseguirmos infiltrar na população esta mistura: movimento rápido e temor. Não deixar parar para que não deixem de ter medo. Não deixar de os amedrontar para que não parem.”
No “Um Homem: Klaus Klump” a personagem que mais sofre com a guerra nós paramos em muitos parágrafos para saborear: “Alof era robusto, era um homem musculado. Como tocava instrumentos com esses músculos e com essa força! Alof dizia: Quando toco música esforço-me para diminuir a força que tenho.”

Leitura de[para] Férias


“Nenhum Olhar” de José Luís Peixoto aqui convocado por Paulo Ventura será o primeiro da lista. Depois “As Cidades Invisíveis” de Italo Calvino porque nas férias devemos ler livros de viagens, parece-me bem. Paralelamente irei ler “O Engenheiro do Tempo” - uma entrevista a esse inventor da arte que é Duchamp. “A Prática da Arte” de António Tàpies será o próximo da lista.
“Fragmentos” de Novalis, livro que foi citado várias vezes por Gionni Rodari na sua “Gramática da Fantasia” – É assim, uns livros convidam-nos a ler outros livros. Tenho como projecto, ainda, a leitura de “O Homem se Qualidades” que foi incitado por Bayard.

A DERROCADA DE BALIVERNA

A derrocada da Baliverna

Entre as editoras que surgiram no nosso país há uma que aprecio particularmente pela sua citeriosa selecção de escritores, A Cavalo de Ferro. Foi através dela que me iniciei no mundo do Dino Buzzati e me apaixonei. Surgiu recentemente uma nova traqdução, A Derrocada da Baliverna. Trata-se de uma colectânea de contos que ilustra bem o universo de Buzzati. Um visão fantástica do mundo, cruzada com uma visão absurda kafkiana. Perpassa também em muitos contos uma angústia muito grande à flor da pele.
Apesar de extenso, lê-se de um fôlego e aconselho vivamente.
Abraços,
Paulo
PS: Curisosamente, descobri que Buzzati também escreveu para crianças e encomendei o livro pela Amazon.

BOHUMIL HRABAL (1914-1997)



Bohumil Hrabal

sábado, 26 de julho de 2008

acho que estou a começar a ficar pronto a arrancar

Olá a todas(os),
Tenho andado com a vida em fanicos. Embora em fanicos continue, acho que estou a conseguir criar espaço mental para esta nossa tertúlia cibernáutica. Depois de vos ter falado um pouco das bases científicas da leitura, faço aqui um ponto de passagem para começar a falar dos livros que me andam a encantar. Esse ponto de passagem faço-o com um citação do autor checo Bohumil Hrabal:
"Quando penetro com os olhos num verdadeiro livro, quando afasto as páginas impressas, do texto nada mais sobra do que ideias imateriais que esvoaçam no ar, repousam no ar, se alimentam do ar e para o ar regressam."
Abraços,
paulo
PS: não sei se conhecem o hrabal, mas tenho andado a descobri-lo (tardiamente) e é muito bom escritor.
Inspirado pelo texto da Paula sobre a "A arte de ler" do José Morais, venho dar-vos conta de um aspecto complementar do estudo científico da leitura. Enquanto que a obra do José Morais se debruça sobre os processos mentais que permitem ao leitor descodificar a mancha visual impressa numa página, o livro de que vos venho falar aborda as bases cerebrais desses processos mentais: "Les neurones de la lecture" de Stanislas Dehaene (2007, Odile Jacob). Antes de mais, algumas breves palavras sobre o autor. Estamos perante um génio dentro das ciências cognitivas e está tudo dito. É o único psicólogo (apesar de se interessar mais sobre as bases cerebrais) membro da Academia Francesa das Ciências; tem centenas de publicações científicas, etc. Mas o mais interessante é que ele é também um excelente divulgador e esta obra prova-o mais uma vez. Grande parte dos trabalhos citados no livro são do próprio autor.
A ideia base é a seguinte: quando o leitor vê uma palavra escrita há uma área muita específica do cérebro que fica activada. Essa área encontra-se em todos os indivíduos e é independente do código ortográfico (alfabético, silábico, etc). Mas há aqui um grande paradoxo. A escrita surgiu apenas à cerca de 6000 anos e esse tempo não é suficente para se desenvolver uma área cerebral com os mecanismos que conhecemos da evolução. Então como é que todos nós temos essa área? A solução proposta pelo autor passa pelo conceito de reciclagem neuronal. Essa área que se activa em todos nós quando lemos uma palavra é análoga (próxima em termos espaciais) de áreas do cérebro do chimpanzé que se dedicam ao tratamento da informação visual. O que é mais curioso é que estas áreas no chimpanzé já detectam formas semelhantes a letras (t, x, j, etc). Isto porque estas junções de linhas ocorrem naturalmente no mundo visual. Levanta-se aqui uma primeira questão fascinante. É provável que as letras não tenham sido uma mera invenção cultural da humanidade, mas que os nossos antepassados de alguma maneira tenham "aproveitado" inconscientemente as formas que o cérebro já detectava.
Continuando, o que acontece no desenvolvimento ontogenético é que quando a criança começa a aprender a ler parte dessa área - que já existe no chimpanzé (e que nós obviamente também temos) - é reciclada para a leitura. Este processo de reciclagem neuronal levanta uma segunda questão fascinante. Se, ao aprendermos a ler, vamos utilizar recursos neuronais que eram utilizados para o tratamento do mundo visual, então quem aprende a ler deve ser ligeiramente pior do que um iletrado em tarefas visuais. E já há algumas provas disso. Curioso não é: aprender a ler prejudica o nosso sistema.
MAS GANHAMOS TANTO, TANTO COM A LEITURA QUE ESTAS PEQUENAS PERDAS SÃO PERFEITAMENTE IRRELEVANTES - ACHO QUE TODOS CONCORDARÃO COMIGO.
Abraços

sexta-feira, 25 de julho de 2008

MIGUEL TORGA

CARTA DE BORDALLO PINHEIRO A URBANO DE CASTRO




"JUÍZOS DE VALOR"

MEUS CAROS AMIGOS,

TENHO LIDO COM ENTUSIASMO A COLABORAÇÃO QUE DIÁRIAMENTE SE REVELA NO BLOGUE.

