sexta-feira, 29 de junho de 2012

E NO ENTANTO ELA MOVE-SE




Grande, grande escritora. Descobri-a tarde e fiquei mais rico. Em literatura. Em emoção.

McCullers é uma mestre das sombras que sugere mais do que mostra.

Manipuladora de pequenos acontecimentos inquietantes, espalha na sua escrita a armadilha de pequenos desvios em relação ao foco da máquina de filmar através da palavra com que olha um universo humano encerrado em si próprio como, aliás, já acontecia na “Balada do Café Triste”.

Aqui, tudo se passa num quartel onde não se passa nada como é normal nos quartéis quando não guerra.

No entanto, as rotinas diárias escondem pequenos-grandes desvios, estranhos comportamentos entrevistos, mal revelados no início e que se vão tornando mais significativos em profundidade até se tornarem obcecantes.

McCullers semeia bombas de profundidade nos pequenos reparos com que constrói uma ópera baça mas estranha e sufocante.

É o caso do pequeno e breve à parte acerca do capitão de quem diz, como quem não quer a coisa, que se apaixonava sempre pelos amantes da mulher.

E os acontecimentos que em si não têm nada de extraordinário, são promessas vagas disfarçadas de grandes tempestades. Como é o caso do soldado que vai passear nu para a floresta e fica horas a espreitar a mulher do capitão pela janela. E que, depois, entrando na casa e ficando a observá-la em silêncio pela noite fora enquanto ela dorme meio despida.

Mais estranho ainda será o criado filipino da mulher do major, a sua paixão por música erudita e os seus sonhos de fuga com a patroa.

E é difícil resumir uma história que, sendo aparentemente parada, dela poderíamos dizer que, no entanto, ela move-se. Move-se e de que maneira!


domingo, 10 de junho de 2012

RACISMO E PRECONCEITO





Ao longo deste belo livro veio-me à memória com frequência uma frase que sempre achei algo misteriosa e só acessível à “filosofia” de certos frequentadores habituais de alguns bares quando pedem ao barman: “Um whisky com água lisa”.

A história de Pepetela, inspirada em acontecimentos reais, é-nos dada numa prosa lisa.

Apetece dizer que uma boa história é uma história é uma história. E é isso mesmo que Pepetela nos oferece: um bela história de amor desenvolvida num ritmo certo e sem sobressaltos,

Tudo se desenvolve por vezes com alegria, por vezes com desespero, por vezes com melancolia, sempre numa prosa delicada e sem rodriguinhos nem desvios.

Pensando bem, talvez não seja apenas uma história. Talvez sejam duas.

A principal é a história de amor entre um angolano e uma mongol iniciada em Moscovo nos anos 60 e terminada nos anos 90 ou 2000 em Cuba e finalmente em Angola.

A outra é a história da queda e transformação política sofrida nestes tempos nos países ditos socialistas, desde a URSS aos países africanos e Angola em primeiro lugar.

Pepetela não esconde nem o amor á sua terra de Angola, nem o racismo, o preconceito, o abuso, a injustiça, onde quer que eles surjam, na Rússia ou na Mongólia socialistas, na Argélia recém-independente ou na Angola que vemos no seu processo de conversão ao capitalismo e nos é mostrado tamém sem disfarces nem acertos de contas.

O personagem principal, branco, nacionalista, revolucionário, vai de Angola no início dos anos 60 para a Universidade de Coimbra e, depois de vários desvios, para Moscovo onde estuda Economia e adquire treino militar. Combatente na guerra colonial, herói reconhecido, promovido a general, reforma-se e convive com os novos tempos sem se deixar corromper .

O amor, nunca traído ou substituído, reaparece quando o fim da vida se anuncia.

Seria fácil pegar nesta história verdadeira e levá-la à ponta da lágrima. Mas Pepetela, de dentro da sua excelente oficina de escritor, leva a narrativa sem tremeliques, numa escrita limpa, forte, correcta e lisa como a tal água do whisky.




segunda-feira, 4 de junho de 2012

Oxigénio


A evolução da humanidade esteve desde sempre fundamentalmente ligada ao desenvolvimento científico e tecnológico. Foi através das descobertas da ciência que o modo de pensar baseado na superstição e no dogma foi substituído e finalmente abandonado. E apesar de existirem bolsas geográficas e segmentos na sociedade que ainda insistem em ver o mundo segundo padrões pré-científicos, a ciência é a forma hegemónica de interpretar e relacionar os factos do mundo concreto. 

Essa dimensão social da ciência levanta inúmeras questões acerca do valor económico das descobertas científicas e, em última instância, sobre a independência dos protagonistas. E naturalmente, não há porque assumir que esses condicionantes não influenciem a leitura histórica das descobertas quando colocadas em perspectiva. Mas para além dessas questões, há uma dimensão puramente epistemológica, que, pelo menos para os cientistas, é a mais fascinante de todas. Questões que poderiam ser sintetizadas em duas perguntas chave: Como se deve qualificar uma descoberta científica? Pelo seu pioneirismo, ou pelo espaço conceptual e metodológico que funda e abre? São em torno dessas duas questões que a  interessante peça “Oxigénio” concentra o seu foco cénico, mais especificamente, através duma engenhosa alternância narrativa que situa os personagens em 1777 e em 2001, o ano do Centenário da instituição do Prémio Nobel. 

Num interessante exercício de ficção, imaginam os seus autores, Carl Djerassi, figura central na síntese da pílula anti-concepcional, e Roald Hoffmann, Prémio Nobel de Química de 1981, que a Fundação Nobel decidiu instituir o Prémio “Retro-Nobel” de modo a galardoar as grandes descobertas que precederam a criação dos Prémios Nobel. Assim, a peça retrata como o Comité Químico da Real Academia Sueca das Ciências, encarregue da escolha pela Fundação Nobel, supõe inicialmente ter em mãos uma tarefa relativamente simples, dado que a ciência de então estaria mais livre de controvérsia, de disputas sobre a prioridade, e do sensacionalismo decorrente. Assim, decide o Comité Químico focar a sua atenção na descoberta do Oxigénio, que deu origem à revolução química. Nesse contexto, Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) é uma escolha aparentemente incontornável, tendo em vista o conjunto dos procedimentos metodológicos que criou e que lhe permitiu no período de 1770-1780 explicar a natureza da combustão, da ferrugem, e da respiração animal, e do papel do oxigénio nestes processos. Mas o que dizer dos que efectivamente descobriram independentemente o fundamental elemento químico pela primeira vez? Mais concretamente, o farmacêutico sueco Carl Wilhelm Scheele (1742-1786), o primeiro a descobrir o "ar-fogo" supostamente em 1774, e o sacerdote unitarista inglês Joseph Priestley (1733-1804), que descobre o oxigénio pouco depois, mas que não abdica de interpretar a sua descoberta em termos da equivocada teoria do flogisto, segundo a qual todos os materiais combustíveis contém uma substância inodora, incolor e sem peso que é libertada quando da combustão. 

Mas se em 2001 o Comité rapidamente percebe que qualquer escolha não estava livre de dificuldades, a situação não fica menos simples à luz dos acontecimentos de 1777, quando os três cavalheiros e as respectivas esposas são convidados do Rei Gustavo III da Suécia para expor as suas descobertas na sua corte em Estocolmo. 

Um texto de grande interesse e com soluções cénicas de grande originalidade. Também digna de menção é a tradução do professor Manuel João Monte, professor de química da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

Orfeu B.