domingo, 12 de fevereiro de 2017

As Criadas


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Claire - Fala, por favor. Fala da bondade de Madame.

Solange - Da bondade de Madame! É fácil ser boa, sorridente e meiga. A meiguice de Madame. Quando se é linda e rica! mas ser criada e boa! Nos contentamos enquanto arrumamos a casa e lavamos a loiça. Brandimos um espanador como se fosse um leque. Fazemos gestos elegantes com o avental.

Jean Genet


Numa fria noite de Janeiro, três actrizes, Luísa Cruz, Beatriz Batarda e Sara Carinhas, personificam, com total entrega, As Criadas de Jean Genet (1910-1986) no Teatro Aveirense.

A encenação de Marco Martins, conjuga com inteligência as múltiplas possibilidades de um texto rico e alusivo com o vigor interpretativo das actrizes, muito particularmente a das criadas, Claire e Solange (Sara Carinhas e Beatriz Batarda). 

A encenação acontece com o público disposto ao redor do palco que,  qual um ringue de boxe, contém e amplifica a energia da personificação. A parte interior das paredes do palco é espelhada de modo a propiciar ao público uma visão completa do trabalho interpretativo. Os elementos cénicos são, ao longo da encenação, desenhados pelas criadas com giz no palco de ardósia. A declaração cénica é evidente: todos os elementos da encenação são criados pelas actrizes. Sem as actrizes não há nada, não há teatro, só há um espaço inerte e esvaziado de objecto. O contexto do teatro é completamente definido pela acção das actrizes. Uma magnífica leitura da dramaturgia de Genet, um autor que através de peças essenciais como As Criadas (1947) e O Balcão (1957), demonstrou eloquentemente como as relações e, sobretudo, as identidades dos personagens são criações dos interlocutores. 

Baseada no caso real das irmãs Lapin que assassinaram a sua patroa e a filha, em Le Mans, França, na década de 1930, o texto As Criadas foi escrito aquando de um período de encarceramento por conta da pequena criminalidade que foi, por muitos anos, a actividade principal do autor. Na verdade, as primeiras obras de Genet, que incluem textos como a Nossa Dama das Flores (1943) e o Diário de um Ladrão (1949), subvertem completamente os padrões morais estabelecidos ao celebrar a humanidade através da singularidade das suas experiências de pequena criminalidade, homossexualidade e vagabundagem.  

O texto de As Criadas suscita muitas leituras e interpretações, mas parece-nos seguro afirmar que ao descrever quão desesperadamente as irmãs procuram escapar do seu quotidiano limitado e miserável, Genet procurou demonstrar o efeito devastador que a exploração tem na vida dos que vivem em função dos seus exploradores e como estes se apropriam inclusivamente do imaginário dos seus criados, condicionando-o pela imitação e pela incorporação dos valores burgueses. 

A vibrante encenação de Marco Martins e a brilhante interpretação das actrizes Beatriz Batarda, Sara Carinhas e Luísa Cruz, é, para além de uma muitíssimo bem sucedida e original revisita a um texto clássico da dramaturgia do século XX, uma demonstração do poder inesgotável do teatro enquanto vector criativo e veículo de reflexão.

Orfeu B.
     


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