A FALTA DE TEMPO E UMA AUSÊNCIA DO PAÍS IMPEDIU UMA PARTICIPAÇÃO MAIS ACTIVA.

NÃO TENHO FEITO NOVAS LEITURAS,MAS TENHO RELIDO E ANOTADO ALGUNS APONTAMENTOS DE ESCRITORES QUE NÃO DEIXAM DE ME SURPREENDER.

DAÍ RESULTA O ESCRITO QUE SE SEGUE.

EU GOSTO DE MIGUEL TORGA.DA LEITURA DO SEU "DIÁRIO" (16 VOLUMES),RECOLHI O QUE PENSAVA ELE DOS NOSSOS HOMENS DE LETRAS.VEJAMOS:

A MODERNIDADE

M.M.B .BOCAGE,«UM PRÉ-ROMANTICO INCONFORMISTA.NEM AGOSTINHO DE MACEDO JAMAIS O CONSEGUIU BELISCAR.QUERIAM FERI-LO MORTALMENTE MAS ATIRAVAM SETAS ERVADAS A UM ALVO ERRADO.A UMA CARCASSA QUE TAMBEM SE CHAMAVA ASSIM.O BOCAGE VERDADEIRO SÓ SE TORNOU VISÍVEL DEPOIS DO MARTÍRIO DESSE POBRE SÓSIA.QUANDO ,PRECISAMENTE,JÁ BOCAGE NÃO ERA....»(IV;IX;XI)

JÚLIO DINIS, «APESAR DE CONVENCIONAL,POUCOS COMO ELE SOUBERAM ATÉ HOJE ENCHER A MINHA ALMA DE PAZ E TERNURA»(I;V)

CAMILO CASTELO BRANCO, É O ESCRITOR A SEGUIR A CAMÕES,POR QUEM MIGUEL TORGA NUTRE UMA AFEIÇÃO ESPECIAL,TANTAS SÃO AS VEZES QUE SE LHE REFERE.
«O GRANDE HOMEM DE SEIDE LEVA A DIANTEIRA A EÇA DE QUEIROZ».«É DIFÍCIL A UMA NAÇÃO QUE DESCONHECE OU DESPREZA OS SEUS GRANDES HOMENS EM VIDA,HONRAR-LHES A MEMÓRIA E ESTE DESGRAÇADO CAMILO NEM NA MORTE TEVE DESCANSO».
«COMO NÃO HÃO-DE SER AZEDOS E AMARGOS OS LIVROS DE CAMILO!AS PAIXÕES NEGRAS TÊM AS SUAS CAUSAS.CAMILO ATOLA OS PÉS NO BARRO QUE MOLDA».(I;II;IV;V;VI;IX;XIV;XVI)

M.J.PINHEIRO CHAGAS,O AUTOR DE"POEMA DA MOCIDADE" SAI ESFRANGALHADO DA PENA SIBILINA DO EÇA»(IX)

ANTERO DE QUENTAL O LÍDER DA GERAÇÃO DE 70 «É O PENSADOR-POETA,QUE SÓ MEIA DÚZIA DE LUNÁTICOS LÊ E MEDITA. PENSADOR SEM ORIGINALIDADE E FRACO POETA,FOI,CONTUDO, UM DOS MAIS CONSCIENTES,CAPAZ DE VIVER O NOSSO DESEPERO E DE LHE DAR O HABITUAL E TRÁGICO REMÉDIO»(I;II)

J.M. EÇA DE QUEIROZ, « SE POR UM LADO,FOI CAPAZ DE ARRANCAR DESTA TERRA UM TAL ROMANCE(O CRIME DO PADRE AMARO),POIS PARECE OBRA DE UM DEUS,POR OUTRO,AS PERSONAGENS MARCANTES DA SUA OBRA NÃO ULTRAPASSAM O ANEDÓTICO E O TRIVIAL....» «O MAIS PÚDICO DOS NOSSOS ARTISTAS FALHOU AO DESCREVER O CAMPO QUE NÃO CALCORREOU.AQUI ESTOU ESTOU,NUMA DILIGENTE INVESTIGAÇÃO:APURAR SE A PAISAGEM LITERÁRIA DE "A CIDADE E AS SERRAS" COINCIDE COM A VERDADEIRA.E ,CLARO,NÃO COINCIDE .A ALMA DO LIVRO NÃO CABE NO CORPO DA GEOGRAFIA». »EÇA TEM A CONSCIÊNCIA DAS NOSSAS LIMITAÇÕES,UTILIZANDO A LÍNGUA COMO POUCOS.COM ELE COMO COM GARRETT,A LÍNGUA LEVOU UM ESTICÃO»(I;II;IV;V;VI;VII;X;XIV)

J.J.CESÁRIO VERDE,«ARTISTA DIGNO DESSE NOME PORQUE NÃO FICOU ALHEIO À DOR E À INJUSTIÇA» TORGA LAMENTA-LHE,E A ANTÓNIO NOBRE,O FACTO DE TEREM SIDO CEIFADOS NA FLOR DA VIDA:«QUE MARAVILHAS PODERIAM JUNTAR ÀS MARAVILHAS QUE REALIZARAM».(III;V;X)

