sábado, 18 de maio de 2013

Teorema


Não são as coisas que parecem mais certas e simples
que se revelam, em conclusão, mais obscuras e difíceis?
Não é a própria vida, na sua naturalidade, 
que é misteriosa - e não as suas complicações?


Actualmente
lê O Banquete … Pode fazê-lo?
inteiramente de forma impune?
Enfim, na minha família, todos vivemos
na existência como ela deve ser;
as ideias através das quais nos julgamos a nós próprios
e aos outros, os valores e os acontecimentos,
são, como costuma dizer-se, um património comum 
a todo o nosso mundo social.


Ele doou aos operários a sua fábrica; vocês são agora os seus proprietários: mas não vos humilha o facto de terem recebido esta doação?

A participação no poder sobre a fábrica, obtida através de uma série de doações - ou melhor dizendo concessões - onde pode conduzir a classe operária?

A mutação do homem em pequena burguesia seria total?


Pier Paolo Pasolini

Depois de ver o intrigante filme, ler o livro, passados mais de 35 anos não deixa de ser experiência invulgar. Mas a perspectiva temporal não apaga a indelével marca da impressão inicial. Alguma surpresa inesperada? Não exactamente, pois quando se trata de um dos mais provocantes filmes do mestre do cinema italiano, Pier Paolo Pasolini, a surpresa é uma constante e já o sabíamos à partida. A inteligência do encenador e poeta nunca cessa de nos surpreender. Teorema, do grego, "exibição", "intuição" ou "teorema no sentido matemático", foi produzido em 1968, com roteiro do encenador; o livro surgiu anos mais tarde, e subsequentemente, o texto deu origem a uma ópera de Giorgio Battistelli e a uma peça de teatro em Holanda. 

O texto aborda a crise estrutural do capitalismo (que só hoje percebemos quão profunda) do ponto de vista da sua célula mais básica: a família. A acção tem lugar numa família da alta burguesia de Milão que ao receber um hóspede, colega do filho, vivência um processo de irreversível dissolução. O jovem hóspede seduz toda a família, a criada, o filho, a filha, a mãe e o pai, transformando-lhes no processo o sentido de suas existências. Pasolini pretende demonstrar que um relacionamento regulado pela pulsão básica do sexo, liberta os personagens dos condicionantes subjacentes à sociedade de classes, pondo a nu a fragilidade e a artificialidade da ordem burguesa. O relacionamento com o jovem, desarticula a identidade burguesa dos personagens e a transformação decorrente é necessariamente de ruptura. O pai decide doar aos seus operários a fábrica que lhe pertencia e alterar a sua orientação sexual. O filho procura encontrar uma nova identidade através da negação do que lhe estava anteriormente reservado por conta da sua situação sócio-económica e ser artista plástico. A filha fica paralisada, com o punho cerrado para não perder as suas lembranças mais fundamentais. A mãe mergulha na tristeza e em aventuras amorosas com homens mais novos. A criada volta à sua aldeia e entrega-se à sua religiosidade febril e auto-destrutiva.

Mas Pasolini, com a genialidade que lhe era característica, não nos permite  extrair da trama interpretações mono-cromáticas. De facto, apesar de ser essencialmente marxista a análise sobre a esterilidade da ordem burguesa, a leitura de Pasolini da realidade é mais rica e tem uma clara vertente de sacralização. Os personagens da trama são "tocados", "iluminados" pela presença e pelo relacionamento com o enigmático visitante. O gesto do industrial, paterfamilias e detentor dos meios de produção, tem a dimensão mística do despojamento auto-imposto de Buda, Francisco de Assis e outros. A religiosidade da criada é um retorno ao culto primitivo do milagre e da sua associação à auto-flagelação. 

Também na sua forma, o livro de Pasolini, não deixa de ser invulgar, dado que o texto é pontuado por belos poemas que guiam o leitor ao longo da narrativa. Um texto de invulgar beleza, cuja conclusão parece-me ser a mais óbvia: a inteligência e a sensibilidade de artistas como Pasolini fazem-nos muita falta.     

Orfeu B.



domingo, 12 de maio de 2013

LONDRES OU UMA VASTA CONSPIRAÇÃO PARA DESORIENTAR OS ESTRANGEIROS





Carlos Vaz Marques é o director desta magnífica colecção de livros sobre viagens, não das de turismo mas das outras, das que se fazem por dentro do coração, da inquietação, da curiosidade.

Enric González é jornalista e foi correspondente do El País durante vários anos em Londres. E sobre a cidade diz-nos ele:

"Há cidades belas e cruéis como Paris. Ou elegantes e cépticas, como Roma. Ou densas e obsessivas como Nova Iorque. Londres não pode ser reduzida a antropomorfismos."

