domingo, 13 de novembro de 2011

FELISBERTO HERNÁNDEZ, UM AUTOR ANTES DO SEU TEMPO



“O autor tem o sentido inato de que um dia será clássico”

(Jules Supervielle, em carta que lhe dirigiu)


Em crónicas anteriores, tenho-me referido a autores que não resistiram aos efeitos do tempo e que, por isso, já se lêem com dificuldade. E poucas vezes, muito pouco mesmo, tenho feito referências a autores que se anteciparam ao seu tempo e que, por isso, também se lêem com alguma dificuldade. Estão neste caso Julio Cortázar, de quem falei a propósito do seu “Rayuela” (“O Jogo do Mundo”, na edição portuguesa da Cavalo de Ferro) e Felisberto Hernández, com os seus “Contos Escolhidos” (edição de 2011, da Oficina do Livro).
São nove contos, pertencentes a períodos diferentes da escrita do autor. Alguns acentuadamente musicais, uma espécie de sonata em que uma nota procura a nota seguinte, numa relação sensitiva, cuja compreensão imediata nos foge, pois decorre, única e exclusivamente, da emoção, da intuição do autor. Notas musicais que são, neste caso, as palavras que se procuram, que se afastam, numa lógica nem sempre evidente. Algo que só adquire sentido se aceitarmos (sem reservas) o mundo subjectivo do autor. Algo que tem o contorno do sonho, em que o inesperado, o aberrante se tornam naturais para o sonhador, congregando, na mesma atmosfera emocional, pessoas, objectos, situações pertencentes a contextos diversos.
Assim, com exemplo, atente-se neste fragmento, extraído do conto ”Terras da Memória”

“Em Mendoza hospedaram-nos em casa do chefe dos scouts. Pouco depois de ter chegado eu desfrutava uma solidão agradavelmente submersa num banho de água morna. A água chegava-me até ao pescoço e os azulejos brancos daquele quarto de banho chegavam quase até ao tecto.
Olhava os objectos que tinham deixado fechados comigo e pensava nas pessoas que um momento antes haviam estado na sala; eu tinha tocado piano e conversava com as raparigas da casa - que também pertenciam à instituição de scouts e também iriam atravessar a pé, connosco, a cordilheira -”.
Partindo de um facto de uma realidade quotidiana (“Em Mendoza hospedaram-nos na casa do chefe dos scouts” ), o texto envereda rapidamente para o mundo onírico, em busca do sentido que se oculta nas palavras que, inevitavelmente, vão surgindo.
Palavras, sonoridades, membros estilhaçados, tudo aflui no processo da escrita que se desdobra para o lado de dentro, que não procura o leitor, mas espera que ele a encontre. Veja-se este fragmento de “A casa inundada”:



Finalmente apareciam as palavras prometidas - agora que eu não as esperava -. O silêncio apertava-nos debaixo dos ramos mas não me animava levar o bote mais adiante. Tive tempo para pensar na senhora Margarida com palavras que ouvia dentro de mim e como que abafadas numa almofada: “Coitada, dizia a mim mesmo, deve ter necessidade de comunicar com alguém. E como está triste, vai ser difícil manejar esse corpo...”

Ao longo desta crónica não procurei fazer o estudo literário destes contos (períodos a que pertencem, diferenças de estilo ou de concepções literárias), mas, sim, chamar a atenção para o que de maravilhoso, de novo eles contêm. Enfim, deixei-me embalar pelas palavras, pelo imprevisto dos textos, remetendo-me ao meu papel de leitor que se deleita com a escrita de um autor que nos concita a participar na inteligibilidade do que se oculta no mistério das palavras.

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