A.M.GUERRA JUNQUEIRO,« O POLÍTICO QUE ,ALÉM DO MAIS ,CONTRIBUIU PARA A ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL,O POETA ,TANTO DA "VELHICE DO PADRE ETERNO" COMO DE "OS SIMPLES"...TEM UMA IMPORTÃNCIA LITERÁRIA INDISCUTÍVEL....SIMPLESMENTE A POESIA VERDADEIRA É OUTRA.É POETA DE TERCEIRAS»(IV;V;X)

FLORBELA A. C. ESPANCA,MIGUEL TORGA DEDICA À CÉLEBRE POETISA DE VILA VIÇOSA UM POEMA QUE FEZ EM ITÁLIA,LAMENTANDO A SUA MORTE LONGE DUMA PAISAGEM COMO A QUE LHE É DADO PRESENCIAR:

«NÃO ME QUERES ,NEM TE QUERO,SONHO VERDE,
MAR DE SORRENTO,ALHEIO À MINHA VOZ!
MAR DO "CONTO DE FADAS" DA FLORBELA,
QUE SE MATOU NA FOZ,
LONGE DESTA AGUARELA»(V)

FERNANDO A.N. PESSOA,NO DIA DA MORTE DE FERNANDO PESSOA,TORGA ESCREVEU:« FUI CHORAR COM OS PINHEIROS E COM AS FRAGAS A MORTE DO NOSSO MAIOR POETA DE HOJE,QUE PORTUGAL VIU PASSAR NUM CAIXÃO PARA A ETERNIDADE SEM AO MENOS PERGUNTAR QUEM ERA». «NINGUEM ANTES TINHA REALIZADO O MILAGRE DE CRIAR DE RAIZ UM PORTUGAL FEITO DE VERSOS»...A RESPEITO DO "MAR PORTUGUÊS" QUE UM DIA OUVIU RECITADO POR UMA JOVEM DE MOSCOVO DIZ TORGA:«GOSTEI DE OUVIR AQUELE OCEANO DA NOSSA SENTIMENTALIDADE AVENTUREIRA...TIVE A IMPRESSÃO MOMENTÂNEA DE QUE HUMANAMENTE ÉRAMOS O SOL DA TERRA,E,POETICAMENTE,A SUPERPOTÊNCIA DO MUNDO».(I;V;VI;XI;XII;XIV;XV)

J.J.T.TEIXEIRA DE PASCOAES,«POETA DO SAUDOSISMO QUE NÃO ENTENDEU A TRANSFORMAÇÃO MODERNA DA POESIA,INCAPAZ DUMA VISÃO RENOVADA DOS MITOS QUE CANTOU»(IV;VI;XII)

J.S.ALMADA NEGREIROS,«ALMADA NEGREIROS FAZ PARTE DA FALANGE GLORIOSA DOS HOMENS DO PRINCÍPIO DO SÉCULO QUE,POR TODA ESTA CREPUSCULAR EUROPA,ESCANCARARAM AS PORTAS PESADAS E TRANCADAS DAS ARTES ,DAS LETRAS E DO PENSAMENTO»(XVI).


ESTAVA LONGE DOS PROPÓSITOS DE MIGUEL TORGA FAZER DO SEU "DIÁRIO " UMA HISTÓRIA DA LITERATURA.NÃO SAO PORTANTO DE ESTRANHAR MUITAS AUSÊNCIAS.TUDO LEVA ACRER QUE SEGUIU O CRITÉRIO DE NÃO SE PRONUNCIAR SOBRE ESCRITORES VIVOS.

PODEMOS ESTAR OU NÃO DE ACORDO,MAS A VERDADE É QUE TORGA VEM APENAS ENGROSSAR A CORRENTE CAUDALOSA DOS MUITOS QUE ,A PARTIR DA "GERAÇÃO DE 70",SE TÊM DE BRUÇADO SOBRE O QUE FOMOS E SOMOS.

FERNANDO PESSOA TEVE A CONSCIÊNCIA DO SEU GÉNIO E SOBREVALORIZOU-O. E MIGUEL TORGA? MUITO MAIS HUMILDE DO QUE PESSOA ,É ELE PRÓPRIO QUEM DÁ A RESPOSTA:«MEUS MAGROS E TRISTES VERSOS.».«É PRECISO DAR UMA VOLTA A ESTA MINHA POESIA OU DESANDA TUDO NUMA CHORADEIRA DE FUNERAL».«A DEPURAÇÃO LÍRICA QUE TENTEI NÃO BASTOU,COMO SE VIU».(III;VIII;IX)

TERMINO COM UM DESABAFO DE MIGUEL TORGA:
«ACABADA A PUBLICAÇÃO DE CADA VOLUME DE "DIÁRIO",VEM-ME UM TAL NOJO POR ESTAS NOTAS,QUE FICO DIAS INCAPACITADO DE ESCREVER.PORQUE SÃO DEPOIMENTOS À QUEIMA ROUPA,SEM NENHUMA PERSPECTIVA,REACÇÕES DIRECTAS,EM BRUTO,PARECEM-ME PEDRADAS IRRESPONSÁVEIS ATIRADAS ÀS VIDRAÇAS DO TEMPO.PODE SALVÁ-LAS ,EVIDENTEMENTE,A PRÓPRIA SINCERIDADE QUE HÁ NAS ATITUDES IRREFLECTIDAS,APAIXONADAS ,DE AFOGADILHO....MAS A VERDADEIRA LITERATURA É FEITA À POSTERIORI»
«....O"DIÁRIO" NÃO É UMA CRÓNICA DOS MEUS DIAS,MAS A PARÁBOLA DELES»(VII;XI)