Neste livro delicioso, que se lê de uma assentada, o autor passeia pelo espaço fíisico de Londres, ruas e praças, pubs e estações de Metro, museus e catacumbas. E viaja também pela História desta cidade mítica e tão cheia de História como de histórias e de literatura.

Com um notável sentido de humor, Enric González brinca com o que vê e ouve e, se o seu olhar vem de fora, a sua palavra mergulha apaixonadamente nos dédalos arquitectónicos e humanos da cidade para lhe cantar uma bela balada de amor.

Procure-se a a lógica de Londres e certamente não a encontraremos. González cita George Mikes quando afirma que:

"É preciso ter consciência de que uma cidade inglesa é uma vasta conspiração para desorientar os estrangeiros."

E conclui que:

"São precisos muitos passeios para percebermos a harmonia secreta dentro do caos."

O livro resume esses passeios que nos vão revelando o crescimento da cidade no tempo e as diferenças que vão caracterizando bairros e populações. E também nos leva pela organização espafúrdia da Casa Real, pelas origens dos Clubes de Futebol Londrinos, pelas histórias de Jack o Estripador, pela destruição do sistema de saúde inglês pela política ultra-liberal de Margaret Thatcher, pela estrutura e organização política do parlamento inglês, pelas ruas da City onde se resolvem os negócios do mundo, pelos pubs e pala diversidade de cervejas e whiskies, pelos hábitos e natureza da Igreja Anglicana, pelas memórias do período de ouro imperial que foi o do reinado da Rainha Vitória.

E de tudo podemos extrair uma atitude de ironia, de curiosidade, de estranheza, de respeito pela diferença. É assim que se conhece o mundo. Pelos nossos pés e também pela arte da narrativa de autores como Enric González.

(E a propósito, Carlos Vaz Marques diz-nos na introdução que há mais dois livros do mesmo autor com os títulos de "Histórias de Roma" e "Histórias de Nova Iorque", tendio este último recebido grandes e raros elogios de Joé Saramago. Fico ansioso pela tradução para português. Senão lá terei de os mandar vir de Espanha. Carlos, faça o favor de se antecipar e publique-os na sua colecção)



quarta-feira, 8 de maio de 2013

À BEIRA DA LIBERDADE





grande História é feita de muitas pequenas histórias.

Falamos do 25 de Abril, da maravilhosa chegada da liberdade, da festa de podermos falar abertamente uns com os outros, de nos abraçarmos e de sonharmos por vezes de formas abstrusas e delirantes, mas também esses delírios faziam parte da descoberta de um país que estava há 48 anos debaixo do ferro da ditadura. Da memória desses dias faz parte também o momento em que se abrem as portas das prisões onde imperava a tortura e o medo.

A História tudo isso vai registando com imagens, textos, análises.

Mas, a Joana Pereira Bastos não é historiadora, é jornalista. Está interessada nas pequenas histórias de que é feita a grande História. Histórias pessoais de alguns homens e mulheres que foram presos poucos meses ou poucas semanas antes do 25 de Abril e encerrados em Caxias numa altura em que a repressão se intensificava porque também a resistência crescia a olhos vistos.

A autora priveligia a emoção no seu processo narrativo. O lá por dentro dos que sofreram a tortura e depois se calaram porque muitos deles ainda hoje têm pesadelos, insónias, alterações psíquicas permanentes que os fazem tentar calar e esquecer a extrema dureza de uma polícia, a PIDE, que foi muitíssimo eficaz na destruição das pessoas que agrediu, torturou e humilhou.

É o documento humano que nos arrasta num apaixonante entretecer de dados factuais e relatos pessoais. A descrição das torturas, estátua, sono, agressões brutais. Documento precioso. Eu que o diga. Podia lá ter estado nesses dias. Companheiros meus por lá passaram. Vários dos presos de que o livro fala são amigos queridos. Nuno Teotónio Pereira, Conceição Moita, Luís Moita, José Manuel Tengarrinha... Tremi ao conhecer a história deles, o terror por que viveram, as dores que tiveram, as angústias por que passaram.

Poderia aqui trazer um sem número de pormenores mas recordo dois momentos que me emocionaram de forma diferente.

Durante o dia 25 de Abril, eles souberam que tinha havido uma revolução. Mas continuavam fechados e vários deles pensaram que podia tratar-se de um golpe de extrema-direita, uma "pinochetada". Durante a noite de 25 para 26 vários se prepararam mentalmente para enfrentar o fuzilamento. E só no fim do dia 26, já madrugada de 27, é que os portões se abriram para um tempo novo e tão esperado.