COM UM ABRAÇO AOS "JUIZES DO VALOR"





ARIANE

COMO FOI AGRADAVEL LER O POEMA!
Olá a todas(os),
Em primeiro lugar peço desculpa de não ter ainda dado notícias...imperdoável eu sei. Prometo para breve dois textos, um sobre os livros de contos que tenho andado a ler e outro sobre as leituras de verão (que não fogem muito às de outras estações - não sou muito adepto da "silly season").
Enquanto não deixo os textos, confesso-me, a propósito dos textos publicados sobre o Rubem Fonseca, um leitor apaixonado. Anadando eu sempre na senda de um bom contista encontrei nele um bom porto: escrita incisiva, sintética, satírica, mordaz, erótica, com toques de "bom" (e ás vezes de mau) malandro. E situo-me como o José Fanha: sorvo os livros do Rubem da primeira à última palavra.
Queria também dar-vos conta de uma experiência apaixonante que foi criada indirectamente por vocês (e ainda bem). Depois de ter lido os encómios ao David Toscana resolvi colmatar a minha lacuna literária com uma ráoida ida a uma livraria depois de sair do trabalho. A mais próxima é a Bulhosa de Entrecampos. Entro e inquiro sobre a existência do livro que vocês citam. Por sorte era o único livro que tinham (exemplar único). Enquanto decorre a conversa com o empregado reparado num pequeno cartaz anunciando a presença do José Luis Peixoto para dia vinte e tal de Julho. Tomei uma nota mental para anotar a data na agenda aquando da saída da livraria. Como é meu hábito (e de todos nós, suponho) quando entro numa livraria não resisto a dar uma volta para ver os escaparates. E fui dirigindo-me para o fundo da livraria e eis se não quando vejo uma dúzia de senhoras dos seus setenta anos rodeando uma figura inconfundível com tatuagens várias e multiplos brincos: afinal a tertúlia estava a decorrer naquele momento!!!! Sentei-me sossegadinho e passei duas horas maravilhosas a ouvir falar um dos escritores portugueses actuais que eu mais considero ("nenhum olhar" continua a ser um dos meus livros portugueses favoritos). Que contador de estórias maravilhoso: de tudo falou, dos mitos, passando pelas senhoras que faziam favores nas aldeias alentejanas, da mania da mãe em nunca revelar o que faz para o jantar apesar de ser excelente cozinheira, até ao realismo mágico e a esse outro livro maravilhoso que é o "Pedro Paramo" do Juan Rulfo". Esta minha estória é Austeriana: se não fossem vocês a falarem do Toscana, se não fosse a minha ânsia em procurá-lo, nunca teria estas duas horas maravilhoas. Muito obrigado.

"FIRMIN" de SAM SAVAGE



“… encontrei conforto na ideia ridícula de que tinha um Destino . E comecei a viajar no espaço e no tempo, através dos livros, para o procurar.”


Firmin é o 13º filho de uma ratazana alcoólica que só tinha 12 tetas. Nasceu, tal como os irmãos no sótão de um alfarrabista. Como era o mais fraco entre todos os irmãos nunca chegava às tetas da mãe. Assim se safou do alcoolismo e, para sobreviver, começou a comer livros, tornando-se num rato culto.

Este é um ponto de partida notável. Mas há melhor.

Firmin tanto lê e vê filmes num cinema miserável de sessões contínuas, que sofre graves crises de identidade. Sonha ser Fred Astaire e hesita entre o traseiro da ratazana, sua irmã, e as “Beldades” que enchem os filmes pornográficos que vê depois da meia-noite e em que inventa uma Ginger Rodgers apaixonada por si, numa mistura delirante com referências ao “Amante de Lady Chaterly”

Firmin é um ser enternecedor na incapacidade de odiar, na vontade de amar, na vontade de entender as regras do mundo e o comportamento dos homens, ou seja, dos outros.

O romance relata a sua via num mundo que está em acelerada mutação. Podia ser a história de qualquer um de nós, com os seus sonhos, o seu desejo de amar e ser amado, a sua paixão pelos livros que o leva, inclusivamente a imaginar-se um extra-terrestre. E para acabar, qual de nós, obsessivos leitores, é que não se sentiu já um extra-terrestre nesta sociedade tão afastada das maravilhas e da excelência da grande ficção.

(O livro é a primeira obra de ficção de um professor americano universitário de Filosofia. Não existe edição em português. Há em espanhol e está à venda no El Corte Inglês)

“Ajuda muito, nas noites de solidão, poder olhar as estrelas e não ver nelas apenas umas meras escamas do céu ardente no grande Vazio, mas janelas iluminadas da nossa própria casa.”

quarta-feira, 23 de julho de 2008

“Ela e outras mulheres” de Rubem Fonseca

Rubem Fonseca agarra o leitor até ao fim mesmo em pequenos contos como este. “Ela” é talvez o conto mais pequeno do livro, quase um poema. É uma pequeníssima narrativa que começa com “Na cama não se fala de filosofia” e acaba “Ela disse, te amo, vamos viver juntos. Perguntei, não está tão bom assim? Cada um no seu canto, (…) Ela respondeu que Nietzsche disse que a mesma palavra amor significa coisas diferentes para o homem e para a mulher. Para a mulher, amor exprime renúncia, dádiva. Já o homem quer possuir a mulher, tomá-la, a fim de se enriquecer e reforçar seu poder de existir. Respondi que Nietzsche era um maluco. Mas aquela conversa foi o início do fim. Na cama não se fala de filosofia.”
Mas são muitas as mulheres que o autor fala neste livro, algumas são narradoras da sua própria tragédia, outras intermediárias na narrativa e grande parte delas são o eixo principal da história. O narrador, na primeira pessoa, muda-se de personagem em cada conto, por vezes, até é um “serial killer”, um bom “serial killer”, capaz de ter as atitudes mais nobres.
É ambíguo o papel que este autor dá à mulher, por vezes é aclamada e amada, outras vezes é tratada como um objecto, é agredida, assassinada. Não há uma moral. Talvez o autor queira chegar ao limite, para renunciar a situação. Assim sendo, talvez haja uma moral.
Sexo, violência, amor, paixão e suspense são alguns dos ingredientes deste livro. O autor descreve, sem tabus, cada cena com todos os pormenores quase obscenos (para um leitor, como eu, educado numa cultura laica mas cristã). Mas talvez seja isso que me faça, secretamente, ler este livro. Como uma criança que, às escondidas dos pais, vê as revistas proibidas. Este é um livro para se ler no bom calor do verão.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

OS MILAGRES DIFICULTOSOS


Robert Coover, escritor norte-americano nosso contemporâneo, escreve, em conto publicado no n.° 9 da revista "Ficções", que o problema maior de um escritor está no começar. Aliás, o título desse conto remete-nos para essa preocupação do autor – "Começos". E dá o "exemplo" da ressurreição de Lázaro, por ele narrada em escrito anterior. Na perspectiva de Coover (escritor de forte pendor satírico e iconoclástico), Jesus teria mandado que retirassem Lázaro do caixão e que o desenfaixassem. Mas, por mais esforços que fizesse, a ressurreição não se consumava. Os judeus, que assistiam ao acto, começavam a ficar incomodados com o fedor que emanava do cadáver. Jesus, afadigado, ia pedindo paciência: já vai, já vai, o que custa é começar, depois, é sempre a aviar! E Robert Coover acrescenta que assim são as coisas para o escritor. E é isso que, neste momento, me está a acontecer, agora, que estou a iniciar estas quase crónicas. Se há começos que conduzem rapidamente a um fim (e aí se extinguem), outros há que são promissores de vida longa – longa, variada e rica. Espero que seja este o caso, pois sei também que, quanto mais custoso o milagre for, mais duradouro ele será. E, uma vez mais, será de evocar o milagre de Lázaro – passados dois mil anos, ele ainda aí está!

domingo, 20 de julho de 2008

"A arte de ler"




Com este desafio para participar nos 7 leitores, descubro que sou mais “leitora” do que “escritora”.




Tenho pensado sobre o que escrever, sobre que livro, poema, sensação... sobre a leitura, o prazer de ler, foi até onde cheguei por um livro que já li há algum tempo, "A arte de ler" de José Morais.

Livros, textos, são vida e como diz António José Bolívar Proaño (“O velho que lia romances de amor” de Luís Sepúlveda) “[…] quando uma mensagem lhe agradava particularmente, ele a repetia tantas vezes quanto julgava necessário para descobrir que a linguagem humana podia ser bela”.

As leituras cruzam-se, enleiam-se e não há um único livro, um único autor, ficam as ideias, os sentimentos e do que li, do que leio me (trans)formo.

Cito José Morais que escreve sobre a leitura, como sendo, antes de mais, um prazer pessoal.

“Não lemos todos um texto da mesma maneira. Há leituras respeitosas, analíticas, leituras para ouvir as palavras e as frases, leituras para reescrever, imaginar, sonhar, leituras narcisistas em que se procura a si mesmo, leituras mágicas em que seres e sentimentos inesperados se materializam e saltam diante de nossos olhos espantados. Há leituras nas “quais um sentimento de que o texto parece completamente novo, jamais visto anteriormente, é seguido, quase imediatamente, do sentimento de que ele estava sempre ali [grifado no texto], que nós, os leitores, sabíamos que ele estava sempre ali e sempre o conhecíamos como ele era, embora o reconheçamos agora pela primeira vez…” (A. S. Byatt, Possession).
[…] Não lemos todos os mesmos livros, não temos todos os mesmos desejos. A liberdade, inclusive a liberdade arrancada, conquistada de frente ou sub-repticiamente é indispensável para a experiência apaixonante da leitura.”

sábado, 19 de julho de 2008

O ÚLTIMO LEITOR





A América Latina continua a ser um berço imparável de muita da melhor literatura que se faz hoje em dia.

Entre os últimos livros que li, este "Último Leitor", do mexicano David Toscana, ocupa um papel de relevo.

É um grande trabalho de escrita e um magnífico exercício de funambolismo sobre o fio esticado da fronteira que separa ficção e realidade.

Conta-nos a história de um homem que aceita ser bibliotecário numa aldeia do deserto e que censura os livros que acha mal escritos, um homem que interpreta a vida a partir da memória das ficções lidas, que mistura o fantástico ficcional na realidade para que esta se revele na sua promessa de maravilha.

Esta é também a história de um crime e de como o bibliotecário o tenta descobrir e encobrir a partir dos romances que leu.

É finalmente a história de um amor improvável e impossível em torno do amor aos livros e às histórias que eles contam. O amor por uma mulher a quem mataram a filha e a quem o bibliotecário vai dando pistas verdadeiras e falsas a partir da paixão comum pela leitura e pelos livros.

"O último Leitor" é um pouco nós que, através das leituras, andamos à procura de um fio para nos entendermos connosco próprios e com o mundo.