Outro momento, uma narrativa notável de um ex-preso que anos depois entra num restaurante e dá com o PIDE que o torturara a almoçar com a família. Vai ao carro buscar uma pistola para o matar. Quando regressa ao restaurante o PIDE já se tinha ido embora.

A democracia e a liberdade acabaram com as grades mas não com as dores e essas é bom que fiquem guardadas na nemória.

Obrigado Joana.

domingo, 5 de maio de 2013

A FORMA COMO SE ESCREVE



Há cerca de 30 anos, mais coisa menos coisa, o encenador José Caldas encenou esta "Vida íntima de Laura" no TAS de Setúbal. Não pude ver. Lamento. Mas fiquei com esta Laura na caixinha da minha curiosidade, um texto de Clarice Lispector.

Vi um outro espectáculo encenado por José Caldas, um dos espectáculos que mais me emocionou na vida: "Acende a noite" a partir de textos de Ray Bradbury.

Há poucos dias soube que é ele que vai encenar um texto meu ("El hombre") para o Teatro Jangada de Lousada. Que bom!

Penso nestas ligações misteriosas que a vida tece quando pego, quase religiosamente, na edição portuguesa de "A vida íntima de Laura" e a leio avidamente.

Por vezes, tão ou mais importante do que aquilo que se escreve é a forma como se escreve. "A vida íntima de Laura" é um exemplo excepcional da importância que tem a forma de contar de uma das mais notáveis escritoras da língua portuguesa do séc XX

Laura é uma galinha vulgar, simpática, com um pescoço muito feio, burra, que não pensa mas pensa que pensa, casada com o galo Luís que gosta muito dela.

Nesta história vulgar Clarice dialogando directamente com o leitor, inventando o leitor, faz dele um cúmplice na forma divertida e um tanto blasé como conta a vida de Laura sem nenhuma cedência ao mau gosto, ao bonitinho, ao didactismo. Nomeadamente levantando a possibilidade de Laura, a simpática Laura, acabar na panela no meio de molho pardo.

As ilustrações são deliciosas, amáveis. Se se pode dizer isso de um traço, de uma paleta de cores, de uma forma de ocupar a página.

E há que elogiar a editora, Relógio d'Água, pela edição de quatro dos livros de Clarice Lispector para crianças que são exemplares e que deveriam ser lidos atentamente por muitos dos nossos escritores para a infância



quarta-feira, 1 de maio de 2013

No Jardim das Paixões Extintas



Um quarto de século passado sobre os dias plenos da liberdade e do caos - a semana mais romântica do meu namoro com a história, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974 -, a memória trai-me, envolta na neblina melancólica das utopias mortas, tristes flores murchando no jardim das paixões extintas, folhas caídas sobre o caminho por onde vou, no surpreendente encantamento do último amor e da sua dorida subversão. Então, eu imaginava a semelhança com a outra cidade feliz, a do meu pai - Madrid na Primavera de 1936 -, outra pura ilusão que ele não me tinha contado, porque ainda não chegara ao fim do seu regresso à beira do Tejo, do começo da despedida e da imperfeita reconstrução da memória estilhaçada. 


Os tempos são outros … A realidade empurra-nos subitamente para o vazio a abarrotar de coisas, para o excesso, para o totalitarismo do dinheiro, do sexo, para o mimetismo, a indiferença, os riscos da salvação possível no instante em que se tornou a vida, essa certeza plena de presente, única e absoluta face do tempo.

Álvaro Guerra 


Um impressionante relato sobre a vida de personagens que protagonizaram o combate mortal entre o fascismo e o comunismo no século XX pela pena do jornalista, diploma e escritor Álvaro Guerra (1936-2002). Uma densa trama histórica e emocional descrita por um jornalista, alter ego do relato, que deslinda, através das memórias filtradas do pai, militante comunista e combatente pela causa republicana em Espanha, a forte ligação entre a paixão amorosa por uma combatente espanhola e a devoção pelo internacionalismo comunista. 

Uma intensa radiografia emocional da guerra civil espanhola, da crueldade franquista e do maquiavelismo estalinista; uma rica descrição da paixão carnal e da sua colagem à precariedade de vidas suspensas por uma guerra sangrenta num mundo encalhado no beco mais escuro da História. Uma descrição quase analítica da transformação das paixões até atingirem o hodierno hedonismo desprovido de dimensão histórica. Um retrato pungente das forças criativas libertas pelo 25 de Abril e da sua dissipação no individualismo e no consumismo. 

No Jardim das Paixões Extintas é indubitavelmente uma obra maior da literatura portuguesa contemporânea, um livro imprescindível para se compreender a dimensão trágica do mais conturbado século da História da  Humanidade.    

Orfeu B.