EÇA

sexta-feira, 18 de julho de 2008

CARTA DE EÇA A OLIVEIRA MARTINS

UM GRANDE ABRAÇO PARA TODOS E EM ESPECIAL PARA O JOSÉ FANHA QUE ME TROUXE PARA ESTE PRAZER.

COMO "QUEIROSIANO DEPENDENTE" NÃO POSSO DEIXAR DE TRANSCREVER O QUE CONSIDERO SER UMA DAS MAIS DIVERTIDAS CARTAS DE EÇA DE QUEIROZ A QUAL RELEIO COM FREQUÊNCIA.

AUGUSTO DE FARIA,DIPLOMATA EM 1885,USAVA O TÍTULO DE VISCONDE DE FARIA E VAI SER SUBSTITUÍDO POR EÇA ,NO CONSULADO DE PARIS ,EM 1888.
A TRANSFERÊNCIA NÃO VAI SER PACÍFICA COMO RELATO DO PRÓPRIO EÇA.OIÇAMOS:

«MEU QUERIDO JOAQUIM PEDRO(OLIVEIRA MARTINS)

ESCREVO-TE À PRESSA DE PARIS ,E DO MEIO DE CENAS EXTRAORDINÁRIAS PROMOVIDAS PELA GENTE FARIA. CONTEI-AS AO PINA(MARIANO) EM CARTA REDIGIDA EM ESTILO TELEGRÁFICO,E REALMENTE NÃO POSSO AFRONTAR O NOJO DE TAS CONTAR DE NOVO,COM PORMENORES.BASTA SABER QUE QUANDO FUI AO CONSULADO ,TOMAR POSSE-FOI A VISCONDESSA DE FARIA QUE ME RECEBEU COMO SENDO ELA O CÔNSUL. NÃO SEI SE A CONHECES. É UMA ESPÉCIE DE VIRAGO,NO GÉNERO POTICHE,COM UMA VOZ GROSSA E ARROUCADA,E O GESTO TREMENDO. FEZ-ME UMA UMA PAVOROSA CENA DE BERROS,DE PROTESTOS,DE IMPRECAÇÕES,DE GANIDOS,DE MURROS NA MESA-QUE EU ESCUTEI VARADO,ATÓNITO,DE CHAPÉU NA MÃO,ORA RECUANDO QUANDO ELA ERGUIA O PUNHO AMEAÇADOR,ORA DANDO UM PASSO PARA A PORTA,EM MOVIMENTO DE FUGA,QUANDO POR UM INSTANTE,ELA VOLTAVA COSTAS. EM RESUMO,A MEDONHA CRIATURA DECLAROU QUE SÓ ELA ERA O CÔNSUL,AQUELE CONSULADO ERA O DELA,E NÃO HAVIA MINISTROS,NEM LEGAÇÕES,NEM AUTORIDADES QUE LHE FIZESSEM ENTREGAR AS CHAVES. NUM INTERVALO EM QUE ELA SE INTERROMPEU,ESFALFADA,DEI UM SALTO PARA O REPOSTEIRO,VAREI A PORTA ,GALGUEI ESCADAS ,PRECIPITEI-ME NUM FIACRE E SÓ PAREI EM CASA DOS VALBOM COMO NUM ASILO SEGURO.

MAS NÃO ACABA AQUI. IMAGINA TU A LEGÍTIMA INDIGNAÇÃO DO CONDE DE VALBOM. O NOSSO CARLOS(LOBO DE ÁVILA) TEVE UMA FÚRIA QUE LHE FEZ UM MAL IMENSO AO FÍGADO. NA LEGAÇÃO ESTAVA TUDO ATÓNITO- E VÁRIOS PORTUGUESES DA COLÓNIA ABRIAM OS OLHOS ESBUGALHADOS PARA O CASO SEM IGUAL. VALBOM DECIDIU-E ERA A ÚNICA SOLUÇÃO LÓGICA-FAZER OCUPAR O CONSULADO PELO VICE-CONSUL HONORÁRIO,PORQUE O CHANCELER ESTAVA AUSENTE,E FARIA EM LISBOA TRAMANDO. COM EFEITO O VICE-CONSUL,NO DIA SEGUINTE,VAI FAZER A OCUPAÇÃO-MAS,OH CASO MIRÍFICO,NÃO HAVIA JÁ CONSULADO! O ESCUDO DE ARMAS FORA ARREADO,PORTAS TRANCADAS,E ATRAVÉS DE UM GUICHET COMO NOS MELODRAMAS,UMA PORTEIRA DECLAROU QUE A SENHORA VISCONDESSA DE FARIA JÁ PROIBIRA A ENTRADA AOS AMANUENSES,E NÃO A PERMITIRIA A MAISNINGUEM. DAVA-SE AQUI O CASO TALVEZ ÚNICO NOS ANAIS DA BUROCRACIA EUROPEIA DE UMA REPARTIÇÃO DO ESTADO SEQUESTRADA POR UMA SENHORA! SÓ EM PORTUGAL,CONFESSA TU QUERIDO JOAQUIM PEDRO,SUCEDEM ESTES INCIDENTES .NEM NA ROMÉLIA,NEM EM TUNES! SÓ NAQUELE PAÍS DE FARSA QUE INVENTOU OFFENBACH,E NO NOSSO! CUBRAMOS A FACE,AMIGO! O VALBOM NÃO TINHA SENÃO A FAZER UMA COISA COERENTE E DIGNA-E FÊ-LA. PÔR O CASO NAS MÃOS DE GOBLET,E ESTE,DECERTO INTEIRAMENTE ÉPATÉ NAS MÃOS DA POLÍCIA.

AÍ VAI POIS O PREFEITO DA POLÍCIA,O CHEF DA SURETÉ,E VÁRIOS SERGENTS DE VILLE,A CAMINHO DO CONSULADO,A DAR BATALHA À VISCONDESSA DE FARIA,E A RETOMAR A REPARTIÇÃO DO ESTADO OCUPADO PELA CUIA E PELA TOUNURE DA TERRÍVEL SENHORA. NÃO SABEMOS O QUE ENTRE ELES SE PASSOU. APENAS É CERTO QUE O PREFEITO DA POLÍCIA VOLTOU DE LÁ DE DENTRO,DO COVIL,PÁLIDO,DECLARANDO QUE SE TODAS AS MULHERES ERAM ASSIM EM PORTUGAL,PORTUGAL ERA BEM UM PAÍS EXTRAORDINÁRIO! MAS CREIO QUE O HOMEM NO FUNDO VINHA ADMIRADO AVEC CET HEROISME DE FEMELLE! EM TODO O CASO TRAZIA A PROMESSA DE QUE ,NO DIA SEGUINTE,HOJE,ENTREGARIA TUDO AO VICE-CÔNSUL,OU ANTES ,AO COMISSÁRIO DA POLÍCIA. E PARECE QUE TUDO,COM EFEITO,FOI POUCO MAIS OU MENOS ENTREGUE-OU ESTÁ-O SENDO. DETALHE SUPREMO! O ESCUDO DE ARMAS ARREADO NA VÉSPERA DO ALTO DA PORTA,ESTAVA PENDURADO POR UM CORDEL DAS GRADES DE UM POSTIGO DO RÉS-DO-CHÃO!CONFESSA,QUERIDO,QUE A VISCONDESSA DE FARIA ACHOU AQUI UM SÍMBOÇO PROFUNDO E ENGENHOSO!AS QUINAS PENDURADAS POR UMA GUITA! O VELHO ESCUDO POR UM FIO! O EMBLEMA DOS SÉCULOS SUSPENSO DE UM BARBANTE E ARRASTADO NO ENXURRO DE PARIS! QUE É UMA MULHER DE GÉNIO! ANDAVAS TU AÍ A PROCURAR A FÓRMULA DEFINITIVA DA NOSSA SITUAÇÃO SOCIAL,SEM CONSEGUIR,EM VINTE ANOS DE LITERATURA,ACHÁ-LA BEM EXACTA E NÍTIDA.POIS BEM! A VISCONDESSA DE FARIA VEM,E,NUM RASGO DE INSPIRAÇÃO,ACHA ESSA FÓRMULA E REALIZA-A_ AS QUINAS DE PORTUGAL POR UM FIO!
TUDO ISTO É FANTÁSTICO!MENOS FANTÁSTICO PORÉM QUE A PRÓPRIA FARIA,E O FARIA,E TODA ESTA TRIBO!TÊM-ME CONTADO AQUI ANEDOCTAS DE UM GROTESCO INCOMPARÁVEL.NÃO TAS REPITO PORQUE RECEIO QUE,ARRASTADO PELO ENTUSIASMO DE ARTISTA,TU AS CONTES-E ALGUMAS DELAS PODERIAM,SE FOSSEM PUBLICADAS OU SABIDAS,PREJUDICAR O FARIA! ENFIM,PARA RESUMIR,EU ESTOU ENOJADO ATÉ Á SACIEDADE-E SACUDO AGORA DE MIM,COM PRAZER,ESTE SÓRDIDO E TORPE ASSUNTO»

A QUESTÃO DO CONSULADO NÃO TERIA SEQUÊNCIA.EÇA PERMANECERÁ NO SEU POSTO DE PARIS ATÉ 1900,DATA DA SUA MORTE,COMO NOS ENSINA CAMPOS MATOS.

terça-feira, 15 de julho de 2008

"RAFAEL"

"Rafael", de Manuel Alegre, é um livro diferente na actual produção literária portuguesa. Por várias razões: a) porque se situa numa área temática pouco trabalhada entre nós - o memorialismo; b) porque é um documento de valor para o conhecimento da mentalidade portuguesa da segunda metade do século XX. Além disso, é uma obra muito bem escrita. Analisemos, pois, com mais pormenor, cada um destes aspectos.
Desde a sua obra "Alma", que Manuel Alegre atingiu, na prosa ficcional, um justo equilíbrio entre forma e conteúdo. Equilíbrio que decorre de uma adequada utilização da linguagem ao tema que aborda - o que faz sobressair as dimensões psicológica e social das personagens que povoam a sua narrativa. Linguagem saída da sua oficina poética, a conferir à "história" uma forte densidade humana.
A área temática em que o seu "Rafael" se inscreve, coloca-o no centro do memorialismo português. E este é um dos méritos principais do livro, até porque o memorialismo, enquanto género literário, é praticamente inexistente entre nós. Mas, se quisermos seguir uma corrente que surgiu nas últimas décadas do século XX, poderemos dizer que estamos perante uma obra de um novo género literário, denominado de autoficcção ou autonarração, ou seja, algo que se situa entre a autobiografia e o romance. Por tudo isso, esta obra deve ter um lugar de relevo na nossa literatura actual.
Para mim, no entanto, o seu mérito maior é outro: "Rafael" é um documento importante para a história das mentalidades no Portugal do terceiro quartel do século XX: a mentalidade do adolescente radicado numa terra de província; a mentalidade do estudante de Coimbra dos anos 50, 60, que se descobre - que se vai descobrindo - como ser de cultura e cidadão que se quer interveniente (estudante cercado pelos muros de silêncio e opressão, que se erguem no interior da sua universidade-cidadela); a mentalidade do jovem oficial despejado na África da guerra colonial, em que o absurdo, o sórdido, o grotesco, a crueldade (e um toque de humanidade) se entretecem numa rede complexa, em que o homem dificilmente sobrevive; a mentalidade daquele que, por Paris e outras paragens, vai percorrendo a via-sacra do mais duro dos exílios - o exílio do refugiado político. E é dentro desta óptica, a da descida ao mundo interior de um jovem português da diáspora, que Manuel Alegre atinge um dos momentos mais altos do seu livro - e, estou em crer, de toda a sua obra narrativa. Esse jovem, que é ele e não é (como convém a um autêntico livro de memórias), é o símbolo de uma geração que fez da luta política um caminho para a liberdade (o mesmo será dizer, para a dignidade). Caminho que o leva a repudiar qualquer forma de totalitarismo, seja ele o "fascismo" salazarista ou o "comunismo" soviético.
Por tudo o que ficou dito, repito, torna-se evidente que "Rafael" é a história de uma época, contada por quem a viveu (e sofreu), mas que, em simultâneo, foi adquirindo o necessário recuo para poder perspectivar, com clareza, os problemas em que esteve envolvido. Ou, por outras palavras, uma obra imprescindível - insisto - para o conhecimento de uma dimensão importante da História do Portugal do século XX.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

"A Rapariga que Inventou um Sonho" de Haruki Murakami


Começo por avisar que sou um viciado crónico por Murakami. Quando aparece um livro deste autor nas livrarias, como qualquer outro viciado, arranjo maneira de adquirir a “minha droga”.
Li tudo o que está traduzido em português, e muita gente me diz que devia ler os clássicos e não perder tempo nestes livrecos de supermercado, que basta ler um para sabermos os outros. Mas eu não me consigo livrar deste “mal”. Talvez o livro de Bayard que o Fanha nos trouxe seja um antídoto para isto.
Este livro de pequenos contos deixa um amargo na boca, parece muito pouco, não recomendo começar por aqui. Recomendo “Kafka à Beira-mar” esse é o livro que nos convida a ler outros livros, que nos faz referências a outras leituras e músicas, que nos dá momentos de prazer impressionantes com parágrafos que ficam na nossa memória. Lembro-me de uma personagem especial que fala com os gatos, mas os outros não o entendem e ele passa por um tolo, é Nakata.
Nestes curtos contos, apenas se confirma tudo o que gosto de Murakami: a solidão das suas personagens - elas vivem sozinhas com os seus gatos e muitas vezes desempregadas num país onde as pessoas passam a vida a trabalhar; a estranheza das histórias, onde os acontecimentos vão-se sucedendo improvisadamente; das ligações que estabelece com os outros, com a cultura, com a literatura e com a música; como constrói as suas narrativas de forma improvisada, como uma música jazz; gosto especialmente da forma que ele negligencia o papel da escola, e em três dos seus livros os adolescentes abandonam a escola - o narrador incita essa atitude.
Além do mais, gosto das ideias que sublinha, identifico-me com elas. Claro que não é filosofia profunda, são romances ligeiros, mas eu sou apenas um professoreco do 2º ciclo.

domingo, 13 de julho de 2008

OS LIVROS QUE NÃO LEMOS E OS QUE LEMOS




O texto do Albano fez-me regressar a um dos livros mais interessantes que li recentemente. O título parece o de um desses livros de suposta auto-ajuda: “como ser culto e ministro da agricultura em 20 lições”, “como amar 150 mulheres em 3 horas e um quarto”, “como gerir uma empresa sem sair da casa de banho”, etc.

Afinal, trata-se de um livro inteligente, erudito, divertido, muito racional, muito francês, muito motivador. Um livro sobre a complexidade do acto de ler e a diversidade das sua práticas.

O autor, Pierre Bayard, professor de literatura e psicanalista, mostra-nos que quando lemos estamos a ler muito mais do que o texto que temos à frente dos olhos. Estamos a fazer essa leitura a partir do nosso livro interior onde se cruzam as nossas vivências de leitor às quais juntamos farrapos de outras leituras, opiniões alheias, memórias de filmes, imagens soltas, uma farândola que agarra em cada texto e, no acto de ler um livro, constrói um outro livro, um livro único.

Conhecer estes livros únicos que resultam da leitura de cada dos outros leitores é o lugar onde reside o prazer da partilha de leituras que é o que vamos tentar fazer neste blog.

Em Prol da Leitura

É vulgar lermos na imprensa ou ouvirmos na rádio notícias sobre datas comemorativas de pessoas que têm dedicado a sua vida à literatura: "O escritor X fez vinte e cinco anos de vida literária"; "O editor Y comemora os seus cinquenta anos de actividade editorial". O que eu nunca vi foi qualquer notícia sobre o leitor que dedicou a sua vida à leitura. Qualquer coisa como: "Os amigos do senhor Z promovem um jantar de homenagem pelo 60º aniversário da sua actividade como leitor". O que me parece extremamente injusto, pois, sem leitores, não haveria escritores, nem editores. Em suma, não haveria literatura!
Foi pensando nesta situação – verdadeiramente aberrante – que eu me resolvi escrever estas mini-crónicas, expressão da viagem que iniciei há mais de sessenta anos e que espero esteja ainda longe do seu termo. Essa foi a razão principal, mas outra haverá, não menos ponderosa: os textos que se hão-de seguir a este, talvez possam vir a ser úteis àqueles que não têm o tempo ou a paciência necessários ao cultivo desta actividade – tão nobre e tão antiga, quanto a da leitura…
Albano Estrela